Comediante de mão-cheia, republicana e religiosa
Nunca se levou inteiramente a sério e encarna um tempo de estrelas, de brilhos de peles e lantejoulas, um tempo que não volta mais. A "companheira" de Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras foi, afinal, a morena que os homens também preferiram. Num texto na primeira pessoa, o crítico de cinema Mário Jorge Torres recorda a entrevista que fez à actriz no início da década de 90
Quando no início dos anos 90 entrevistei Jane Russell, deparei-me, por um lado, com uma grande resistência devida à insistência de entrevistadores anteriores em falar mais de Marilyn Monroe do que da carreira, que quase ignoravam, da sua companheira morena em Os Homens Preferem as Loiras, e, por outro, uma imensa inteligência e um enorme sentido de humor no que dizia respeito ao aproveitamento que tinham feito do seu físico exuberante, dos seus seios protuberantes e da sua imagem agressiva de símbolo sexual.
Bastou uma foto de The French Line (Lloyd Bacon, 1953), que levava para autografar, revelando que sabia tratar-se da estreia como figurante de outra das divas da década, Kim Novak, para quebrar o gelo e estabelecer uma curiosa cumplicidade com uma estrela que sabia gozar com o estereótipo que lhe fora colado, falando sem peias de quase tudo, incluindo a grande timidez e fragilidade de Marilyn: contou-me, então, pedindo-me na altura que o não revelasse, que um famoso anúncio a soutiens fora feito imediatamente depois da remoção de um dos seios por causa de cancro; falou da sua longa amizade com Clark Gable, por quem nutria verdadeira adoração; mostrou-se céptica em relação às suas capacidades como actriz; relatou como detestara trabalhar com Von Sternberg; falou dos equívocos da sua relação com o magnata Howard Hughes. Durante duas horas desfilou perante mim, ao vivo e a cores (o vermelho e o verde kitsch de um inacreditável fato de treino cintilante), uma fascinante e apaixonada visão sobre a Hollywood das décadas de 40 e 50.
Graficamente sedutora
A carreira de Ernestine Jane Russell, que estudara com a grande Maria Ouspenskaia e integrara o workshop de Max Reinhardt, arranca, não devido a tal formação como actriz, mas devido aos seus abundantes "recursos" físicos num estranho western, A Lenda dos Homens Perdidos (Howard Hawks e Howard Hughes, 1943).No entanto, só em 1948 regressa em pleno com uma extraordinária comédia, The Paleface (Norman McLeod), ao lado de Bob Hope (famosa a apresentação que dela fez - the two and only Jane Russell, sempre a puxar pelos famigerados atributos mamários), no papel de Calamity Jane, em prodigiosa caricatura do mito. Seguem-se-lhe comédias, incluindo uma excelente sequela, Son of Paleface (Frank Tashlin, 1952), westerns (em que o seu humor triunfa sobre a função decorativa) - Montana Belle (Allan Dwan, 1952), mais uma personagem mítica, Belle Starr -, dois curiosos musicais, The French Line e Os Homens Preferem as Loiras (Hawks, 1953), revelando uma boa voz de contralto, e, sobretudo, dois importantes film noir, fazendo perfeita parceria com um dos mestres do underacting, Robert Mitchum: His Kind of Woman (John Farrow, 1951) e Macau (Von Sternberg, 1952).
Em todos eles exibe, para além da beleza exótica de morena ardente, arquetípica da década, dotes de comediante exímia, um imenso à-vontade perante as câmaras e uma magnética força que atrai o olhar, obrigando a reflectir sobre a condição de estrela autoconsciente da sua imagem, logo superiormente distanciada e graficamente sedutora.
O ano de 1955 marca o apogeu e também o princípio da decadência, com quatro filmes essenciais na sua curta filmografia: Underwater (John Sturges) coloca-a em aventura subaquática de arqueologias inventadas para lhe mostrar e modelar o corpo escultural; Foxfire muda a busca do tesouro para território apache, com o "albino" Jeff Chandler que fora Cochise; Duelo de Ambições (Raoul Walsh) oferece-lhe o melhor argumento de todos e a companhia desejada de Gable; Os Homens Preferem as Morenas (Richard Sale) mostra-a em pleno domínio da sua persona, comediante de mão-cheia, sempre gozando consigo própria. Em 1956, reencontra Nicholas Ray, que acabara Macau, em glorioso Cinemascope, usado inclusive para um ridículo mas eficaz close-up dos sacrossantos seios, em Sangue Cigano, e Walsh na derradeira das obras-primas em que entrou, A Revolta de Mamie Stover. Depois decide semi-retirar-se, em consequência do fracasso de The Fuzzy Pink Nightgown (Norman Taurog, 1957), inteligentemente consciente de que o seu papel de pin-up sofisticada e caricatural se esgotara. Nem o comeback, em 1966, para dois westerns menores, de que não reza a história (Waco e Johnny Reno, do desconhecido R. G. Springsteen), nem a muita publicidade, complementada com participações de prestígio em séries televisivas, até 1986, a demovem da sua intransigente decisão de se afastar dos holofotes, assumindo-se já como uma presença mítica do passado.
Porte-se mal, Miss Russell
Morre aos 89 anos [28 Fevereiro], sempre cheia de classe, apesar de cultivar um look camp, tendo viajado por todo o mundo, a apresentar os seus títulos de glória em cinematecas e festivais, apregoado a sua fé inabalável na difusão da Bíblia e proclamado o seu republicanismo militante, sempre com a ironia que a caracterizava e um eterno sorriso misterioso e lúbrico. Deixa muitas saudades, porque nunca se levou inteiramente a sério e porque encarna um tempo, que não volta mais, de estrelas, de brilhos de peles e lantejoulas. Jamais esquecerei aquela manhã de Junho à beira do mar de Tróia, nem a sessão da Cinemateca em que infatigavelmente assinou autógrafos e me disse, piscando o olho: "Gostei da sua entrevista. Portou-se bem." Lá no além, porte-se mal, Miss Russell, e prove que os anjos, como os homens, preferem as morenas.