Se nos pedissem para escolher um "momento decisivo" na vida de Jean-Luc Godard, um momento em que nada está ainda decidido e, pelo contrário, tudo está em jogo e pode ser completamente ganho ou perdido, escolheríamos aqueles meses do final de 1959 e do princípio de 1960 em que toda a gente nos meios cinéfilos de Paris esperava, com ansiedade, a estreia de "À Bout de Souffle", primeira longa de um jovem cineasta de 29 anos.
Godard já era famoso nesse ciclo restrito (e "famoso" quer dizer: tinha alguns amigos e muitos inimigos), porque há dez anos, desde 1950, escrevia nos "Cahiers du Cinéma", revista onde ele e os seus colegas tinham agitado (e provocado) o "statu quo" da crítica e da "profissão" do cinema franceses, e virado do avesso o sistema de valores com que se olhava para a crítica e para os filmes. Na sua biografia de Godard recentemente editada ("Godard"), Antoine de Baecque sugere (e sugere bem) que o jovem crítico tinha "inventado a crítica moderna" quando postulou, resolvendo o velhíssimo debate sobre a preponderância do "tema" ou da "forma", que "o tema de um filme é a sua forma" (isto era verdade em 1954, continua a ser verdade hoje). O postulado sustentou, entre outras coisas, a imposição de Hitchcock e de um punhado de cineastas americanos, e o rebaixamento de parte substancial do cinema francês que se fazia. Como os seus colegas dos "Cahiers" que já tinham estreado filmes com sucesso (Truffaut e Chabrol), mas mais ainda do que eles, Godard tinha contra si o "milieu": o "milieu" da profissão, e boa parte dos círculos intelectuais que gravitavam em torno da crítica de cinema (que naquele tempo e naquele lugar eram quase todos), e toleravam mal o "desengagement" que esta visão "neo-formalista" (expressão com que André Bazin, director da revista, defendia, com a convicção de que era capaz, os atrevimentos dos seus discípulos) pretendia impor. Por causa disto e doutras coisas, Godard e os seus colegas tinham uma "reputação": direitistas, se não mesmo fascistas. Enquanto "À Bout de Souffle" não estreava, boa parte de Paris ia afiando as facas.
É claro que os rumores eram de assustar. O que se sabia da rodagem e da montagem era de molde a deixar qualquer um inquieto. Nem Godard, embora fizesse o que podia e o que não podia para não deixar transparecer senão auto-confiança, estava inteiramente certo do que ia acontecer, e não fosse o diabo tecê-las convenceu o produtor Georges de Beauregard a comprometer-se com um contracto para o filme seguinte (veio a ser "Le Petit Soldat") ainda antes da estreia de "À Bout de Souffle". Godard, que já tinha feito curtas-metragens, desejava mais do que tudo e mais do que ninguém passar à longa-metragem. Atirou-se a "À Bout de Souffle" com sofreguidão - e "métodos" caóticos. O produtor ia arrancando cabelos à medida que o filme avançava mas parecia não "avançar", e temia que o resultado acabasse por nem poder ser estreado em sala. Jean-Paul Belmondo, o protagonista, então um jovem em princípio de carreira, chegou a entrar em pânico e só se sossegou quando se convenceu de que era "impossível" que dali saísse um filme "visível", que se pudesse estrear, e portanto a sua reputação não sofreria dano. E enquanto todos estes rumores corriam, Godard, sempre a jogar no tudo ou nada, iniciou-se na arte da manipulação mediática (de que em pouco tempo se tornaria um mestre), pondo alguns velhos amigos a tratar de uma campanha publicitária abundante em "teasers" e provocações, a que não faltava uma certa coragem: um "trailer" terminava com a voz do próprio Godard a dizer... "o melhor filme da actualidade".
E foi mesmo. Godard teve que ler e ouvir comentários desagradáveis - o filme não fez nada para resolver o conflito "direita/esquerda", mas mesmo Georges Sadoul, "papa" da velha guarda da crítica francesa e comunista ortodoxo, só teve elogios para dar - mas "À Bout de Souffle" foi um triunfo a todos os títulos. Crítico e público: 300 mil espectadores nas primeiras sete semanas de "exclusividade", só na região de Paris. Para além disso, hoje sabemos que nada ficou igual. "À Bout de Souffle", como "The Birth of a Nation" de Griffith ou o "Citizen Kane" de Orson Welles, deixou o cinema diferente, há um antes e há um depois. O "momento decisivo" da vida de Godard foi também um momento decisivo no cinema e nas artes do século XX.
Ícone popPoucos viveram, artisticamente pelo menos, nesta espécie de constante desafio ao fracasso e ao escândalo. É impressionante a quantidade de momentos na vida e na obra de Godard em que o génio, um golpe de génio, foi a única alternativa ao total falhanço. Hoje, quando sobre ele pesa uma desconfiança "transversal" aos espectadores e a boa parte da intelectualidade (parece que estamos outra vez nos anos 50), talvez não haja muita noção disto, mas Godard atravessou os anos 60 como uma "pop star". Como De Baecque escreve no seu livro, em meados dessa década a única pessoa no mundo que Godard secretamente invejava era Bob Dylan. Com Dylan nunca se mediu, mas em 1968 mediu-se com os Rolling Stones (e é talvez a melhor e mais simples maneira de ver "One Plus One": Godard "plus" os Stones), e uns anos antes tinha "domado" outro colossal ícone "pop" dos anos 60, Brigitte Bardot ("Mépris"). Jornais, revistas e televisões procuravam-no como procuravam os cantores e os actores e hoje procuram futebolistas e vedetas de televisão.
