Situações-limite A única regra é sobreviver
Em situações-limite, de risco de vida imediato, as pessoas transformam-se e fazem coisas que não julgaríamos possíveis. À boleia do filme 127 Horas, sobre o alpinista que amputou o próprio braço para se salvar, eis uma viagem pelos mecanismos da mente que nos permitem sobreviver. E exemplos dramáticos dessa pulsão instintiva, com as montanhas por cenário.
Como é que alguém, cons-cientemente, amputa o seu próprio braço? Que estranhos mecanismos mentais e fisiológicos nos transformam, perante situações-limite, em máquinas de sobreviver? A questão, desconfortável mas fascinante, é novamente posta em cima da mesa pela história do alpinista norte-americano Aron Ralston, o homem que, em 2003, se viu perante uma escolha impossível: preso por uma pedra durante uma descida em rappel, ou cortava o seu próprio braço ou morria à sede.
O drama de Ralston foi passado a livro, com o sugestivo nome em inglês de Between a Rock and a Hard Place, expressão que em português se traduzirá por "Entre a espada e a parede", mas que em inglês funciona na perfeição para descrever o que sucedeu no Parque Nacional de Cannyonlands, no Utah. O braço direito de Ralston ficou preso entre uma pedra, que caíra, e a parede do desfiladeiro. Não havia maneira de se soltar e o alpinista cometera um erro primário: não avisara ninguém de que ia escalar para aquele sítio.
Ou seja, não podia esperar auxílio externo. E isso significava que tinha de se soltar sozinho, sob pena de morrer naquele local inóspito. A agonia durou cinco dias e, ao fim de algum tempo, Ralston percebeu que só lhe restava uma saída: amputar o braço que estava preso para poder sair dali com vida. Usando um canivete, demorou 44 minutos a cortar osso, músculo e tendões. Uma experiência arrepiante, agora retratada no filme 127 Minutos, realizado por Danny Boyle (Quem Quer Ser Bilionário?), protagonizado pelo actor James Franco (que tem ascendência portuguesa) e que se estreou em Portugal esta semana.
Por mais inacreditável que possa parecer, não é incomum as pessoas fazerem coisas e tomarem decisões tão radicais quanto as de Ralston quando sujeitas a situações-limite. Na verdade, é até bastante comum. Quem o diz é o psicólogo clínico Bruno Brito, que trabalha com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e já colaborou com forças de segurança e a Autoridade Nacional de Protecção Civil.
"Temos dois tipos de funcionamento, o racional e o emocional. Ambos estão activos ao mesmo tempo, mas não se sobrepõem. O segundo está, normalmente, em plano secundário. À medida que aumentamos o stress das situações, eles aproximam-se. Mas só em situações-limite se dá uma inversão: o nosso funcionamento passa a ser emocional." Ou seja, fazemos coisas e tomamos decisões que depois temos dificuldade em explicar ou, até, aceitar.
Um exemplo, para se perceber melhor este mecanismo. "No caso do tsunami do Índico [Bruno Brito apoiou as equipas portuguesas que estiveram no terreno], houve pais que largaram um filho para poderem salvar outro. Se não o tivessem feito, todos teriam morrido; assim salvaram um. Mas como é que conseguem viver com essa decisão?" É um dilema quase inimaginável e paralisante em condições normais, mas, perante o perigo iminente, houve uma escolha emocional, embora baseada em parâmetros racionais (largar o mais velho, por exemplo, que teria mais hipóteses de se salvar).
Este estado alterado de consciência explica, por exemplo, que alguém que sobrevive a um acidente na auto-estrada acabe por ser atropelado quando atravessa a via, sem olhar, a caminho de um telefone de emergência. "As pessoas passaram uma barreira e funcionam por impulsos", explica o psicólogo. Há limites que, em condições normais, não ultrapassamos: não fazemos mais força do que aquela que podemos fazer sem nos magoarmos. O corpo não deixa. Mas, em situações-limite, tanto física como psicologicamente, podemos fazer coisas que não julgaríamos possíveis.
