Egipto A revolução do futuro

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Num dos cursos de táctica subversiva no Cairo, o instrutor disse - "O vosso telemóvel é agora o vosso Rick Loomis/Los Angeles Times/MCT

Chamaram-lhe a revolução da Internet, a revolução dos jovens do Facebook. Uma revolução pacífica, sem líderes e sem ideologia, que ninguém previu, mas que em 18 dias derrubou uma das mais sólidas ditaduras do Médio Oriente. Será a revolução do futuro? Que força é esta, que começou na Tunísia, triunfou no Egipto e ameaça tomar o mundo?

Café Cilantro, terça-feira, 4h da tarde, Shahira, 20 anos, jeans justos e sabrinas douradas, o véu no mesmo tom azul da sombra dos olhos, toma um cappuccino, abre o portátil e passa em revista os blogues da revolução. O Cilantro está cheio, como sempre. Este, na praça Mesaha, no bairro de Dokki, perto da Universidade do Cairo, como todos os outros desta espécie de Starbucks egípcio.

Quase todos os clientes são jovens, entre os 15 e os 25 anos, e muitos têm portáteis abertos à sua frente. Os rapazes frugais na indumentária: sapatilhas, jeans e pulôver e um ar entre o intelectual engagé e o nerd. Sinal de status: o saco do portátil.

Elas mais exuberantes. Desde que certas marcas de maquilhagem colocaram à venda linhas muito baratas de produtos, a paisagem humana do Cairo alterou-se. Mesmo sem terem dinheiro para comprar roupas de marcas caras, as jovens egípcias lançaram-se em busca de um estilo. Encontraram-no numa espécie de mistura de civilizações. Usam ténis All Star e calças de ganga, túnica e véu. E maquilhagem no rosto, que, ao permitir a expressão da personalidade e sensibilidade individual, lhes deu um sentido de autoconfiança e ousadia. Da cintura para baixo são ocidentais, para cima orientais.

Ou, como disse na praça Tahrir, com um risinho condescendente, um simpatizante da Irmandade Muçulmana, "envolvem de ganga as partes impuras do corpo". E preservam as puras, como manda o Corão. Sendo que a ganga é símbolo da decadência ocidental. Para as raparigas egípcias, porém, é-o do que há de universal em ser-se jovem. Que para elas é sinónimo de ser-se livre. O véu é a marca da especificidade cultural, da identidade. Não necessariamente da discriminação ou subalternização da mulher. "O véu é um sinal da tradição, da cultura, que eu não rejeito", explica Shahira, estudante de Economia. "Significa a pureza da mulher, a preservação da sua beleza. Ninguém me obriga a usá-lo. Uso porque quero, tal como quero trabalhar, ter a minha carreira, a minha independência e a minha liberdade."

Cidadãs livres de um mundo livre e ao mesmo tempo mulheres muçulmanas, árabes e egípcias. A seus olhos, isto parece muito simples. Não implica qualquer contradição. Deitam-se ao comprido sobre o mapa cultural do mundo e sentem-se em casa. Confortáveis como a uma mesa do Cilantro.

A música ambiente é um soul de cadência suave. As paredes são de madeira ou pintadas de vermelho escuro, cheias de quadros, espelhos e fotografias em sépia, as cadeiras e os sofás de veludo, espalhados por várias salas e recantos. Algumas paredes estão reservadas aos comentários dos clientes. Um deles diz, a marcador azul: Don"t give a flipboutwutpeoplesay. Do wutevayouwant. Bproudofit. Lifeis 2 short. Liveit to theXtreme. Assina: Aisha.

Qual guerra?

A vida é curta e o mundo muda muito depressa. Quando, em Setembro de 2001, um comando da Al-Qaeda lançou aviões contra as torres gémeas de Nova Iorque, estes jovens que enchem o café Cilantro tinham dez anos de idade. Quando a Argélia, na onda que se seguiu à queda do Muro de Berlim, decidiu abrir o regime, e o mundo constatou com horror que a juventude do Magrebe estava com os fundamentalistas islâmicos, a maioria destes clientes do café Cilantro ainda não tinha nascido.

"Lembro-me muito mal do 11 de Setembro", diz Shahira. "Era criança. A guerra no Afeganistão e no Iraque, tudo isso para mim são coisas longínquas. Recordo as discussões que os meus pais tinham em casa, por causa disso, e que o George W. Bush era visto como um ser demoníaco, mas não podíamos criticar o Mubarak por estar do lado dele. Mas nunca senti que essas histórias tivessem alguma coisa a ver comigo. As pessoas da minha idade fartaram-se de ouvir os pais falar de guerras."