Nos anos 70, necessitado de dinheiro, vendeu por uma pequena fortuna a um jornal francês o direito a uma "entrevista-fleuve", publicada ao longo de várias semanas e anunciada como "Godard Conta Tudo!". E contou, com o espectáculo com que as circunstâncias exigiam, dizendo mal de todos os seus parceiros da "nouvelle vague" e mitificando as suas origens ("nasci numa família de colaboracionistas", o que não é verdade, mas reactivava o culto do escândalo e gostava disso). Mesmo na América houve um fenómeno Godard. Era visita frequente de Nova Iorque, para festivais e para a estreia dos seus filmes, tinha a crítica a seus pés e o seu nome tornou-se um fetiche para a intelectualidade nova-iorquina (e talvez mesmo antes da francesa, foi a universidade americana quem primeiro se interessou por Godard). A história de "Bonnie & Clyde", por exemplo. Robert Benton e David Newman tinham escrito o argumento a pensar nele para realizador, mas não ousaram chegar-lhe ("pop" ou não, Godard sempre foi uma figura intimidatória, sobretudo para os que o veneravam) e ofereceram o projecto a Truffaut. Por falta de tempo, e para gáudio de Benton e Newman, Truffaut sugeriu que falassem com Godard (que levou a coisa minimamente a sério - foi a intervenção de um produtor aldrabão que abortou o projecto, depois concretizado por Arthur Penn). E na viragem da década de 70 para 80, Godard foi um dos primeiros que Coppola convidou para trabalhar na sua Zoetrope, o estúdio que ele pretendia transformar numa casa de acolhimento para "cinema de autor" do mundo e lhe veio a sair caro (mas Godard, mais uma vez, andou por lá a sério: diz de Baecque que não há, para nenhum dos seus filmes, uma planificação tão rigorosa como a que concebeu para o filme que seria produzido por Coppola e nunca se fez).
Temos estado a citar a biografia de Antoine de Baecque, a mais recente. Não há, nunca houve muitas (em parte porque biografar Godard é um empreendimento monumental, em parte porque a tarefa tem tudo para intimidar o mais corajoso) e só nos últimos anos o "género" tem frutificado. Duas em língua inglesa - uma de Colin MacCabe em 2003, "Godard, a Portrait of the Artist at 70", outra de Richard Brody, crítico da "New Yorker", em 2008: "Everything is Cinema: the Working Life of Jean-Luc Godard". Para nenhuma delas Godard teve palavras simpáticas: rasgou, em fúria, o exemplar que MacCabe lhe mandou, e devolveu a Brody um exemplar do seu livro, com uma folha de papel colada na capa onde escreveu: "As long as there will be scrawlers to scrawl, there will be murderers to kill". Sobre a de Baecque foi aparentemente mais brando, mas as palavras que lhe dedicou numa entrevista recente (aos "Inrockuptibles") são obviamente ressentidas ("tem incorrecções", que o incomodavam menos por ele "do que por Anne-Marie [Miéville]", a sua mulher desde o princípio dos anos 70). Lendo-se o livro de Brody percebe-se a irritação de Godard. Não é um livro
mal escrito nem mal documentado, e obviamente Brody tem admiração pela figura. Mas não resistiu a ter "teses": que há um fundo "anti-semita" em Godard (que explicaria a sua putativa "transição" da "extrema direita" para a "extrema esquerda") e que todos os seus filmes têm uma chave autobiográfica, e conjugal, imediata (duas teses bastante forçadas). Mais do que a obra, esta esfera pessoal é intimidatória, sobretudo quando Godard tratou sempre a sua biografia (da origem, aristocrática por parte da mãe mas não do pai, às relações com as mulheres - três: Anna Karina, Anne Wiazemsky e Anne-Marie Miéville) de forma que pode ser alternadamente muito espectacular, muito franca, ou muito elíptica (e que tem corolário no seu "auto-retrato", "JLG/JLG", filme de meados dos anos 90 agora editado em DVD, em versão restaurada, junramente com "Viver a sua Vida").
Mas a impressão que se tem, correcta ou incorrecta, destas aproximações biográficas, é a de alguém que "viveu a sua vida", e sobretudo as suas relações com os outros (com os amigos, como Truffaut, tornado inimigo) ora de forma muito generosa ou muito egoísta, com uma tendência egocêntrica (que artista não a tem?) que, mais mal entendido menos mal entendido, se exprimia também por uma espécie de teatro. Godard podia dar uma entrevista a dizer mal de Truffaut, Rohmer e Rivette e a seguir convidá-los para jantar. Em qual desses momentos era mais honesto? Não ousaríamos decretar, mas possivelmente havia tanta honestidade na maledicência como no convite. E isto, que é difícíl de perceber, e ainda mais difícil de suportar (Truffaut, a dado passo, fartou-se), é o mistério que faz uma personalidade, e biografia alguma, por melhor que seja (a de De Baecque é muito boa), e o iluminará definitivamente. Godard, "un mystère". Como ele diz que o cinema é.