O perfil do sobrevivente
A forma como respondemos a uma situação-limite depende de quem somos, da nossa experiência e das circunstâncias lhe que deram origem. Acontece, frequentemente, as pessoas "congelarem" perante a adversidade. E isto sucede porque "atingiram o limiar máximo do sofrimento e o seu cérebro fecha-se a estímulos exteriores". Mas, então, qual é o perfil do sobrevivente? Não é linear, mas Bruno Brito procura um mínimo denominador comum: "É alguém que está habituado a ter estratégias. Alguém que, mesmo na vida normal, está sempre à procura de soluções para os problemas."
A definição é acolhida com uma gargalhada por João Garcia, alpinista português que, em 1999, passou 40 horas acima dos 8200m no Evereste, sem oxigénio artificial, e sobreviveu para contar a história. "Isso sou mesmo eu! Sou tanto eu que, quando não tenho problemas, estou sempre a inventá-los. Como diz o povo, ando sempre à procura de sarna para me coçar..."
Garcia podia ter morrido nas encostas da montanha mais alta do mundo. Mas garante que nunca pensou nisso enquanto esteve lá, no escuro e com temperaturas muito abaixo de zero, a certa altura já sem uma luva. "Acho que a hipoxia [falta de oxigénio - àquela altitude, só se respira um terço do oxigénio de que dispomos ao nível do mar] limita muito a capacidade de análise. Sou mais de pensar nos outros do que em mim e, naquela situação, só me preocupava com o Pascal [o companheiro de escalada, belga, que morreu nessa ocasião]. O Pascal, o Pascal e "como é que eu vou dizer isto à mulher do Pascal"..."
No caso de Garcia, que sofreu amputações nos dedos das mãos e no nariz na sequência das congelações, o factor experiência também teve a sua influência. "O que é uma situação-limite para uma pessoa pode não ser para outra", garante Bruno Brito. Para um alpinista experimentado, chegar a uma situação-limite é algo que implica condições verdadeiramente excepcionais. Mas acontece. Garcia: "Como toda a gente que passa por estas coisas e, com sorte - repito: com sorte! -, se safa com vida, o que me ocorre é que nunca tive a noção do sarilho em que me estava a meter. Depois, vem a capacidade para assimilar a situação e agir para se safar. Muitas das coisas que fiz foram apenas reflexos, instinto de sobrevivência."
Como o alpinismo é uma vida de risco, são bastante comuns as histórias em que pessoas (quase) comuns tiveram de fazer coisas e tomar decisões que escapam ao nosso raciocínio lógico. Muitos destes episódios deram origem a livros e a filmes. Nem todos tiveram finais felizes. Nos Alpes, nos Andes, nos Himalaias, sozinhos ou em grupo, houve gente que, contra todas as expectativas, conseguiu provar que não há limites para a pulsão humana de sobreviver. Eis alguns exemplos.
Eiger, 1936
A face Norte do Eiger, uma montanha de 3970 metros de altitude nos Alpes suíços, representa um desafio aterrador - em alemão chama-se Nordwand, mas é conhecida como Mordwand, "parede assassina"... Em Julho de 1936, quatro homens enfrentaram este abismo ainda nunca escalado de mais de 1800 metros praticamente verticais. Progrediram rapidamente, mas um temporal fechou-se sobre eles e, com um elemento (Willy Angerer) ferido devido a uma avalancha, a decisão foi abortar a escalada. Só que, na descida, já não conseguiram refazer os seus passos numa travessia complicadíssima, de onde tinham, entretanto, retirado a corda. Durante dois dias, resistiram, pendurados sobre o vazio, de vez em quando à vista dos mirones que seguiam o drama do vale. Ao terceiro dia, Andreas Hinterstoisser caiu e arrastou consigo Angerer. Os dois esmagaram-se contra a parede e o seu peso na corda asfixiou Edi Rainer em poucos minutos. Só Toni Kurz sobreviveu, incólume. Uma equipa de resgate tentou então socorrê-lo, acedendo à face da montanha por um túnel de caminho-de-ferro. Mas, naquele local, não conseguiam subir, seria preciso que Kurz descesse até eles. Estavam tão perto do alpinista que conseguiam comunicar verbalmente. Mas então a noite caiu e Kurz ficou novamente sozinho, pendurado numa corda, à mercê dos elementos. Perdeu uma luva e a mão congelou. Na manhã seguinte, um socorrista deixou cair a corda que levavam. Isto obrigou Kurz a subir e descer para cortar as cordas que prendiam os seus companheiros mortos e depois atá-las à sua. Só com os dentes e uma mão, esta agonia durou cinco horas. E então, ao descer pela última vez, ficou bloqueado por um dos nós, que não passava no mosquetão. Seria necessário voltar a subir para aliviar a tensão, mas Kurz estava exausto. Num gesto desesperado, um dos socorristas subiu para os ombros de outro (numa face vertical e saindo de um buraco na parede...), mas o mais que conseguiu foi tocar com a sua picareta de escalada nos crampons das botas do alpinista pendurado. A um nó e dois ou três palmos da salvação, Toni Kurz desistiu. Disse: Ich kann nicht mehr (Já não posso mais) e morreu.
