As consultas do dr. Google e da dra. Wikipédia

Foto

Se à mínima dor vai a correr para o computador, onde passa horas a pesquisar sintomas tentando chegar a um autodiagnóstico, o mais provável é que sofra de cibercondria, o termo que junta a clássica hipocondria à Internet. Juntas, elas podem dar-lhe cabo da saúde.

Uma dor de cabeça pode ser um tumor. Umas tremuras são a antecâmara da doença de Parkinson. Um sinal pode ser um cancro de pele. Mesmo sem Internet sempre houve hipocondríacos. Pessoas que se preocupam com o seu estado de saúde e que se inquietam com a possibilidade de doenças imaginárias. O problema é que com a Internet a ansiedade aumentou exponencialmente. Há muita informação disponível, nem sempre a mais rigorosa.

André Oliva, interno de cirurgia nos Hospitais da Universidade de Coimbra, conhece bem a cibercondria. Está habituado a ter à sua frente pessoas que andaram a fazer as suas pesquisas online, sobretudo na Wikipédia e em "sites brasileiros". "Quando chegam, alguns vêm já com algumas ideias feitas acerca do tratamento. Recentemente, por exemplo, tem sido comum os doentes pedirem para tirar a vesícula "por laser", quando na realidade querem dizer "por laparoscopia" [uma técnica menos invasiva que envolve apenas três ou quatro pequenos cortes de maneira a que os instrumentos sejam inseridos na cavidade abdominal]", explica o cirurgião.

"Também recentemente houve um episódio da Anatomia de Grey em que eles tiram a vesícula pela boca - esta é uma técnica ainda em estudo, sem garantias de que seja uma técnica segura e que valha a pena - e eu já tive um doente que me perguntou se não se fazia essa operação aqui no hospital", explica André Oliva à Pública.

O fenómeno da cibercondria não é novo. Falou-se desta doença pela primeira vez por alturas de 2001, quando a Internet se começou a democratizar em todo o mundo, mas só em 2008 o termo viria a ser considerado a "palavra do ano" pelo Webster"s New World Dictionary.

Marta Roque, psiquiatra, descreve o fenómeno de forma sucinta: "Há 20 anos, o médico tinha como concorrente a enciclopédia da saúde, entalada entre a Bíblia e o dicionário. Hoje, a literacia digital é omnipresente e o doente está cada vez mais informado, exigente e preocupado."

Em Novembro de 2008, a Microsoft apresentou pela primeira vez um estudo acerca deste fenómeno potenciado por um mundo virtual onde são cada vez mais abundantes as fontes de informação médica, umas mais sérias que outras. Neste estudo, os autores começavam por dar uma definição do que é a cibercondria (cyberchondria, em inglês): "Usamos este termo para nos referirmos a um escalar das preocupações acerca de sintomatologia comum, com base nos resultados das pesquisas e da literatura que se encontra na Web."

Após um inquérito a mais de 500 indivíduos acerca das suas pesquisas sobre temas de saúde online, os investigadores perceberam a facilidade com que pesquisas sobre sintomas perfeitamente inócuos dão origem a resultados sobre doenças sérias e raras, fazendo aumentar a ansiedade dos internautas.

Brincadeiras perigosas

Patrícia (que prefere não dar o seu apelido), de Coimbra, assume-se como hipocondríaca e admite que os seus níveis de ansiedade aumentaram com as buscas online: "Andava a pesquisar doenças mas achei por bem parar senão ainda ficava mais doente. Foi um médico amigo que me avisou para eu ter cuidado porque nem sempre o que lá se encontra corresponde à verdade."

Esta ambivalência entre querer saber e querer parar é típica dos hipocondríacos. "O doente de hipocondria aparece-nos aterrorizado com o significado funesto que atribui aos seus sintomas. Traz o nome de alguma doença temível debaixo da língua e está ambivalente entre o medo da confirmação e o medo da falha do diagnóstico", explica a psiquiatra Marta Roque. "Vai repetir consultas, pareceres, opiniões, exames e permanecer com dúvidas. Geralmente entra num circuito desgastante até que o cansaço ou a sensatez vence. Ou até que seja encaminhado para uma consulta de psiquiatria."

