A Líbia antes de M.K.

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Uma história tumultuosa - a da Líbia de Muammar Khadafi (M.K.) - pode encobrir uma outra história igualmente tumultuosa, a da Líbia antes de Khadafi. O golpe de Estado que derrubou a monarquia em 1969 foi representado como uma absoluta ruptura com o passado, sobretudo a partir da criação da Jamahiriya Árabe e Socialista do Povo Líbio, um "Estado das massas". O regime revolucionário mostra, no entanto, uma inesperada continuidade em relação à monarquia.

A independência da Líbia foi reconhecida pelas Nações Unidas, em 1949, e proclamada em Dezembro de 1951 pelo novo rei Idris I - Idris al-Mahdi al-Sanusi (1890-1983), chefe de uma confraria sufi, Senousiya. Foi a primeira colónia africana independente. Temos de recuar um século.

Os turcos otomanos restabeleceram a sua autoridade sobre a Líbia em 1835, pouco depois de os franceses terem conquistado a Argélia. Entra em cena um sufi, descendente de árabes andaluzes, Muhammad ibn-Ali al-Sanusi. Abandonou a Argélia após a chegada dos franceses, fez a peregrinação a Meca e estabeleceu-se na Líbia. Fundou a Senousiya, que será ao mesmo tempo piedosa e guerreira. Em 1855 foi expulso da Cirenaica pelos turcos, refugiando-se no deserto. No fim do século dominava largos territórios na Líbia interior e no Norte do Chade. "Foi, desde a origem, uma confraria antiocidental e sobretudo anti-imperialista", observou o geopolítico Yves Lacoste.

Combateu os franceses no Sara. Em 1911, a Itália declarou guerra aos otomanos e apoderou-se da Cirenaica. Quando, em 1919, os italianos começam a ocupar o interior, encontram a resistência armada das tribos líbias lideradas pelos senousis. A guerra dura até ao armistício de 1932, assinado por Idris, neto do fundador, que então ostenta o título de emir.

Em 1939, no início da II Guerra Mundial, a Itália funde as três grandes regiões líbias - Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan - numa única "província italiana" e celebra a vitória em Trípoli com massacres inomináveis. A Senousiya, federando uma vez mais os xeques tribais e contando com o apoio inglês, passa a combater os italianos e os alemães do Afrika Korps. Em 1942, após a derrota de Rommel, Idris cria um governo provisório em Bengasi.

Finda a guerra, os ingleses controlam as duas regiões costeiras e os franceses o Fezzan. Idris regressa do exílio no Cairo como herói. Com apoio americano, começa as diligências para a independência e contra a divisão do país entre ocidentais. Os franceses permanecerão no Fezzan até 1955 e os britânicos conservarão duas bases navais.

Idris foi um rei escolhido pelos chefes tribais. A primeira Constituição líbia estabelece uma monarquia parlamentar e um Estado federal, garantindo as liberdades fundamentais e a propriedade privada. Era um Estado "diluído", num país miserável e em que as tribos tinham um papel dominante.

A primeira "revolução" acontece em 1958-59: a BP descobre petróleo na Cirenaica e no golfo de Sirte. É criado o exército nacional. Em 1963, é suprimida a organização federal para permitir a exploração do petróleo, cujas receitas irão inundar o país, dois anos depois. A Líbia deixava de ser "uma economia de deserto e camelos" para se tornar num país rico.

O governo exige a negociação da retirada das tropas estrangeiras e estabelece relações diplomáticas com a URSS, embora recusando a sua ajuda económica.

Começa uma modernização acelerada, sobretudo nas cidades costeiras, ao mesmo tempo que cresce o ressentimento da maioria pela desigualdade na repartição das receitas petrolíferas, que enriqueciam as elites costeiras. O pan-arabismo dominava e a posição neutral do rei na Guerra dos Seis Dias, em 1967, minou a sua popularidade. Eclodiram progroms contra as comunidades judaicas, que começaram a abandonar o país.

Na madrugada de 1 de Setembro de 1969, um grupo de jovens oficiais, de inspiração nasserista, dirigidos pelo capitão Khadafi, 28 anos, ocupam a rádio e proclamam a república. As tribos não reagiram. Idris estava doente, em tratamento na Turquia, tendo já assinado a abdicação no sobrinho Hassan Reda.

Disse-se da monarquia que não conseguiu criar um Estado - a Líbia teria "instituições pré-públicas" -, nem utilizar as receitas petrolíferas como motor de crescimento.

O historiador americano Dirk Vanderwalle estudou a Líbia contemporânea nos arquivos de Trípoli (Libya since Independence - Oil and State Building, 1998) para concluir que o regime de Khadafi "representa a continuidade da anterior monarquia".

A partir de 1975/77, perante a dificuldade de construir o Estado, Khadafi respondeu com a "abolição do Estado", simulando um regime de autogestão e "poder popular", em que comités revolucionários eleitos tomariam todas as decisões. Ele não é sequer Presidente, é o "guia". De facto, é o árbitro dotado de um poder quase absoluto.

Na festa do 1 de Setembro de 2009, o "guia" voltou a dissolver o Estado, que oficialmente já não existia, encarregando os comités revolucionários de distribuir directamente ao povo os dividendos do petróleo. Nova ficção.

Anota Vanderwalle que a Líbia é o exemplo limite de "um Estado distributivo", um exportador de petróleo com "instituições políticas e económicas ainda na infância". Os "Estados distributivos", acrescenta, podem ter uma grande capacidade de resistência aos desafios económicos e políticos, mas são "incapazes de elaborar políticas que tornem o Estado e as instituições relevantes para os seus cidadãos".

"Um dos grandes "sucessos" de Khadafi foi ter desertificado toda a cena política líbia", assinala o analista francês Luis Martinez. Enfraqueceu as tribos e bloqueou a emergência de uma sociedade civil. Está agora a braços com o desafio de um segmento da juventude "moderna" e das regiões marginalizadas, como a Cirenaica.

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