Monte Branco, 1956
É difícil explicar o que se passou na cabeça de Jean Vincendon, francês, e Patrick Henry, belga, naqueles dias trágicos de Dezembro de 1956. Como se não bastasse a ideia de se lançarem numa escalada invernal sem experiência para o fazerem, eles desperdiçaram dois dias de bom tempo na parede do esporão de Brenve, no Monte Branco (4810m), Alpes franceses. Não se mexeram e, quando o fizeram, foi para começar a descer. Mas depois cruzaram-se com outros alpinistas e decidiram voltar para cima. E então, a 25 de Dezembro, cai uma tempestade. Um dos alpinistas que estava na área era o famoso Walter Bonatti, que acaba por chegar junto de Henry e Vincendon, apenas para constatar que não estão em condições de sair dali pelos seus meios. Desce para procurar ajuda. Quando Bonatti chega ao refúgio de Vallot, já de noite, a temperatura exterior é de -30ºC, sem contar com o vento. O seu companheiro, Ghersen, tem queimaduras de gelo. No dia seguinte, continuam a descer, caem numa fenda de gelo, são obrigados a passar uma noite ao relento. E não podem ajudar os dois alpinistas que ficaram presos lá em cima. Em Chamonix, entretanto, receia-se pela sorte de Henry e Vincendon. Mas não há estrutura de socorros em montanha durante o Inverno. A 27 de Dezembro (e já lá vão três noites ao relento a 4500m) um helicóptero detecta-os, bloqueados numa parede de gelo e larga vários socorristas e alpinistas na zona. Mas o aparelho despenha-se e é para a carcaça destruída que os dois "náufragos" da montanha acabam por ser levados. Espantosamente, e apesar de Henry e Vincendon estarem muito maltratados, a decisão é salvar primeiro os pilotos e regressar depois para ajudar os alpinistas. Começam a descer, mas passam mais duas noites até um novo helicóptero conseguir resgatá-los. Lá mais acima, onde estão Henry e Vincendon, é muito perigoso aterrar. E não há sinais de vida. Estamos a 3 de Janeiro. Dois meses depois, dois corpos são encontrados junto ao helicóptero que se despenhou. Vincendon está exactamente onde o tinham deixado, Henry ainda tentou sair, talvez para fazer sinal ao aparelho que os sobrevoou pela última vez. Terá sido o derradeiro acto de um drama que se arrastou por 13 dias.
Ogre, 1977
O título será sempre discutível, mas o Ogre (7285m), no Paquistão, é considerada a grande montanha mais difícil de escalar no mundo. Em Julho de 1977, uma expedição britânica enfrentou o gigante. E foi bem sucedida. Mas a um preço quase inimaginável. No dia 13, Doug Scott e Chris Bonington pisaram o cume, estabelecendo novos limites de dificuldade para uma escalada em rocha a tal altitude. Nenhum deles usou garrafas de oxigénio, mas a sua experiência e tenacidade marcou pontos. O pior, no entanto, estava para vir. Logo no início da descida, pouco abaixo do cume, quando fazia uma travessia em rappel para chegar a um ponto de segurança que tinham estabelecido na subida, Scott escorregou no gelo e foi lançado num pêndulo descontrolado de 30 metros. Ainda teve tempo de pôr os pés à frente para amortecer o choque contra as pedras, mas a violência do embate foi tal que lhe partiu ambas as pernas ao nível dos tornozelos. Àquela altitude, isto seria uma sentença de morte para um alpinista normal. Mas Scott não era um alpinista normal. Numa das mais espantosas histórias de sobrevivência da história do alpinismo, Scott gatinhou e arrastou-se montanha abaixo, ajudado por Bonington, que entretanto contraiu pneumonia e fracturou duas costelas noutra queda, e pelos dois companheiros que os aguardavam mais abaixo, Mo Anthoine e Clive Rowland. O sofrimento durou oito dias, cinco deles debaixo de temporal e os últimos quatro sem comida. Quando chegaram ao campo-base, Scott tinha as calças completamente rasgadas e há muito que se arrastava com os joelhos em carne viva. Só três dias depois foi possível resgatá-los de helicóptero. E o aparelho ainda teve um acidente à chegada ao hospital. A segunda escalada bem sucedida no Ogre só aconteceu em 2001.
