As revoluções pacíficas são inspiradas por um homem que não tem página no Facebook

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Página ao lado Hla Hla HTAY/afp

Gene Sharp precisa de uma cábula para ler um email, mas os seus conselhos sobre como derrubar regimes sem recurso à violência inspiraram vários movimentos de oposição, da Birmânia ao Egipto. As suas ideias podem ser fatais para os autocratas.

Do outro lado do mundo da Praça Tahrir no Cairo, um idoso intelectual norte-americano arrasta os pés pela sua casa de tijolo num bairro da classe trabalhadora de Boston. Chama-se Gene Sharp. Aos 83 anos, tem os ombros curvados e os cabelos brancos, cultiva orquídeas, ainda não domina a Internet e dificilmente parece um homem perigoso.

Mas, para os déspotas do mundo, as suas ideias podem ser fatais.

Poucas pessoas ouviram falar do sr. Sharp. Mas, há décadas, os seus escritos práticos sobre a revolução não-violenta - sobretudo From Dictatorship to Democracy, um guia de 93 páginas sobre como derrubar autocratas, escrito para o movimento democrático birmanês em 1993, após a detenção de Aung San Suu Kyi, cujo descarregamento na Internet está disponível em 24 línguas e que já foi traduzido para mais de 30 - inspiraram dissidentes em todo o mundo, incluindo na Birmânia, Bósnia, Estónia, Zimbabwe e agora na Tunísia e no Egipto. Na Ucrânia de Viktor Ianukovich, tal como na Sérvia de Slobodan Milosevic, as suas quedas foram feitas às mãos de movimentos democráticos devedores das suas ideias.

No Egipto, quando o Movimento 6 de Abril lutava para se recuperar de um esforço falhado em 2005, os seus líderes atiravam "ideias loucas" sobre como derrubar o Governo, como recorda Ahmed Maher, um dos seus estrategas de topo. Tropeçaram em Sharp quando examinavam o movimento sérvio Otpor, que ele tinha influenciado.

Quando o Centro Internacional de Conflito Não-Violento, independente, não-partidário e que treina activistas da democracia, se infiltrou no Cairo há alguns anos para leccionar um workshop, 198 Methods of Nonviolent Action, de Sharp, estava entre os documentos que distribuiu. Trata-se de uma lista de tácticas que vão de greves de fome a "despir-se como protesto", passando pela "revelação das identidades de agentes secretos".

Dalia Ziada, uma activista e blogger egípcia que esteve presente no workshop e que mais tarde organizou ela própria sessões similares, diz que aqueles aprendizes estiveram activos tanto na revolta tunisina quanto egípcia. Segundo ela, alguns activistas traduziram excertos da obra de Sharp para árabe e a sua mensagem de "atacar as fraquezas dos ditadores" ficou com eles.

Peter Ackerman, outrora aluno de Sharp que fundou o centro de não-violência e leccionou o workshop do Cairo, cita o seu antigo mentor como sendo prova viva de que "as ideias têm poder".

Sharp, pragmático mas extremamente tímido, é cuidadoso na forma como não assume responsabilidade ou crédito pelo que está a acontecer e já aconteceu um pouco pelo mundo. É mais um pensador do que um revolucionário, embora enquanto jovem tenha participado em ocupações pacíficas (sit-ins) e tenha passado nove meses numa prisão federal em Dansbury, no estado do Connecticut, por ser objector de consciência durante a Guerra da Coreia. Não teve qualquer contacto com os manifestantes egípcios, disse, embora tenha sabido recentemente que a Irmandade Muçulmana publicou From Dictatorship to Democracy no seu site.

Ao mesmo tempo que vê a revolução que expulsou Hosni Mubarak como um "sinal de encorajamento", "o povo do Egipto fez aquilo - não eu", diz Sharp.

Testemunha de Tiananmen

Da sua casa modesta na zona leste de Boston, que comprou em 1968 pelo equivalente a 110 euros (mais impostos atrasados), Gene Sharp tem visto o desenrolar dos acontecimentos no Cairo através da CNN. A sua casa faz também as vezes da Albert Einstein Institution, uma organização que fundou em 1983, ao mesmo tempo que conduzia seminários na Universidade de Harvard e que ensinava Ciência Política naquela que é hoje a Universidade de Massachusetts, em Dartmouth. A instituição consiste nele, na sua assistente Jamila Raqib, cuja família fugiu da opressão soviética no Afeganistão quando ela tinha cinco anos, num gestor de escritório em part-time e numa Golden Retriever chamada Sally. A parede do escritório tem um autocolante em que se lê "Gotov Je!" - "Ele está acabado!" em sérvio.

Nesta era de revolucionários do Twitter, a Internet tem pouco encanto para Sharp. Ele não está no Facebook e não se aventura pelo site da Albert Einstein Institution. ("Devia", diz, desculpando-se.) Se tem de enviar um email, consulta um bilhete manuscrito que Raqib colou na ombreira da porta perto do seu novíssimo computador Macintosh, num escritório repleto de livros e papéis. "Para abrir um email em branco", lê-se no bilhete, "clique uma vez no ícone que diz "novo" no cimo da janela".

