Francisco Afonso Chaves Uma obra na escuridão

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As primeiras fotos científicas de cachalotes, de Afonso Chaves, na costa norte de São Miguel

Conhece-se Francisco Afonso Chaves como militar de formação, cientista autodidacta, zoólogo e meteorologista profissional. Agora é a vez de Afonso Chaves, o fotógrafo. Um legado de cerca de 10 mil imagens - um homem da renascença à medida da elite açoriana liberal da viragem do século XIX para o século XX.

Inverno de 1891. Três décadas depois do arranque da construção do porto artificial de Ponta Delgada, a obra estava em luta contra o século - e ainda alguns anos - de que precisaria até à sua conclusão.

Francisco Afonso Chaves (1857-1926), cientista autodidacta então com 34 anos, começara há já algum tempo a juntar-se como naturalista aos mergulhadores que, enfiados em enormes escafandros de cobre e latão, trabalhavam nos blocos submersos da construção.

Carta do investigador francês Jules de Guerne de dia 1 de Dezembro: "As suas explorações submarinas podem fornecer resultados muito interessantes. Barrois já me tinha falado dos escafandristas do Porto de Ponta Delgada. Penso que V. se serve dos seus aparelhos. Um naturalista assim apetrechado pode melhor encontrar coisas que um simples contratado nunca detectaria."

Era o mesmo Jules de Guerne que um ano antes, em Março de 1890, escrevera a Afonso Chaves sobre a aplicação de outra tecnologia nova para a ciência - a fotografia: "Tive recentemente ocasião de apresentar à Sociedade Zoológica de França as fotografias de Cetácios que V. me enviou. Elas interessaram muito os meus colegas que manifestaram o desejo de fazer reproduzir pelas técnicas fotográficas alguns desses documentos."

Tratava-se das "primeiras fotografias científicas" alguma vez feitas de um cachalote, "as imagens que permitiriam fixar definitivamente os traços exteriores deste animal tão célebre como mal conhecido", segundo um artigo co-assinado pelo próprio Afonso Chaves na publicação francesa Jornal para a Anatomia e a Fisiologia Normal e Patológica do Homem e dos Animais.

Ao que temos à frente dificilmente chamaríamos hoje "fotografia científica", esta imagem de uma massa negra a meia distância, atada com cordas à orla marítima: um cachalote morto por pescadores e trazido até à costa norte de São Miguel; dois desses pescadores estão em pé sobre o dorso da captura, um deles apoiado sobre um arpão. Os fios e a mancha branca indistintos, junto à cauda, devem ser sangue a escorrer. Com atenção, na outra ponta do corpo, percebe-se o recorte do que será a boca semiaberta do animal.

A imagem, reproduzida no catálogo da exposição Ilhas e História Natural, que esteve no Museu Carlos Machado de Ponta Delgada entre Fevereiro e Maio do ano passado, remete-nos para a faceta mais estudada de Afonso Chaves: o homem da ciência, um erudito com cerca de 150 correspondentes internacionais ligados às suas diversas áreas de interesse, entre os quais mais do que um Prémio Nobel (por exemplo Frijdof Nansen, explorador do Pólo Norte, Prémio Nobel da Paz em 1922).

Da zoologia à mineralogia, passando pelo magnetismo terrestre, a meteorologia e a vulcanologia: na altura, Afonso Chaves era "o sábio da terra", diz a investigadora Conceição Tavares, a concluir um doutoramento sobre Afonso Chaves no departamento de História e Filosofia das Ciências da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Viajante e fotógrafo obsessivo

Amigo de Alberto I do Mónaco (1889-1922), que conheceu em 1887, na altura das primeiras campanhas oceanográficas do príncipe e quando este começava a esboçar um projecto internacional de estudos meteorológicos para os Açores, Afonso Chaves foi director do Posto Meteorológico de Ponta Delgada e, em 1893, embaixador do projecto junto dos Institutos e Observatórios europeus.

Foi também o escolhido pela Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada - o embrião do Governo Autónomo dos Açores - para, no Instituto Pasteur de Paris, receber formação especializada e adquirir todo o material necessário à montagem do futuro gabinete de bacteriologia da ilha, ensinando, por sua vez, médicos e enfermeiros.