Monte Cook, 1982
O pico mais alto da Nova Zelândia tem uma reputação infame, mas merecida, de atrair tempestades monstruosas. Devido à sua altitude (3754m) e à proximidade do oceano, a precipitação no Monte Cook, na ilha do Sul, é muito intensa e não é raro os temporais que assolam a região prolongarem-se durante dias a fio. Num destes episódios extremos, em Dezembro de 2008, dois japoneses ficaram uma semana bloqueados junto ao cume. Apesar de terem recebido reabastecimentos lançados de helicóptero, um deles morreu. Foi uma espécie de repetição de um dos maiores dramas do socorrismo de montanha na Nova Zelândia: em 1982, Mark Inglis e Phil Doole foram apanhados pelo mau tempo e refugiaram-se numa fenda no gelo, também logo abaixo do cume do monte Cook. Durante 13 agonizantes dias, sobreviveram no que passou a ser conhecido como "Middle Peak Hotel" (o Cook tem três picos e o do meio é o mais elevado), enquanto a opinião pública seguia os acontecimentos pelos noticiários. Um helicóptero conseguiu, entretanto, lançar-lhes alguns alimentos e um pequeno fogareiro com gás. Quando, a 29 de Novembro, a cara do socorrista Don Bogie surge na entrada da fenda de gelo, Inglis e Doole estão vivos, mas os dois perderão ambas as pernas abaixo do joelho devido às congelações. Apesar da dupla amputação, nenhum deles renunciou à vida de aventura e ambos acabaram por voltar, em ocasiões separadas, ao cume do monte Cook. Mark Inglis, notavelmente, acabou por conquistar uma medalha de prata em ciclismo nos Paralímpicos de 2000, em Sydney, e escalou o Evereste em 2006. Não sem polémica: durante a subida e, depois, na descida, o grupo de Inglis passou por um alpinista britânico em dificuldades a mais de 8500m sem o ajudar. David Sharp acabou por morrer.
Siula Grande, 1985
Até onde podem ir a fidelidade e o sacrifício pessoal em benefício de um camarada de aventura? Simon Yates sabe a resposta. A sua resposta, porém, porque muita gente não lhe perdoa a decisão de, naquele dia nos Andes, em 1985, ter cortado a corda que segurava o seu parceiro Joe Simpson. Ambos tinham conseguido a primeira escalada bem sucedida da face Oeste do Siula Grande (6344m), um pico situado no Peru. Mas na descida Simpson caiu e fracturou uma tíbia. Já sem combustível para o fogão e com o glaciar ainda a mais de mil metros verticais de distância, eles tinham de descer. E depressa: o dia estava a chegar ao fim e o mau tempo aproximava-se. Yates atou duas cordas de 50 metros uma à outra e começou uma agonizante rotina: Simpson atava-se à corda e o seu companheiro descia-o, a pulso, até a corda se esgotar. Então o primeiro preparava uma plataforma para o segundo se instalar, enquanto esperava que este chegasse. E voltava a ser descido por Yates. Até que, numa zona sem visibilidade, Simpson ficou pendurado num precipício, sem ser capaz de subir, enquanto Yates, ignorando o que se passava 100 metros abaixo, resistia com a corda nas mãos, os dedos gelados e o chão a fugir-lhe debaixo do corpo. Após uma hora de agonia, e também ele à beira de se despenhar montanha abaixo, cortou a corda e acabou por descer em segurança para o campo-base, julgando o companheiro morto. Mas Joe Simpson não tinha morrido. Caiu numa fenda (e por isso o parceiro não o viu quando por ali passou), mas conseguiu subir pelo gelo e arrastou-se montanha abaixo até à salvação. No hospital, os médicos disseram-lhe que não deveria voltar a andar. Dois anos depois, estava de regresso às montanhas. Escrevera, entretanto, um livro, Touching the Void, onde dá voz a Simon Yates para este recordar, e explicar, a terrível decisão que teve de tomar. A obra já vendeu quase 1,5 milhões de exemplares em todo o mundo.
