Na primeira pessoaSérgio Azevedo Ser o primeiro não significa ser o melhor

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Nuno Ferreira Santos

O compositor estreia hoje, às 21h30, no Cine-Teatro de Loulé, mais um conto musical com a Orquestra do Algarve: Romance do Grande Gatão, sobre texto de Lídia Jorge, num concerto comemorativo dos 30 anos do lançamento do primeiro romance da escritora. Com extensa obra dedicada às crianças, Sérgio Azevedo acaba também de ser distinguido com o Prémio SPA pelo seu Concerto para Piano. "A ideia romântica do criador no seu nicho com a sua linguagem metafísica não me atrai", diz. A sua preocupação é compor para a comunidade e para o mundo presente. Por Cristina Fernandes

Quando o maestro Osvaldo Ferreira me propôs incluir um dos meus contos narrados para crianças numa série de concertos com a Orquestra do Algarve colocou-se o problema da instrumentação, uma vez que tanto a História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar como Os Gnomos de Gnu [a partir dos textos de Luís Sepúlveda e Umberto Eco] foram compostos para um grupo de 18 instrumentos solistas. São obras que também podem funcionar com orquestra, mas eu prefiro ouvir as cordas solistas. Por isso decidi compor uma nova peça a pensar na constituição da Orquestra do Algarve. O texto foi-me proposto, uma vez que o concerto de estreia, em Loulé, seria uma homenagem a Lídia Jorge, comemorando os 30 anos do lançamento do seu primeiro romance, O Dia dos Prodígios. Só me lembrava de uma obra para crianças dela, mas fui à procura e encontrei O Romance do Grande Gatão, que tinha sido lançado há uns meses. É um conto que vai ao encontro do que eu gostava de fazer, pois aborda temas como a tolerância e o racismo. O protagonista é um gato e eu adoro gatos! A Lídia Jorge deu-me autorização para adaptar o texto de acordo com as necessidades musicais. Foi de uma generosidade absoluta. Sendo a personagem principal um gato, escolhi, tal como Prokofiev, o clarinete para evocar o Grande Gatão, embora não exista nenhum tema associado ao timbre. A família africana é evocada pela marimba e a terrível luta entre os dois gatos é ilustrada por dois clarinetes que "combatem" entre si no meio da orquestra.

A vantagem de escrever para uma orquestra com uma formação tradicional é que, depois da estreia, poderei propor a obra a outras orquestras. Sou um compositor prático, tento compor em função da realidade que me rodeia e não para a gaveta. As condicionantes são um estímulo à imaginação. Ter tudo à disposição não produz necessariamente obras-primas. A escrita de obras para crianças está englobada na minha linha de contribuir para a comunidade e de me inserir no mundo. Isto não quer dizer que faça concessões para conquistar o público, escrevo a música que quero. Tenho a consciência de que as crianças vão ser os principais destinatários, mas nada me impede de usar um cluster, um glissando ou qualquer outro recurso. Faço-o dentro de uma certa ilustração musical que permita às crianças absorver esse tipo de linguagem, um princípio válido para toda a minha obra. A minha música para crianças não é muito diferente do resto. Se ouvirmos este conto e tirarmos a história fica algo parecido com outras criações minhas. O mesmo poderíamos dizer do Pedro e o Lobo. Se tirarmos a história, o que ouvimos é a linguagem de Prokofiev dos anos 30 e 40. O segredo é que agrada a toda a gente. É a comunicação que conta. As pessoas ouvem mais música contemporânea do que pensam, nomeadamente no cinema.

Comecei a escrever obras para crianças porque me pediam. Fiz muitas peças para a Academia de Amadores de Música, música para piano e canções, várias delas foram gravadas num disco com o coro infantil dirigido pela Paula Coimbra. A minha namorada também dirige coros infantis e grande parte do que tenho escrito nos últimos anos são canções, cantatas e peças para voz e instrumentos. Tem a ver com a minha vida pessoal e com a minha vida em comunidade. Também escrevo muitas obras para colegas e amigos. Tenho, por exemplo, muitas peças para clarinete, pois conheço muitos clarinetistas.

É preciso apostar na educação, as crianças são o nosso futuro e os compositores esquecem-se disso. Custa-me muito convencer colegas a escrever para crianças, pois vários deles acham que é um trabalho menor. Têm um preconceito que não se explica, pois há exemplos fantásticos de compositores como Kurtág, Bartók, Britten... Mesmo nos contemporâneos, temos o exemplo de Pascal Dusapin, que tem uma ópera infantil lindíssima [Momo], mas há muitos outros, sobretudo franceses e ingleses. Não há praticamente um compositor que não tenha escrito algo para crianças. Mas noventa e tal por cento dos alunos que chegam à Escola Superior de Música de Lisboa nunca tocaram peças de compositores portugueses contemporâneos. Muitos deles nunca ouviram sequer falar de nós e o meio é tão pequenino! Nos programas de instrumento, continuo a ver peças de compositores estrangeiros obscuros e as portuguesas são muito pouco tocadas. Em todos os países civilizados do ponto de vista musical, a música para crianças e para os jovens faz parte não só da produção normal como das encomendas de Estado.

