É a tartaruga de água doce mais antiga da Europa. E é de Torres Vedras

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Escudo ventral do fóssil de tartaruga com 145 milhões de anos DR

Estavam a escavar os ossos de um dinossauro num morro junto à foz do rio Alcabrichel, perto de Torres Vedras, quando um deles, Bruno Teodoso, literalmente tropeçou numa tartaruga jurássica. Escorregou e, ao roçar com um braço por cima dos sedimentos, destapou acidentalmente o fóssil de uma tartaruga com 145 milhões de anos.

Nessa altura, em 2003, a Associação Leonel Trindade (ALT) - Sociedade de História Natural, de Torres Vedras, continuou por mais três anos a escavação do dinossauro que ficou encravado durante 145 milhões de anos na colina que agora dá para a praia de Santa Rita e para um Atlântico a perder de vista.

A equipa de escavação percebeu logo que tinha em mãos uma tartaruga, recorda Bruno Camilo Silva, director do Laboratório de Paleontologia e Paleoecologia da ALT. "Mas estava muito danificada e não dava para perceber que tipo de tartaruga seria. Só quando se fez o trabalho de preparação em laboratório e a colagem dos fragmentos e se analisou a sistemática filogenética [a relação evolutiva com outras tartarugas] é que percebemos que estávamos perante um animal novo."

Este mês, a revista norte-americana Journal of Vertebrate Paleontology trouxe a descrição da tartaruga de Torres Vedras num artigo de dois paleontólogos espanhóis, Adán Pérez Garcia e Francisco Ortega, ambos da ALT. Segundo o artigo, além de ser a tartaruga de água doce mais antiga da Europa, do Jurássico Superior, pertence a um género e espécie novos para a ciência. Selenemys lusitanica é o nome científico que lhe deram.

"Em Portugal, Espanha, Alemanha, França e Inglaterra, já se tinham encontrado placas soltas desta tartaruga, mas ninguém sabia que tartaruga era. Sabia-se que eram de tartaruga, mas não de que tipo", refere Bruno Camilo Silva. "Como esta é a mais completa e articulada, deu para estudá-la e definir que todas as placas que se apanharam na Europa pertencem a um novo género e espécie."

A descrição baseou-se nos restos da carapaça e do escudo ventral (plastrão) encontrados na colina. Mas na colecção da Sociedade de História Natural há mais quatro indivíduos deste animal até agora desconhecido dos cientistas.

Nascia o Atlântico

Ter uma tartaruga de água doce com esta idade ajuda a completar o puzzle geográfico dos continentes, neste caso no Jurássico Superior. Há 145 milhões de anos, a Europa e a América do Norte começavam a afastar-se uma da outra e, entre as duas, ia nascendo o Atlântico Norte. Não era um oceano a perder de vista, como agora. Com o início da sua abertura, formava-se na faixa oeste da Península Ibérica, em águas pouco profundas, a Bacia Lusitânica. Era a maior das bacias portuguesas interiores de então, que se estendeu desde o Triásico (235 milhões de anos) até ao Cretácico Inferior (que terminou há 99 milhões de anos), estando o Jurássico entre aqueles dois períodos geológicos.

Os fósseis encontrados nos sedimentos da Bacia Lusitânica permitem conhecer os grupos de animais que povoaram a Europa no momento em que ocorria a sua separação da América do Norte. "Temos apanhado em Torres Vedras espécies de dinossauros, e não só, que se pensava que só apareciam na América do Norte", diz Bruno Camilo Silva. Um dos exemplos de dinossauros partilhados pelos dois continentes é o Allosaurus, um carnívoro temível. Outras espécies de dinossauros só tinham uma distribuição europeia ou ibérica. "Um dos nossos objectivos na costa portuguesa é conhecer o processo de abertura do Atlântico Norte no final do Jurássico a partir da análise da semelhança da fauna entre os dois lados", acrescenta Francisco Ortega, também da Universidade Nacional de Educação à Distância, em Madrid. "Até ao momento, a maior parte das análises centrava-se nos dinossauros, porque a informação sobre outros vertebrados, embora existisse, era muito escassa."

Mas e o que se passava com grupos de répteis de menor tamanho? Será que também viviam em ambos continentes ou, estando separados, teriam dado origem a novas formas? "Temos grupos de répteis que parecem ser próprios da Península Ibérica, que é o caso desta tartaruga. Com o processo de abertura do Atlântico, podia haver uma ligação terrestre, mas as barreiras naturais impediam as formas mais pequenas de passar de um lado para o outro." Por isso, os fósseis de tartarugas dão pistas importantes para o estudo das descontinuidades geográficas.

No caso da Selenemys lusitanica, ela pertence a um grupo de tartarugas que estava presente tanto na América do Norte como na Europa, um grupo que ainda hoje existe, chamado pleurosternídeo. Mas é mais aparentada com outras tartarugas europeias do que com formas da América do Norte suas contemporâneas. Esta evolução separada nos dois continentes, gerando espécies próprias em cada um, deveu-se provavelmente à capacidade de dispersão limitada das tartarugas. "Podemos concluir - remata Francisco Ortega - que existiam tartarugas deste grupo para as quais o Atlântico era uma barreira intransponível no final do Jurássico."

A Selenemys lusitanica era pequena, com cerca de 40 centímetros de comprimento. O local onde foi descoberta estava perto do mar da Bacia Lusitânica, mas, pelo tipo de sedimentos, sabemos que era ainda uma zona continental. Era um ambiente fluvial, com linhas de água sinuosas, em forma de meandros, e que seria muito propício à preservação e fossilização de restos de animais do Jurássico Superior.

Agora, a nova tartaruga é umas das preciosidades da colecção de referência da Sociedade de História Natural, criada em 1998. "Neste momento, temos uma das maiores colecções de referência de vertebrados do Jurássico do país", realça Bruno Camilo Silva. "É uma colecção de interesse internacional, com milhares de peças."

Além de dinossauros e tartarugas, tem fósseis de crocodilos, peixes ou plantas, resultantes quer dos trabalhos de campo da Sociedade de História Natural, quer da aquisição, pela Câmara Municipal de Torres Vedras, da colecção de José Joaquim dos Santos, paleontólogo amador que recolheu fósseis na orla costeira da Região Oeste ao longo de 25 anos.

Nos planos imediatos não está a abertura de um museu, mas as visitas à Sociedade de História Natural, que tem a coordenação científica de Francisco Ortega, são bem-vindas. "Costumamos ter visitantes no laboratório e na área de armazenamento, desde escolas, a empresas, associações ou outras pessoas que gostam de ver de perto como trabalhamos com os fósseis", conta Bruno Camilo Silva. "Não existindo um museu, no sentido convencional, o laboratório funciona como tal, onde os visitantes nos vêem trabalhar - em muitos casos, até participam - e onde lhes são explicados vários aspectos da vida e evolução dos dinossauros e de outros animais que pertencem ao nosso acervo."

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