Nairy, 23 anos, diz que ouvia sempre atentamente os discursos do Presidente, para ver se o compreendia. Em vão. "Em todos os seus discursos, Mubarak dizia que nos estava a proteger da guerra. Mas qual guerra? Que guerra era essa em que ele estava a impedir que entrássemos?"

Amany, 28 anos, disse, quando acabou de ouvir o último discurso do Presidente: "Ninguém pensa em guerra. Os egípcios amam a paz. Nunca atacaríamos nenhum país. Para quê? Não odiamos ninguém. Só queremos viver em paz, em liberdade e em justiça." E Mohamed Roshy, 31 anos: "Estão sempre a falar do Irão, de Israel, da Arábia Saudita. Isto é o Egipto. Porque nos dizem que Israel e o Irão são um perigo? Somos todos seres humanos. Eu não odeio as pessoas do Irão ou de Israel."

As preocupações dos jovens são outras. Não têm empregos. Quando têm, recebem salários que não chegam para pagar a renda de uma casa, por fazer um trabalho de que não gostam e que raramente tem a ver com o curso que tiraram. Muitos jovens estudaram nas universidades, mas isso não lhes valeu de nada. São obrigados a viver em casa dos pais, não podem constituir família, não podem viajar e muito menos conseguem emigrar. O ensino é mau, mas ninguém se esforça por melhorá-lo, porque não serve para nada - só consegue emprego quem tiver uma cunha, amigos no círculo do poder.

"Sou economista numa empresa estatal, mas ganho 500 libras por mês [cerca de 70 euros]", conta Shafiq, 29 anos. "Uma renda de casa nunca custa menos de 600 libras. Estou a viver com os meus pais e nunca poderei sair de lá. Não tenho qualquer perspectiva de carreira profissional no Egipto. O sonho que nos é permitido ter é emigrar."

Com salários irrisórios, quem tem emprego não se esforça muito. Mas uma grande parte dos jovens não o tem. Talvez a maioria. Andam pelos cafés e pelas ruas, sem dinheiro para comprar nada. O pouco que têm é para pagar os subornos à polícia. Para tudo é preciso pagar. Para se conseguir o Bilhete de Identidade, a carta de condução. Simplesmente para existir. Os cerca de 1,7 milhões de polícias do Egipto encontravam formas de extorquir dinheiro aos cidadãos em qualquer situação.

"Sempre que saía à noite de carro, era certo que me mandavam parar", conta Wael, 32 anos, advogado. "Encontravam sempre qualquer coisa que não estava bem. Ou era um farol avariado, ou não se podia circular naquela zona, ou faltava uma licença, ou um papel, ou pagar uma taxa qualquer. Nem valia a pena ouvi-los. Mal os polícias mandavam parar o carro, era melhor começar logo a tirar dinheiro da carteira."

O sistema é corrupto de cima a baixo. Desde o Presidente até ao mais subalterno funcionário. Os privilégios estão nas mãos de uma elite. E um jovem desempregado e sem dinheiro nem ao menos pode circular à vontade ou dizer o que pensa. Tudo é controlado. Tudo é proibido. A polícia está em cada esquina. Os jornais são uma farsa, as televisões mentem. Reina a hipocrisia e o medo. Se alguém protesta, é preso, torturado. As pessoas não podem falar, nem com os colegas e amigos. Há agentes infiltrados em todo o lado. Um amigo pode ser um informador. Até na própria casa é preciso ter cuidado.

Desenvolveu-se uma cultura de subserviência, que se mistura com a tradição de respeito pela autoridade e pelos mais velhos. Não é suposto os jovens terem opiniões, terem vontades. Ninguém os respeita, ninguém os ouve. No estrangeiro são vistos como terroristas, gente violenta e intratável, por serem árabes. No seu país, a mentalidade dominante exige-lhes que se calem. Aos rapazes que arranjem um emprego, às raparigas que se casem e tenham filhos. Mas nada disso é possível. E entretanto continua-se a viver em casa dos pais, a ter de ouvi-los e obedecer-lhes.