Escrever música para crianças ou para a comunidade não é só uma questão de criar beleza, divertimento ou cultura, serve também para criar uma consciência de classe. Escrevi o meu livro [A Invenção dos Sons: uma panorâmica da composição em Portugal hoje, Caminho, 1998], para chamar a atenção: temos estes compositores todos e estão a trabalhar. Há um problema grave em Portugal que vem das vanguardas, criam-se facções só porque as pessoas têm estéticas diferentes e assim é difícil criar uma consciência de classe. Eu acho saudável que haja estéticas diferentes, um Emmanuel Nunes ou um Pedro Amaral numa ponta do espectro e na outra um Carrapatoso ou um Pinho Vargas. A diversidade é que faz a riqueza.

Sou muito influenciado pelo Jorge Luís Borges e pelo Pessoa, no sentido em que sempre acharam que cada pessoa não é um, mas são muitos. A ideia romântica do criador no seu nicho com a sua linguagem metafísica não me atrai. Para mim, cada peça é um objecto diferente que tem o seu mundo emocional e poético. Posso fazer música com técnicas diferentes e ser eu próprio. Podem-me chamar pós-modernista, mas eu não sei o que é o pós-modernismo. Não nego que tenho influências, toda a gente sempre as teve. Não me preocupo muito com a posteridade, escrevo para o tempo presente, para mim e para os outros. Não me interessa se daqui a 100 ou 1000 anos ainda vão ouvir a minha obra.

Acho que a minha música é música sobre a música. Em miúdo li muitas biografias de compositores. Para mim, eram amigos, a minha música era uma maneira de comunicar com eles. Os compositores e outros artistas sempre dialogaram com o passado e o presente. A obra do Stravinsky não é mais do que isso. A minha música é música sobre a música, mas não de uma maneira teórica ou estruturalista. Não quero que analisem a minha obra, ela é para ser ouvida, para criar beleza e não para fazer análises tipo escola de Darmstadt.

Continuo sem ter um único disco só com música minha, mas a Internet vem colmatar um bocadinho essa falta. Tenho um canal no YouTube onde se podem ouvir mais de 150 obras minhas. Entre as que considero mais importantes encontra-se o Concerto para dois Pianos (uma encomenda da Gubenkian), a História de uma Gaivota, o Concerto para Piano [distinguido esta semana com o Prémo da Sociedade Portuguesa de Autores] e o Concerto para dois Violinos. O género do concerto atrai-me muito por causa do dramatismo, do jogo do diálogo. Vem ao encontro da minha costela neoclássica e neobarroca. Não me importaria de ter vivido no Barroco, pois não tenho problemas em compor por encomenda. Música funcional não é uma palavra feia, tornou-se feia com as vanguardas dos anos 50 e 60.

Sempre li muito, adoro cinema e interessa-me muito a história, sobretudo a história do século XX. Na literatura, adoro Milan Kundera. É um escrito fantástico e trabalha os romances em termos musicais. Musicalmente, tenho uma paixão por Janacék acima de todas as outras. O final do romantismo e início do século XX é o período que mais me fascina, mas ouço música de todas as épocas. Dos contemporâneos, considero Ligeti um dos compositores mais fantásticos de sempre, embora não tenha influência na minha música. Gosto de ouvir Kurtág, Berio, Thomas Adés... Dos portugueses, Pinho Vargas é um compositor extraordinário e um grande pensador e gosto da música do Tinoco, do Carrapatoso, do Nuno Corte Real, do Alexandre Delgado... Menos do mundo do Emmanuel Nunes ou do Peixinho, o que não quer dizer que não reconheça o seu valor. Podemos reconhecer o valor de uma obra sem criar empatia com ela. Sinto empatia com os compositores mais próximos de mim, mais eclécticos, que não renegam o passado. Já se experimentou tudo, o que interessa é trabalhar com os materiais que existem. Como diz o Pinho Vargas, o importante não é o material em si, mas a maneira como o manipulamos. Será que a originalidade interessa só por si? Ser o primeiro a fazer não significa ser o melhor. Neste momento sinto-me um compositor livre, já não tenho angústias. Será que estou antiquado? Será que sou reaccionário? Já tenho idade suficiente [43 anos] para não me preocupar com essas coisas.

Estou a terminar o doutoramento e agora não estou a compor, mas tenho muitos projectos. Gostava de fazer ópera sobre o último romance do Stefan Zweig, A Piedade Perigosa. Passa-se no Império dos Habsburgo antes da I Guerra Mundial. É uma história psicologicamente extraordinária. Tem acção, drama, romance, aristocracia e bailes, dá possibilidade de ter uma ópera sumptuosa, com uma grande orquestra. É uma história profunda que se passa num período que eu adoro e Zweig é um escritor que me diz muito.

A partir de uma conversa com o compositor

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