Monte Foraker, 1992
Colby Coombs tinha 25 anos quando, em Junho de 1992, se juntou a dois amigos, Ritt Kellog e Tom Walter, para umas férias nas montanhas do Alasca e uma tentativa de escalar o monte Foraker (5304m), o quarto pico mais alto dos EUA. Após uma subida difícil mas sem episódios dramáticos, a descida começou logo a correr mal quando uma tempestade se abateu sobre a região. A acumulação de neve desencadeou então uma avalancha, que os arrancou da aresta por onde progrediam e os projectou numa queda de 250 metros por entre um verdadeiro rio de neve. Quando acordou, seis horas depois, Coombs, que sofrera fracturas num tornozelo, numa omoplata e em duas vértebras do pescoço (mais uma concussão), constatou que ainda estava preso pela corda aos seus dois companheiros. Um deles, percebeu de imediato, estava morto. Mas não via o outro e a noite caíra entretanto, pelo que se resignou a passar as horas de escuridão na pequena saliência onde se encontrava. Na manhã seguinte, confirmou que ambos os amigos tinham perecido na avalancha. Cortou a corda e lançou-se numa impressionante saga de quatro dias que o levou a descer a montanha e caminhar mais oito quilómetros ao longo do perigoso glaciar Kahiltna até chegar ao campo-base do monte McKinley, onde foi, finalmente socorrido. Hoje, tem uma escola de montanhismo e garante que só conta a sua história quando vem a propósito para ensinar alguma coisa aos instruendos. Desses dias dramáticos recorda o que repetiu para si próprio vezes sem conta durante a longa descida: "Mantém os olhos abertos e ignora a dor."
K2, 2004
A frase é de Joe Simpson e não há maneira de a desmentir: "A gravidade é uma coisa fantasticamente democrática. Não distingue bons e maus escaladores quando começam a cair." A sabedoria tradicional portuguesa completaria esta máxima com outra: "Quanto mais alto se sobe, maior a queda." E ambos os aforismos se aplicam quando recordamos a história do espanhol Juanito Oiarzábal no K2 (8611m, Paquistão). Esta não é uma montanha qualquer: trata-se do segundo pico mais alto do planeta depois do Evereste (8848m) e é considerada a mais difícil entre todas as 14 com mais de 8000 metros. Mas também Oiarzábal não é um alpinista qualquer: ele foi o quarto homem a conseguir escalar todos os 14 "8000" sem oxigénio artificial e ninguém pisou mais vezes (24) os cumes destas montanhas. Continua a escalar, mesmo depois de perder todos os dedos dos pés após essa jornada de Julho de 2004. Apesar da sua experiência, uma equipa espanhola cometeu um erro de principiantes: os quatro alpinistas ignoraram as regras da prudência e alcançaram o cume já muito tarde e tiveram de descer no escuro para um dos campos de apoio em altitude. O primeiro a chegar ao campo 4 foi Mikel Zabalza, pelas 22h00. Juan Vallejo e Edurne Pasaban só apareceram às duas da manhã, depois de se terem separado de Oiarzábal a escassas dezenas de metros das tendas. Mas Juanito não aparecia. Afectado por um edema cerebral que o deixava quase cego, desorientado, sem forças e gelado, Juanito já não conseguiu chegar às tendas. Sentou-se para morrer. Outro espanhol, Ferrán Latorre, decidiu abdicar da sua tentativa de cume e sair para o procurar, acompanhado do italiano Sílvio Mondinelli. A generosidade destes dois salvou a vida a Oiarzábal. Isso e uma dose de sorte quase inacreditável: na imensa vastidão do flanco da montanha, Latorre e Mondinelli progrediram praticamente às escuras e, ao cabo de duas horas de angústia, tropeçaram em Juanito. Não há probabilidades matemáticas que expliquem isto.
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