"Sinto dentro de mim uma enorme forma criativa", diz Shahira. "Mas não tenho qualquer possibilidade de a expressar. Gostava de criar uma empresa, de viajar, de ser independente. Gostava de viver num país normal, onde as pessoas pudessem aplicar a sua energia, investir e obter resultados. Sim, um país como a Alemanha, a França ou os EUA, não na sua cultura, mas na sua liberdade. Liberdade de se dizer o que se pensa e de se fazer o que se quer. Eu sei que na Europa também há problemas, que a economia está em crise. Mas a resolução dos problemas depende das pessoas. Da sua criatividade e combatividade. É só isso que eu peço. Que me deixem ir à luta. Aqui não somos ouvidos, e não vale a pena lutar por nada."

No Magrebe e no Médio Oriente registam-se das maiores taxas de natalidade do mundo. Dos cerca de 360 milhões de pessoas que vivem no mundo árabe, metade tem menos de 30 anos. Cento e oitenta mil jovens árabes que não eram nascidos durante as guerras israelo-árabes dos Seis Dias ou do Yom Kippur. Nem quando rebentou no Irão a revolução dos ayatollahs. Nem quando a União Soviética invadiu o Afeganistão. Nem quando surgiram os taliban e os mujahedin radicais, com a ajuda e treino dos americanos. Nem quando a Al-Qaeda se organizou na Arábia Saudita e no Sudão. Nem quando os ditadores comunistas foram derrubados na Europa de Leste. Não eram nascidos quando a revolta dos jovens foi esmagada na praça Tiananmen.

Cento e oitenta mil jovens árabes nasceram depois da Guerra Fria, depois do "fim da História" e do "choque das civilizações". Não se lembram do 11 de Setembro. As pessoas nascem e morrem, as gerações mudam, mais rapidamente do que os preconceitos, as ideias feitas, as teorias da geopolítica e até os relatórios dos serviços de informações como a CIA ou a Mossad. Por isso ninguém previu o que aconteceu na Tunísia e no Egipto. E no entanto tudo estava em preparação há anos, aos olhos de todos.

Uma geração árabe na Web

Os 180 mil jovens árabes nasceram com a Internet. Estima-se que mais de metade deles lhe tem acesso. Podem não ser donos de um computador, mas há cibercafés por todo o lado. No Egipto, são 30 milhões as pessoas online.

Antes de tudo, a Internet é um instrumento. Para quem não foi educado nela, é apenas isso. Os fundamentalistas islâmicos souberam usá-la com génio. Disseminaram a mensagem do salafismo e a doutrina dos imãs radicais, e organizaram células terroristas e atentados. Fizeram-no, também eles, muito antes que os sofisticados serviços secretos ocidentais tivessem a capacidade de lhes seguir os movimentos. Alguns investigadores chegaram a conjecturar que a aptidão para se mover no mundo virtual fosse própria de mentes fanáticas religiosas. Teriam semelhantes capacidades de abstracção e de alheamento da realidade, diziam, um pouco na linha teórica dos estudos que explicavam a habilidade dos indianos para a programação e o software com a agilidade mental produzida pela religião hindu.

No mundo real, porém, o que torna alguém especialista na Internet é a necessidade. É um instrumento poderoso, que se tornou acessível a todos. A diferença está aí. Antes, quem podia comprar um sistema de comunicações que alcançasse o mundo inteiro? Ou equipamento para captar imagens com qualidade, e emiti-las? Ou sistemas de armazenamento de dados e seu processamento? Há 15 anos, quando a Apple anunciou o Power Mac G3, com processador a 300 MHz, houve notícias de que a CIA ia proibir a venda do novo computador pessoal, receando que tal capacidade de processamento de informação fosse parar a mãos criminosas. Hoje, qualquer computador barato tem processadores de 3 Ghz, ou seja, dez vezes mais rápidos do que o G3. E a Internet permite criar redes de comunicação muito mais poderosas do que há 20 anos conseguiam todos os satélites do mundo juntos. Tudo isto à disposição de qualquer pessoa, mesmo as mais pobres, em qualquer parte do mundo. Só era preciso aprender. E isso é o mais fácil. Quem tem privilégios tende sempre a subestimar a capacidade do ser humano.

Os terroristas usaram a Net, tal como a usaram os jornalistas, os políticos, os empresários ou os artistas. Mas com um efeito mais surpreendente porque queimaram etapas, passaram do primitivismo à ficção científica.

Para quem já acedia a informação e a instrumentos de comunicação, a Net foi um upgrade. Para quem não tinha acesso a nada, foi uma revolução. Por isso a rede é tão decisiva em todas as franjas da marginalidade. E nos países pobres. Quer como instrumento de acção, quer de libertação pessoal. Porque, para quem já nasceu na era da Internet, não se trata apenas de colocá-la ao serviço de objectivos: é-se transformado por ela.