E como reage um médico perante doentes que já se diagnosticaram em casa? "Com muita calma", explica André Oliva. "Acabo por perceber que foram à Net pelas coisas que dizem, pelas perguntas que fazem. Nesse caso normalmente confronto-os. E depois tento explicar-lhes que a Net nem sempre é fidedigna, que é incompleta, que tem muitos comentários de desconhecidos que não sabem o que dizem."

Mais recentemente, o estudo Health Pulse 2010 - efectuado pela companhia de seguros internacional Bupa [presente em Portugal], pela empresa de estudos de mercado Ipsos e pela prestigiada London School of Economics - dá-nos conta de que 60 por cento dos franceses e 70 por cento dos alemães e ingleses entrevistados admitiram ter procurado informações de saúde online durante o ano de 2010. Nos países emergentes, como a Índia e a China, essa percentagem sobe aos 90 por cento. Através de um gráfico, este estudo mostra igualmente quão fácil é partir de pesquisas como "dor de ouvidos" e "visão turva" e chegar até patologias como "abcesso no cérebro" e "cataratas".

Mas as buscas e os autodiagnósticos pela Internet são brincadeiras perigosas. "Os riscos principais têm a ver com as consequências para a saúde de uma informação de pior qualidade", lê-se no estudo. Em matéria de saúde, isso pode ser muito perigoso. Uma pessoa pode simplesmente chegar a um resultado que esteja nos antípodas do que foi procurado, conclui o estudo.

Outro perigo reside na publicidade encapotada que circula em fóruns de debate sobre determinadas doenças. Há comunidades virtuais às quais a indústria farmacêutica presta atenção e nas quais tenta "injectar" os seus produtos que podem, ou não, ser adequados às doenças que os hipocondríacos identificam como as suas.

Autodiagnóstico que vale a pena fazer

A verdade é que não vale a pena matar o mensageiro. A culpa é da má utilização da tecnologia e não da tecnologia em si mesma. "A minha perspectiva relativamente à Net é sempre muito liberal, sou adepta fervorosa da liberdade de informação, acredito que as vantagens são tremendamente superiores aos custos. O problema é que não é nada fácil lidar com o analfabetismo em hipocondríacos com convicções delirantes de que padeceram de doenças sem nome nem rótulo. A hipocondria é sempre uma condição complicada e de difícil manejo", diz Marta Roque.

André Oliva acrescenta: "Com ou sem Internet, as pessoas andam é mal informadas. E, de todas as formas, a Medicina não é uma ciência exacta. O que se passa é que, mesmo que as pessoas tenham acesso a artigos credíveis, haverá sempre opiniões divergentes."

Se as pessoas vão fazer pesquisas online, mais vale que as façam em sites de confiança. O b-on.pt (Biblioteca do Conhecimento Online) e o Medline (base de dados da National Library of Medicine) são dois exemplos de sites com artigos de confiança - mas são de acesso restrito e pago e mais dirigidos para médicos do que para doentes.

Quando questionada pela Pública, a Ordem dos Médicos esclareceu, porém, que não recomenda a consulta de qualquer site. "A Ordem não faz recomendações nem dá o aval a nenhum site. Pelo contrário, a nossa posição é precisamente a contrária. Recomendamos sempre que os queixosos visitem um médico", indicou o assessor da Ordem, Diamantino Cabanas.

Se se preocupa de forma excessiva com a sua saúde e se se alarma ao mínimo sinal, talvez o autodiagnóstico que vale realmente a pena fazer é o que detecta a hipocondria e a cibercondria. Como perceber que padece deste mal? Eis umas pistas: quando passa demasiado tempo a fazer pesquisas online sobre sintomas e, no final, se sente pior do que antes de começar; quando passa rapidamente da desconfiança para a certeza acerca do diagnóstico e quando, chegado à consulta com um médico, o diagnóstico que ele faz não o convence ou contradiz o que previamente tinha concluído. Como poderá evitar tornar-se num cibercondríaco? Por simplista que pareça, eis a resposta: limitar as pesquisas online a um mínimo e consultar um médico.

susaribeiro@publico.pt

Sugerir correcção