Viajante raro para a época, tendo conhecido grande parte da Europa - ou, pelo menos, Espanha, França, Itália, Alemanha e Noruega -, é também conhecido o seu périplo de 1906 por África, passando por Cabo Verde, entrando no continente pela África do Sul e Moçambique e acabando por regressar a casa pelo Canal do Suez.

Ao longo de todas essas viagens e em todos os seus trabalhos de campo nos Açores e Portugal continental, bem como em muitíssimos momentos da sua vida quotidiana, Afonso Chaves fotografou obsessivamente - e esta é a faceta do seu percurso que só agora começa a revelar-se.

Da Europa do período entre guerras Afonso Chaves deixou imagens de cidades completamente destruídas, no seu périplo africano registou espécimes animais e paisagens e a sua travessia do Canal do Suez ficou documentada em cada momento, numa sequência de dezenas de imagens.

Esta prática acabaria por se traduzir num legado de mais de 10 mil exemplares fotográficos. Quatro mil entraram em 1965, como doação, no Museu Carlos Machado de Ponta Delgada, vindos da Terceira, onde estavam com o presidente da Sociedade Francisco Afonso Chaves, fundada em 1932, seis anos após a morte do investigador. Juntamente com o legado de outros naturalistas nacionais, deu entrada na Torre do Tombo, em Lisboa, um número por apurar de outras imagens. E os herdeiros de Afonso Chaves têm à sua guarda ainda mais cinco mil, juntamente com toda a correspondência e os diários relativos ao período entre 1889 e 1914.

Ohar de artista

Vítor dos Reis, coordenador do mestrado em Arte e Multimédia da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, fala numa "obra na escuridão". Porque mesmo com um legado de dimensão tão extraordinária para o Portugal da época, Afonso Chaves é praticamente desconhecido como fotógrafo, não tendo, por exemplo, qualquer entrada na História da Imagem Fotográfica em Portugal - 1939-1997 (ed. Porto Editora, 1998), de António Sena, o único estudo exaustivo da fotografia nacional, com referência a cerca de 400 autores.

Visto e estudado até agora sobretudo como material de apoio à investigação científica, o legado fotográfico de Afonso Chaves está ainda praticamente virgem no que toca à análise estética. Mesmo a fatia que entrou para a colecção do Museu Carlos Machado.

Vítor dos Reis desconhecia-o em absoluto quando começou a pesquisa para o comissariado da exposição A República e a Modernidade: Revelar, Renovar, Regressar, que esteve no museu durante os últimos quatro meses e que amanhã encerra. A partir da "descoberta", decidiu agora dedicar a Afonso Chaves o seu trabalho de investigação de pós-doutoramento.

"Foi uma espécie de epifania", diz.

Para este investigador, o que está ali, entre as quatro mil imagens do museu, "é um olhar de artista, e não outro", é "um olhar fotográfico marcadíssimo em termos de composição e enquadramento", uma "consciência visual notável e assombrosamente moderna".

"Se não soubesse, nunca perceberia, por exemplo, que algumas das fotografias têm a ver com a criação do serviço meteorológico."

Exemplos concretos, entre as 20 imagens que acabaram por integrar a exposição: uma vista, datada de Agosto de 1902, do Ilhéu de Fernanjós, em Santa Cruz das Flores - uma pequena enseada com um barco a meio e, a meio da praia de seixos, um homem junto ao grande tripé de um teodolito, um instrumento de medição utilizado na topografia, na geodesia e na agrimensura; noutra imagem, datada do mesmo ano, surge o mesmo instrumento instalado no meio de uma paisagem desértica da Estação Magnética do Cerrado da Lomba, com o Pico de Maria Dias ao fundo, um recorte oblíquo a servir de horizonte.

Mesmo em imagens como estas, em que Afonso Chaves retrata os objectos do seu quotidiano como investigador, Vítor dos Reis não vê um real interesse científico (nenhuns dados fundamentais para investigação, nenhuma conclusão que se possa retirar) - vê, isso sim, qualidade estética.

Quase fotojornalista

E, depois, há todo o resto do legado, em que Afonso Chaves deixa completamente de parte a ciência e se dedica, por exemplo, à reportagem ou a uma aproximação ao fotojornalismo que em termos nacionais teve Joshua Benoliel como figura emblemática.