Dantes, com um dólar podia comprar-se um jornal, e o mais provável era que a sua informação fosse totalmente manipulada. Mas não era suficiente para adquirir um livro, nem uma revista. Nem ver um filme e muito menos um concerto ou uma conferência.

Hoje, esse dólar compra uma hora de navegação num "ciber", onde se pode aceder a milhares de jornais, revistas, livros, filmes, músicas, blogues, conferências, relatórios, estudos, bases de dados, programas políticos, manifestos, contactos.

"A Internet fez-nos pensar", diz Ahmed Shamack, 21 anos, estudante de Engenharia. "Os nossos media eram controlados pelo regime, e eram mentirosos. Não nos falavam do mundo, não nos mostravam a verdade. A Internet permitiu-nos saber o que se passava. Ver que havia outras formas de vida."

Os 180 milhões de jovens do mundo árabe sabem o que se passa no mundo. Vêem os filmes, ouvem as músicas, lêem os jornais, revistas e blogues, falam com jovens de outros países. Há 20 anos não se sabia nada, agora eles sabem tudo. "Foram os computadores que levaram os jovens egípcios a disciplinar as suas mentes", explica Shafik, 27 anos, economista. O sistema educativo é mau, mas os jovens desenvolveram-se sozinhos. "Organizando a sua vida no seu laptop, ou na sua página do Facebook, com as suas músicas, as suas revistas, os seus filmes, os seus contactos, evoluíram intelectualmente. Tornaram-se capazes de fazer alguma coisa com eficácia."

E no entanto trata-se de uma pequena mudança na rotina de um jovem árabe. Há 10 ou 15 anos, já havia os mesmos problemas. O desemprego, a falta de perspectivas de futuro para os jovens. Mas enquanto na altura o passatempo era ficar encostado às esquinas, ou, na melhor das hipóteses, sentar-se num café a fumar um narguilé, hoje pode entrar-se num "ciber" e ligar um computador.

É uma pequena diferença, um pormenor a que, à partida, ninguém daria muita importância. Um pouco como a maquilhagem barata para as raparigas egípcias. Uma pequena mudança, que abre um mundo de possibilidades.

Kefaya: "Basta"

Rami Raoof é um rapaz sisudo, quase arrogante, à primeira impressão. Tem 23 anos e usa o cabelo comprido em rabo-de-cavalo. Na sede da Egyptian Initiative for Personal Rights (EIPR), situada numa zona pacata de Garden City, no centro do Cairo, Raoof é claramente a estrela da organização. Não é o director, mas é o responsável pelo sector online media, o que, nos dias gloriosos da chamada "revolução do Facebook", lhe dá um estatuto especial.

No entanto, Raoof diz, com o seu ar de desmancha-prazeres: "Discordo totalmente dessa designação de "revolução do Facebook", ou "revolução da Internet". Isso pode ser muito sexy para os media ocidentais. Mas não tem qualquer fundamento na realidade. A Internet é apenas um instrumento. Usamo-la como usamos a comunicação boca-a-boca, panfletos ou graffitti. Quando o nosso movimento começou, o uso das ferramentas online era ainda muito reduzido. Ou seja: não foi por haver Facebook ou Twitter que fizemos a revolução."

O movimento da juventude que culminou no derrube do regime de Hosni Mubarak começou em 2005, com um grupo chamado Kefaya, que significa "Basta". Kefaya surgiu de facto no Verão de 2004, quando os media oficiais divulgaram a notícia de que Gamal Mubarak, o filho do ditador, seria o seu sucessor.

Uma petição com 300 signatários exigindo "democracia e reforma no Egipto" circulou no país. Pouco depois, um Manifesto apelava à desobediência civil. Mas os protestos tinham começado antes. Depois de 20 anos de aceitação passiva da ditadura, os jovens vieram para a rua manifestar-se a favor da segunda Intifada palestiniana, em finais do anos 2000. A contestação não mais pararia e esses jovens que a iniciaram seriam os guias e mentores de um processo que teria resultados efectivos uma década depois.

Após a invasão americana do Iraque, em 2003, realizaram-se no Cairo enormes manifestações antiguerra, que se transformaram em protestos anti-Mubarak. O movimento Kefaya foi criado por estes grupos de activistas, que integravam elementos provindos de diferentes ideologias e projectos (marxistas, islamistas, liberais). Mas ganhou força porque encontrou uma causa comum, à qual se manteve fiel até hoje: o derrube de Mubarak.