Algumas pessoas suspeitam de que Sharp é um pacifista e esquerdista no armário - nos anos 1950, escreveu para uma publicação chamada Peace News e trabalhou como secretário pessoal de A. J. Muste, um conhecido activista sindical e pacifista - mas ele insiste que já cresceu para além do seu próprio pacifismo inicial. Descreve-se como "transpartidário".

Baseando-se em estudos de revolucionários como Gandhi, revoltas não-violentas, lutas dos direitos civis, boicotes económicos e afins, Gene Sharp concluiu que a evolução da liberdade exige estratégia cuidadosa e planeamento meticuloso, conselhos que Ziada diz terem ressoado junto dos jovens líderes egípcios. O protesto pacífico é melhor, diz Ziada - não por qualquer razão moral, mas porque a violência provoca um aumento do domínio por parte dos autocratas. "Se lutamos com violência", diz Sharp, "estamos a lutar com a melhor arma do nosso inimigo e pode-se ser um herói corajoso, mas morto".

Os autocratas abominam Sharp. Em 2007, o Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, denunciou-o e, segundo telegramas diplomáticos obtidos pelo grupo anti-secretismo WikiLeaks, as autoridades da Birmânia acusaram-no de fazer parte de uma conspiração para desencadear manifestações com a finalidade de "fazer cair o Governo". (Um ano antes, um telegrama da Embaixada dos EUA em Damasco dava conta de que dissidentes sírios tinham treinado a não-violência lendo os escritos de Sharp.)

Em 2008, o Irão colocou Sharp, juntamente com o senador John McCain e com o financeiro democrata George Soros, num vídeo de animação de propaganda que acusava Sharp de ser um agente da CIA, "encarregado da infiltração da América noutros países", uma alegação que os seus colegas académicos consideram risível.

"Ele é geralmente considerado o pai de todo o campo de estudo da acção estratégica não-violenta", diz Stephen Zunes, perito na área na Universidade de São Francisco. "Algumas destas histórias exageradas, dele a ir mundo fora começar revoluções e a liderar multidões... que anedota. Ele gosta muito mais de fazer investigação e de trabalho teórico do que gosta de o disseminar."

Tremendo conhecimento

O que não quer dizer que Sharp não tenha participado em qualquer acção. Em 1989, viajou até à China para testemunhar a revolta na Praça Tiananmen. No início dos anos 1990, esgueirou-se até um campo rebelde na Birmânia a convite de Robert L. Helvey, coronel reformado do Exército que era consultor da oposição birmanesa. Conheceram-se quando Helvey estava, graças a uma bolsa, em Harvard; o militar pensava que o professor tinha ideias que evitassem a guerra. "Ali estávamos naquela selva, a ler o trabalho de Gene Sharp à luz das velas", lembra o coronel. "Este tipo tem um tremendo conhecimento sobre a sociedade e as dinâmicas do poder social."

Nem toda a gente fica tão impressionada com Sharp. As"ad AbuKhalil, um cientista político libanês e fundador do blogue Angry Arab News Servisse, ficou indignado com uma breve menção a Sharp numa edição recente do New York Times. Queixou-se de que os jornalistas ocidentais estavam à procura de um Lawrence da Arábia para explicar o sucesso dos egípcios, numa tentativa colonialista de negar aos egípcios o crédito pelos seus feitos.

Ainda assim, à medida que o perfil público de Sharp parece estar em crescendo, o seu instituto está a contrair-se. Ackerman, que enriqueceu na sua actividade como banqueiro de investimentos depois de ter estudado com Sharp, contribuiu com milhões de dólares para manter o instituto à tona durante anos. Mas, há cerca de uma década, Ackerman quis disseminar as ideias de Sharp, bem como as suas, de forma mais agressiva. Direccionou o seu dinheiro para o seu próprio centro, que também produz filmes e até um videojogo para treinar dissidentes. Uma anuidade sua ainda ajuda a pagar o salário de Sharp.

No crepúsculo da sua carreira, Sharp, que nunca se casou, está a abrandar. A voz treme-lhe e os olhos azuis ficam aguados quando está cansado; desistiu de conduzir depois de um acidente recente. Faz as suas próprias compras; a sua assistente, Jamila Raqib, tenta segui-lo quando o chão está coberto de gelo. Ele não gosta disso.

Diz que o seu trabalho está longe de estar terminado. Acabou de submeter um manuscrito de um novo livro, Sharp"s Dictionary of Power and Struggle: Terminology of Civil Resistance in Conflicts, para ser publicado neste Outono pela editora Oxford University Press. Gostaria que os leitores soubessem que não escolheu o título. "É um pouco imodesto", diz. Está a trabalhar noutro manuscrito sobre Einstein, cujas preocupações sobre totalitarismo levaram Sharp a adoptar o nome do cientista para a sua instituição. (Einstein escreveu o prefácio do primeiro de livro de Sharp, sobre Gandhi.)

Entretanto, está de olho no Médio Oriente. Ficou impressionado pela disciplina dos manifestantes egípcios ao manterem-se pacíficos e especialmente pela sua falta de medo. "É saído de Gandhi", diz Sharp. "Se as pessoas não tiverem medo da ditadura, a ditadura está em grandes apuros."

Com Andrew W. Lehren, em Nova Iorque, e David D. Kirkpatrick, no Cairo.

Exclusivo Público/New York Times

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