À exposição do Carlos Machado chegou, por exemplo, um retrato do próprio Afonso Chaves ao lado seu amigo Charles Richet, futuro Nobel da Fisiologia, ambos de escafandro num dia de expedição subaquática no porto de Ponta Delgada. Mas também as paradigmáticas imagens da inauguração da Avenida Príncipe Alberto do Mónaco, em 1904, e da visita régia de D. Carlos, em 1901.

Em ambos casos, Afonso Chaves posiciona-se como um fotojornalista, atrás das nucas, dos chapéus dos homens e dos guarda-chuvas da multidão que enchem os enquadramentos. Posicionou-se como observador externo, mesmo na visita régia, durante a qual, como amigo pessoal de D. Carlos e membro de uma das mais destacadas famílias do arquipélago, deveria fazer, na verdade, parte do próprio acontecimento, podendo tê-lo fotografado desse ponto de vista mais próximo.

"Esta opção tem razões intrinsecamente visuais, e nada de científico", defende Vítor dos Reis. A posição que mantém também face a outra opção central de Afonso Chaves, uma opção hoje difícil de perceber.

Entre 1901 e 1926, período coberto pelas imagens na colecção do Museu Carlos Machado, Afonso Chaves fotografou exclusivamente com uma pesada máquina estereoscópica com que já vinha fotografando desde há anos, um aparelho de lente dupla, a imitar os olhos humanos, que dava a ilusão de profundidade do 3D às imagens fixadas em chapa de vidro quando vistas através de aparelhos adequados.

Era uma técnica que tivera o seu auge no final da década de 1850 e fora morrendo, nomeadamente face à implantação da Kodak, então já com 20 anos, uma técnica que caíra em desuso a partir da viragem do século, relegada para a categoria de curiosidade óptica "no momento mais ou menos preciso em que a decide utilizar", sublinha Margarida Medeiros, convidada por Vítor dos Reis a escrever para o catálogo da exposição.

Precisamente, o anacronismo da aplicação de uma técnica já "obsoleta" foi o primeiro e principal problema com que esta especialista se defrontou nestes primeiros passos de análise estética do legado de Afonso Chaves.

"Um moderno"

No texto para o catálogo da mostra, Margarida Medeiros, tal como Vítor dos Reis, aponta o investigador como "um moderno", por exemplo, na forma como destrói o plano geral paisagístico para criar diferentes planos dentro de uma mesma imagem, na forma como insinua o sujeito por detrás da câmara, marcando o ponto de vista subjectivo, como denuncia o movimento no interior da imagem deixando antever a estética do snapshot, ou como inclui na imagem o próprio dispositivo fotográfico, encenando o que se viria a chamar "mise-en-abîme". Mas Margarida Medeiros deixa esta pergunta sem resposta: qual a motivação de Afonso Chaves ao escolher para isto a estereoscopia?, como cientista, poderá ter sido movido pelo preciosismo do aparelho?

A investigadora Conceição Tavares acredita que a resposta é afirmativa - preciosismo, e não um anacronismo motivado pela ignorância dos avanços da época e suas implicações.

Para além da erudição clássica, Conceição Tavares diz que Afonso Chaves era "um homem das novas tecnologias"- um homem da renascença à medida do seu tempo e da elite açoriana liberal da viragem do século XIX para o século XX.

"Para o olhar naturalista, nenhuma técnica se aproximava mais da realidade da natureza do que a técnica tridimensional", sublinha a investigadora, indo ao encontro de hipóteses levantadas por Margarida Medeiros, que cita o norte-americano Oliver Wendell Holmes, grande difusor da técnica ("A posteridade, a partir daqui pode inspeccionar-me não apenas como superfície, mas em toda a dimensão", escreveu Holmes).

As leituras de Conceição Tavares vão precisamente ao encontro de uma personalidade que, na sua opinião, era sobretudo um "naturalista clássico".

"Afonso Chaves era um homem extremamente inteligente, sensato e pragmático e estas três características definem toda a sua prática profissional", diz. "Ele lia tudo o que se publicava e estava a par da evolução do pensamento e das práticas das ciências e da natureza, mas manteve a sua ligação central às práticas clássicas. Valorizou sempre o trabalho de campo, em detrimento das práticas laboratoriais que fizeram entrar em decadência esse mesmo trabalho a que hoje estamos a voltar."

Exactamente da mesma forma que valorizou as mais-valias de uma prática fotográfica tida como obsoleta.