O Movimento 6 de Abril

Em Dezembro de 2004, cerca de mil activistas concentraram-se nas escadas do Supremo Tribunal do Cairo. Cercados pela polícia de intervenção, permaneceram em silêncio, com mordaças na boca, em frente a uma faixa enorme com a palavra Kefaya (Basta).

Era o início de um movimento que no ano seguinte estava em plena actividade. Em Maio e em Setembro de 2005 realizar-se-iam um referendo sobre alterações constitucionais e as eleições presidenciais. Pela primeira vez, seriam permitidas outras candidaturas, além da do partido do poder. Mas foram criadas regras para limitar as possibilidades dos candidatos alternativos. Só um deles, Ayman Nour, conseguiria fazer campanha. Ficou em segundo lugar, numa eleição que Kefaya considerou fraudulenta, e foi preso duas semanas depois.

A primeira manifestação reprimida com violência realizou-se a 25 de Maio de 2005, o dia do referendo. A polícia de intervenção cercou os manifestantes, mas abriu o cerco para deixar entrar um grupo de provocadores pró-regime, a maioria deles polícias à paisana, armados com paus e ferros. Exactamente o que aconteceu a 2 de Fevereiro deste ano na praça Tahrir. Houve vários feridos e a partir dessa data o Kefaya convocou manifestações para todas as quartas-feiras.

Surgiram outros grupos, ligados a tendências ou a sectores profissionais. Um deles, o Youth for Change, tornou-se numa espécie de organização da juventude do movimento Kefaya. Um engenheiro civil de 30 anos chamado Ahmed Maher foi o fundador desse grupo, que talvez possa ser considerado o antepassado mais directo do actual movimento dos "jovens do Facebook".

Durante o ano eleitoral de 2005 e os seguintes, Maher e os seus companheiros do Youth for Change participaram em muitos protestos, que foram brutalmente reprimidos pela polícia. Vários elementos do grupo foram presos, outros passaram a ter as actividades rigorosamente vigiadas. Foi nessa altura que alguns deles se tornaram bloggers. E criaram páginas na rede social que tinha sido desenvolvida em Harvard, Boston, em Fevereiro de 2004 pelo estudante Mark Zuckerberg - o Facebook.

Em 2008, Ahmed Maher criou uma página no Facebook para convocar uma greve da indústria têxtil para 6 de Abril, na cidade de el-Mahalla el-Kubra. A greve foi um fracasso, mas estava lançado o Movimento 6 de Abril. Independente de todos os outros grupos e partidos, o Movimento 6 de Abril passou a actuar principalmente na Internet. Meses depois da sua criação, na sequência de uma greve na cidade tunisina de Hawdel-Mongamy, um grupo de jovens fundou em Tunes o Progressive Youth of Tunisia, também baseado no Facebook.

A colaboração entre os grupos passou a ser estreita e em breve se alargou a outras paragens. No Irão, após as eleições de Junho de 2009, nasceu um grupo de jovens contestatários, o Movimento Verde (Green Movement), que abalou o país numa onda de protestos. Maher e o 6 de Abril pensaram que podiam fazer o mesmo no Egipto, após as eleições de Novembro de 2010. E começaram a organizar-se para isso. A página do Facebook tinha já mais de 70 mil membros.

"Foi nessa altura que este movimento realmente começou a funcionar, nos moldes em que opera hoje", diz Rami Raoof. "Foi uma primeira fase do nosso trabalho com as ferramentas online. Usávamos o Facebook, o Twitter e as sms dos telemóveis para convocar manifestações, informar das horas e dos locais. E também para espalhar informações sobre a repressão, as detenções, os abusos da polícia."

Um manual para o protesto

Raoof já era, nessa altura, um dos principais especialistas em Internet e new media a trabalhar com os revolucionários. Era consultor de Online Media na EIPR e na Global Voices, duas Organizações Não Governamentais (ONG) dedicadas a documentar os abusos policiais e atropelos aos Direitos Humanos. Tinha estudado informática e programação, e, depois, Direito e Relações Internacionais em França. "O tema que me interessava era os Direitos Humanos, e estava decidido a ter um trabalho activo nessa área, no meu país. Mas eu também sou programador. Então decidi juntar as duas competências."

