Sabemos desde os seus filmes dos anos 60 que Jean-Luc Godard tem uma sensibilidade de sismógrafo. Pressente agitações subterrâneas antes de elas se notarem à superfície: "Made in USA", "La Chinoise" ou "Weekend" são os filmes que melhor explicam o Maio de 68, e foram feitos antes de Maio de 68. De resto, isto não é nada de mais: é apenas o que ele tem como o "dever do cinema", e faz por cumpri-lo.
É curioso notar, a este propósito, a quantidade de coisas que aconteceram no espaço central de "Filme Socialisme" (o Mediterrâneo) depois de Godard o ter feito: a Grécia ("Hell As") foi transformada num pária da Europa; outros países (a Espanha, a Itália, e mesmo nós, mediterrânicos por afinidade) fazem o possível para evitar que a Sra. Merkel ("na Alemanha nunca se passa nada", dizia-se no mais godardiano dos Fassbinders, "Der Amerikanische Soldat") os conduza ao mesmo destino; do "outro" lado, a Tunísia revoltou-se, o Egipto revoltou-se, a Líbia entrou em combustão e na Europa teme-se o momento em que um "líbio oprimido" se transforme num reles "imigrante". Só em Israel e na Palestina, por onde o navio de Godard também passa, é que aparentemente não aconteceu nada, o que é o mesmo que dizer que continua a acontecer tudo.
"Alheado do mundo", Godard? Só se para reconhecer o mundo já não dispensarmos a empática condução de Javier Bardem (aludimos ao tão celebrado "Biutiful", cuja Barcelona também é visitada por "Filme Socialismo", e não somos originais na alusão). Não veremos este ano filme mais ligado, mais "em linha", com o mundo do que "Filme Socialismo".
Uma descrição de "Filme Socialismo" diria que ele se divide em três segmentos identificáveis. Primeiro, a bordo de um navio em cruzeiro pelo mediterrâneo, onde há belíssimos planos do mar (um mar a que ninguém dentro do navio parece prestar atenção), escalas em várias portos, alguns passageiros notórios (nomeadamente um criminoso de guerra, maneira de mostrar como a sociedade encontrou maneira de albergar, sem fricção de maior, os "salauds" - que hoje, ao contrário dos de outras épocas, são "sinceros", ouve-se dizer no filme) e uma grande multidão que habita o navio deliciada com os seus "gadgets", os seus écrans (de telemóvel, de computador), o seu casino, sem ligar um chavelho ao mar e às cidades, perfeita metonímia da "civilização do consumo" vista como a "Metropolis" de Lang, mas uma "Metropolis" de Lang onde o "capitalismo" tivesse criado a ilusão "socialista" de uma "sociedade sem classes".
Depois, segundo segmento, a história de um pequeno comércio algures na província francesa, um pequeno comércio de gasolina (uma estação de serviço), quer dizer, petróleo, para ligar o particular ao geral, ligação que é (todo o mundo reflectido numa pequena porção espacial) o tema do segmento. Há televisões regionais, crianças que "jouent à la Russie", e o fabuloso encontro de um lama e de um burro - quer dizer, Bresson, quer dizer, "Au Hasard Balthasar" para a era da "globalização". Finalmente, terceiro segmento, "histoires du cinéma", Godard a montar excertos de filmes antigos, de cinema-sismógrafo, de cinema "em linha". Subjacente a todos os segmentos, uma prodigiosa textura (som + imagem), legendas, música, frases soltas, citações. O último plano é um écran negro com a inscrição "no comment".
E antes dele, justaposta a um "logo" do FBI com avisos a autores de "downloads" ilegais, esta frase: "quando a lei é injusta, a justiça passa antes da lei". Quem se lembrar de proposição mais subversiva para os nossos dias ponha o dedo no ar.