"No contexto da fotografia ocidental do virar do século XIX para o princípio do século XX não há ninguém que tenha feito da estereoscopia um modo de fotografar. Ele podia ter feito aquelas fotos com outra técnica. Sem dúvida. O excepcional é ele conseguir aquela qualidade na estereoscopia", diz Vítor dos Reis.

O trabalho a que este investigador se propôs será estudar agora também as cinco mil imagens, a correspondência e os diários da parte do legado nas mãos dos herdeiros, perceber as grandes linhas constantes, as grandes tipologias, comprar documentação e, por fim, fazer o processo culminar numa grande exposição.

Uma brecha na história

João Luís Cogumbreiro é, na família, o guardião do espólio de Afonso Chaves, seu trisavô. Uma das suas expectativas é que os Grimaldi aprovem a publicação dos diários de Alberto I, uma espécie de "ouro sobre azul" na crescente atenção dada a Afonso Chaves.

Junto de Jacqueline Carpine-Lancre, bibliotecária principal do Museu Oceanográfico do Mónaco, Cogumbreiro conseguiu perceber que o que tem escondido um pouco a força da figura de Afonso Chaves é o facto de, com as duas guerras, o espólio da maior parte dos seus correspondentes europeus se ter perdido, levando a que historiadores internacionais não se vão deparando com o seu nome. Nos diários de Alberto I será bastante referido. O seu nome constitui, aliás, uma das entradas biográficas da publicação com que o Museu Oceanográfico do Mónaco comemorou o centenário da Campanha da Princesa Alice de 1896, com imagens, por exemplo do Príncipe Alberto a bordo de pequenos baleeiros açorianos e de visita à Caldeira do Corvo. Na publicação, Afonso Chaves é apontado como detentor de "uma competência notável" na zoologia, botânica, geologia, magnetismo terrestre, vulcanologia, oceanografia e meteorologia. "Sob sua direcção, o Serviço Meteorológico dos Açores torna-se num elemento de primeira importância a nível internacional, tanto para as observações como para as previsões", diz o texto. Concluindo: "O Príncipe Alberto testemunhou repetidamente a estima que lhe inspiram a inteligência e força do trabalho e a perfeita educação de F. A. Chaves."

Cogumbreiro, que tem vindo a estudar os materiais de família, diz que se percebe facilmente que o seu trisavô tinha um "grande sentido de oportunidade" e "sabia muito bem tirar partido da sua rede de contactos". Sendo metódico ao ponto de guardar para si uma cópia manuscrita de cada carta que enviava.

A saída de missivas e entrada de respostas sucedem-se a ritmos de cerca de três semanas a um mês dentro da Europa. Eram 15 dias de viagem para uma carta de Ponta Delgada a Lisboa; Inglaterra, devido aos navios de transporte de laranja, fundamental na economia local da época de Afonso Chafes, podia ser mais rápido: 12 dias. É um aspecto a estudar. Os diários, datados de 1889 a 1914 serão outra grande fonte, com "muita informação subentendida, que tem de ser descodificada e fixada", em cruzamento com os "borrões", as páginas de papel reutilizadas, primeiro escritas na horizontal, depois na vertical.

Poupava-se papel, na altura. E fazia parte da economia doméstica de um homem que não era rico e se via frequentemente financiado por um cunhado, comerciante.

É do pouco que se conhece, diz Cogumbreiro, sobre as ligações familiares de Afonso Chaves, que teria uma relação muito próxima com a mulher e a única filha, por quem terá decidido não aceitar um posto militar na Índia. "Era uma pessoa muito reservada. Podia ser uma figura pública, mas era muito exigente no filtro e na ordem das coisas", diz Cogumbreiro que, entre as ligações locais do trisavô, conhece apenas traços fugazes de uma ligação a Antero de Quental (1842-1891).

O escritor e poeta vivia perto do quartel de Afonso Chaves, que era coronel. Incomodado com o barulho dos soldados e dos permanentes toques de alvorada, terá conhecido Afonso Chaves quando foi queixar-se. Terão ficado amigos.

Conta-se que a 11 de Setembro de 1891, horas antes de se suicidar, Antero foi a casa do seu amigo coronel. Afonso Chaves não estava.

vanessa.rato@publico.pt

A jornalista viajou a convite da Direcção Regional de Turismo dos Açores e do Museu Carlos Machado

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