Com a ajuda de companheiros, no Egipto e noutros países, trabalhando online, Raoof elaborou um Manual de Métodos de Protesto, que circulou depois pelas redes dos activistas. E desenvolveu procedimentos para escapar à vigilância da polícia. "Era um processo que exigia muita agilidade e rapidez. Nós íamos inventando novas maneiras de codificar mensagens, de não sermos descobertos, de apagar o nosso rasto, e a polícia ia descobrindo os nossos truques. Era preciso estar sempre a mudar."

Durante os protestos de 2010, Raoof desenvolveu um sistema de contactos rápidos através de mensagens sms para o Facebook, que permitia recolher informação sobre as detenções de militantes e espalhá-la imediatamente. Um dos advogados do grupo seguia então para o local para exigir que fosse formulada uma acusação. Caso contrário, libertava o preso, antes que ele desaparecesse numa qualquer masmorra secreta do Ministério do Interior, e já não fosse possível fazer nada.

Outra das especialidades de Raoof era encontrar formas de usar a Net e os telemóveis mesmo quando o regime suspendia os serviços no país. Estas técnicas foram particularmente úteis agora, quando, mal começaram as manifestações na praça Tahrir, o Governo cortou a Internet e as redes de telemóveis. O segredo era usar números estrangeiros, para publicar mensagens no Facebook através de sms.

"O objectivo de todas estas tecnologias era divulgar informação, para que todos soubessem o que se passava, aqui e no estrangeiro, com a repressão policial, os abusos, os atropelos aos direitos humanos. Essa informação foi crucial, mas sempre soubemos que não seria suficiente para fazer cair o regime. A certa altura, seria preciso outro tipo de acção. Por isso digo que não se pode falar em "revolução da Internet"."

Desde o início, o Movimento 6 de Abril assumiu que os seus métodos seriam pacíficos. Ahmed Maher estudou bem a lição. Com um grupo de companheiros, viajou para a Sérvia, para contactar o movimento de estudantes OTPOR, que foi criado em 1999 e decisivo no derrube de Slobodan Milosevic, no ano seguinte. Na época do OTPOR (Resistência) não havia Facebook nem Twitter. Usavam-se graffitti, folhetos e, principalmente, concertos de rock e estações de rádio. Mas isso não impediu que os jovens sérvios fossem os principais mestres dos egípcios, através de uma organização que criaram para divulgar os seus métodos entre os rebeldes estrangeiros - a CANVAS.

O método de resistência pacífica do OTPOR foi aprendido com um professor e teórico americano chamado Gene Sharp. Segundo este, a quem chamam o "Maquiavel da não-violência", a resistência pacífica é o método mais eficaz de combater ditaduras militares ou policiais. Estas, sem haver violência da parte dos manifestantes, ficam sem pretexto para reprimir. Sharp criou um organismo para estudar e desenvolver estas técnicas - a Albert Einstein Institution -, onde os elementos do OTPOR tiveram aulas e treinos.

O Movimento 6 de Abril, no Egipto, absorveu estes conhecimentos através da OTPOR, e também de um grupo baseado no Qatar, a Academy of Change, adepta, por sua vez, das ideias de Sharp.

Mas a aprendizagem não ficou por aí. As novas tecnologias agora à disposição exigiam a combinação de muitos conhecimentos, experiências e competências. A revolução nunca foi fácil, mas hoje em dia tornou-se numa actividade altamente especializada. Organizações variadas, de diversos pontos do mundo e diferentes ideologias e agendas foram chamadas a colaborar.

Informação foi partilhada com grupos de defesa dos Direitos Humanos, antiglobalização, esquerdistas e islamistas. Um partido anarquista italiano, por exemplo, ensinou os revolucionários digitais egípcios a usar "servidores fantasma", que fazem ricochetear certas buscas para servidores que não existem. Desta forma se consegue despistar quem tenta monitorizar os movimentos online dos militantes.

Cursos de subversão

Através dos próprios instrumentos da Internet, estes saberes foram divulgados por um número cada vez maior de pessoas. Mas também através de cursos, leccionados de forma convencional em várias cidades do Egipto.

"Demos muitos cursos para jovens aqui, na sede da EIPR", diz Raoof. Eram cursos perfeitamente legais e abertos, sobre novas tecnologias e novos media. Nunca tivemos nenhum problema com a polícia por causa disso. Na verdade, eram cursos sobre o uso das tecnologias em actividades subversivas. Tivemos sempre lotações esgotadas."

Uma das disciplinas ministradas nesses cursos era a de técnicas de captação e emissão de vídeos. "O vídeo, gravado com telemóvel, é o meio privilegiado para denunciar as injustiças e os abusos", explica Raoof. "Porque combina imagem com informação".

Mas não serve qualquer material. Para que um vídeo possa ser emitido num dos grandes canais estrangeiros de televisão, tem de ter qualidade. Isso não aconteceu, por exemplo, no caso das manifestações no Irão, em Junho de 2009, o que permitiu muita confusão sobre o que se passou, no seio da comunidade internacional.

Os cursos de vídeo foram portanto considerados uma prioridade. Bassem Samir, director da Egypcian Democratic Academy e do site Cyber Act, foi o principal responsável pela vaga de cursos que invadiu o Cairo e outras cidades egípcias.

Ao contrário de Raoof, que, com o seu pulôver puído e longa cabeleira, dificilmente imaginamos num cenário que não seja uma barricada ou uma página clandestina do Facebook, Samir veste-se como o CEO de uma grande empresa. De fato e gravata e cabelo impecavelmente penteado, é óbvio que Bassem Samir, 28 anos, não tenciona passar o resto da sua carreira política ao teclado de um computador.

Durante o seu curso de Relações Internacionais, na Universidade de Helwan, percebeu que algo estava errado no regime. "Fazíamos modelos de simulação, com as regras da ONU, do funcionamento de um parlamento ou de um governo. Foi aí que eu constatei as diferenças entre o que era suposto acontecer e o que acontecia de facto no Egipto", explica Samir.

Em 2005, participou nas comissões destinadas a monitorizar as eleições presidenciais. Foi entrevistado na televisão e disse uma frase pela qual nunca mais deixaria de ter problemas: "Gostaria de ver, no Egipto, umas eleições presidenciais em que, na véspera, não soubesse o nome do Presidente."

Em Janeiro de 2010, Samir, com um grupo de 29 bloggers, viajou para a cidade de Nagi Hammadi, no Norte do país, para se manifestarem contra o assassínio, pela polícia, de sete egípcios. Foram todos presos, durante 30 horas. "Foi nesse momento que percebi que o regime não podia durar para sempre. Era preciso derrubá-lo."

Um mês depois, partiu para os EUA, para frequentar um curso sobre reportagem de vídeo para activistas de direitos humanos, financiado pelo Departamento de Estado. Na sua página do Facebook, exibe orgulhosamente uma fotografia sua com Hillary Clinton, por quem o grupo foi recebido.

De regresso ao Egipto, Samir organizou uma colaboração com a ONG queniana Ushahidi, que desenvolveu software livre para tratar e partilhar, em telemóveis, vídeos e mapas em situações de luta urbana. Vários grupos estrangeiros vieram ao Egipto treinar os activistas, que, quando chegou a data das eleições parlamentares, estavam preparados para travar um combate altamente tecnológico.

"Frequentei cursos e tive treino em vários países, com organizações muito diferentes, sobre a utilização dos novos media", conta Samir. "E também sobre tácticas de acção directa de linha da frente, e luta pelos direitos humanos. Foi muito importante aprendermos com outros, em diferentes países e diferentes contextos. Partilharmos experiências e modelos."

Num dos cursos, ministrado no Cairo, foi ensinado por exemplo como fazer sair em segurança as imagens gravadas num local de conflito; como passar câmaras e telemóveis para outros activistas, que se faziam passar por turistas, ou como levar numa pen imagens de monumentos e paisagens, que substituiriam o material importante na memória da câmara, caso o activista fosse preso e revistado pela polícia. No fim de uma das sessões, o instrutor mostrou imagens, primeiro, de um sandinista a atirar um cocktail Molotov na Nicarágua, depois, de manifestantes em Teerão filmando corpos caídos. Voltou-se para os alunos e disse-lhes: "O vosso telemóvel é agora o vosso cocktail Molotov."

No Egipto, as manifestações pós-eleitorais não levaram à queda do regime porque, apesar da organização e empenhamento dos activistas, não contaram com uma adesão forte da população.

Mas o movimento crescia. "As ligações entre os vários grupos tornavam-se, dia a dia, cada vez mais fortes e efectivas", diz Bassem Samir. "Não havia líderes. Se havia, eram as próprias páginas e os seus nomes, não pessoas."

E cada vez mais gente aderia a essas páginas, fazia comentários e espalhava a informação. Imagens de violência policial e de vítimas circulavam por todos os cantos da Net. O esforço dos militantes do Facebook por mostrar as atrocidades do regime começava a produzir efeitos.

Nos dias seguintes a multidão foi crescendo na praça, com a presença dos militares, que permaneceram neutrais. Os jovens aderiram aos protestos, identificando-se totalmente com os seus objectivos. Há muito tempo que discutiam os assuntos, nas páginas da Internet. Sabiam o que estava em causa. A geração Facebook estava amadurecida para a revolução.

Mas não eram só eles que enchiam a praça. Os mais velhos, os mais pobres, os menos cultos, começaram a ganhar coragem. Talvez os 40 milhões de egípcios que vivem abaixo do limiar da pobreza ainda nem soubessem o que se estava a passar. Mas a revolução estava ser feita também em nome deles. As gerações mais antigas diziam que estavam ali por solidariedade com a juventude do Egipto, que fazia agora o que eles não foram capazes.

Terça-feira, Mubarak fez o penúltimo discurso da sua carreira. Para prometer que não se recandidataria às eleições, previstas para Setembro. Lembrou os seus feitos heróicos e dedicação ao país e disse que tencionava morrer na sua pátria. As suas palavras tocaram muitos egípcios e no dia seguinte dezenas de milhares manifestaram-se em seu apoio, noutra praça da cidade. Ao fim da tarde, grupos de provocadores organizados pelo partido do poder atacaram Tahrir com paus, pedras e cocktails Molotov. Seguiram-se dois dias de violência. Centenas de mortos e milhares de feridos.

Sexta-feira, desistiram e um número nunca visto de manifestantes anti-regime encheu a praça Tahrir. A página de Ghonim (embora sem ele, que já tinha sido detido pela polícia) disse que era o "Dia da Partida". Não era ainda. Durante seis dias, foi um braço-de-ferro. Segunda-feira, Ghonim foi libertado. Deu uma entrevista à Dream TV contando que esteve 12 dias vendado numa prisão. Quando viu imagens das vítimas dos dias anteriores, chorou. E disse que estava disposto a morrer pela liberdade.

Quinta-feira, dia 10, correu o rumor de que Mubarak ia anunciar a demissão. Festejou-se antecipadamente e depois foi a decepção. Ele foi à televisão dizer que continuava. Mas o golpe já estava em curso nos bastidores. Sexta, o vice-presidente anunciou a demissão de Mubarak. O poder seria garantido pelos militares num período de transição para a democracia. A revolução vencera.

E agora? Que mais querem os jovens do Facebook? "Supervisionar a transição no Egipto", diz Rami Raoof. "Estaremos atentos, e a qualquer momento podemos voltar para a rua."

Bassem Samir já anda a correr o país a angariar apoio para um novo partido. "Será um partido liberal, baseado nos princípios da iniciativa individual." Raoof ainda não decidiu quem vai apoiar, mas é adepto da redução ao mínimo do papel do Estado. "Só deve existir para garantir segurança e igualdade de oportunidades."

O ideal de Shahira não é muito diferente. "Vai haver certamente diferentes tendências", diz ela. "Do que eu tenho a certeza é de que os jovens não vão tolerar mais nenhuma espécie de autoritarismo. Nem os dos líderes religiosos. O que as pessoas querem é liberdade individual, e por isso penso que a grande maioria dos jovens apoiará o capitalismo. Mas terá de ser adaptado à cultura de cada país."

Samir já está a integrar o seu novo partido numa organização liberal internacional. Ele não duvida de que a revolução se vai estender aos outros países árabes. "Já está a acontecer na Argélia, no Bahrein. Não vai ser uma cópia do que aconteceu aqui. Haverá diferentes versões. Cada país adaptará estas ideias à sua realidade. Mas a onda vai atingir todos, disso tenho a certeza. Nos países árabes, porque falamos a mesma língua, estamos todos ligados. Pode dizer-se que o movimento é só um. O objectivo é o mesmo. É tão simples: ser livre."

Não adianta explicar a Shahira que os jovens nos países livres da Europa também não têm empregos nem perspectivas. Ela abana a cabeça, como quem não lhe apetece perder tempo com assuntos menores. "Vai haver soluções. Eu acredito na capacidade desta geração para resolver os problemas."

Samir pensa que a geração que tem agora 20 anos é diferente das anteriores. E que as suas características específicas vão moldar o mundo do futuro. "É a geração da partilha e do trabalho em rede", explica ele. "Conseguirá tudo o que quiser."

Shahira fecha o portátil e apoia os cotovelos na mesa de mármore do café Cilantro. "Acho que ainda não interiorizei que sou uma mulher livre", diz ela a rir. "Não é fácil. Tanta coisa para fazer. Nem sei por onde começar."

paulo.moura@publico.pt

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