Um cavalheiro rufia chamado Keith Richards

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Aos 4 anos, um Keith Richards filho e neto de sindicalistas socialistas ateus em Southend-?-on-Sea, no Reino Unido Lynn Goldsmith/Corbis/vmi

Keith Richards saiu de Dartford, a sua pequena cidade inglesa, para ser um bluesman. Falhou o objectivo, mas transformou-se, com os Rolling Stones, na encarnação viva da mitologia rock"n"roll. Criou-lhe o som e o imaginário e viveu da única forma que sabia. No fio da navalha, nos limites da lei, desdenhoso de qualquer compromisso com "moralidades mesquinhas". Life, a celebrada autobiografia editada em Portugal em Outubro, conta toda a história. Para Keith Richards, é tarde de mais para deixar de ser o mito que construiu ao longo de 67 anos de vida.

Não sabemos se acontecerá em 2012 ou nos anos seguintes, mas é certo que os Rolling Stones voltarão à estrada. Não conseguem escapar à tentação. Está-lhes no sangue. Viajarão acompanhados do título "a maior banda rock"n"roll do mundo" e, cidade após cidade, veremos pormenorizadamente descrito todo o equipamento que arrastam consigo em digressão. Cinquenta anos depois, os Stones continuam. Atravessaram a década de 1960 como reverso negro e provocador dos Beatles - "Deixaria a sua filha casar com um Rolling Stone?", titulou-se à época -, definiram nos anos 1970 em corpo, estética e atitude, o estilo de vida rock"n"roll - precisamente: "sexo, drogas e rock"n"roll". Depois disso, aterraram nos 1980 para cristalizar aquilo que conhecemos como "concertos de estádio" e passaram a correr o mundo em palcos de dimensão absurda, recheados de adereços insufláveis e com a pirotecnia pronta a ser disparada quando se anuncia Sympathy for the devil.

Aconteceu aos Rolling Stones o que acontece a quem vê o tempo e a juventude passar por si: foram primeiro a banda anti-sistema por excelência, um refúgio "ético" para todos os desdenhosos da moralzinha burguesa, depois tornaram-se numa instituição respeitável e ainda depois disso - e é de hoje que falamos agora - cristalizaram-se enquanto património cultural inalienável. Os Rolling Stones envelheceram e isso, como sabemos, era inevitável. Algo, porém, se recusa a mudar. Algo? Alguém, há alguém que se recusa a mudar. Os Stones têm o baterista Charlie Watts como âncora estabilizadora, o antigo baixista Bill Wyman como zelador do arquivo histórico e o guitarrista Ron Wood a viver eternamente os mandamentos rock"n"roll como inscritos em pedra nos anos 1970, mas, quando a banda se move, fá-lo seguindo as inspirações e os humores de dois homens. Mick Jagger e Keith Richards.

O vocalista é a face da banda e a sua estrela principal, mas como escrevia há alguns meses no Guardian Mark Ellen, editor da revista britânica The Word, "ponham Mick Jagger na capa de uma revista e observem horrorizados como as cópias se mantêm pregadas - e coladas - às prateleiras". Mick pode ser a face, podem ser os seus lábios a inspiração para o lendário logótipo da banda, mas se os Rolling Stones, com cada um dos seus membros a caminho dos 70 anos, mantêm a ilusão de representar, canção após canção, concerto após concerto, o rock"n"roll como matéria transformadora, tal deve-se ao homem ao lado de sir Jagger, Keith Richards. Os Rolling Stones podem ter mudado e certamente mudou a forma como olhamos para eles. Keith Richards não. Keef permanece imutável.

Cigarro numa mão e garrafa de Jack Daniels na outra, é aos 67 anos precisamente o mesmo que, num tribunal londrino em 1967, acusado de posse de droga e, genericamente, de corromper a juventude com uma vida de devassidão (era esse o grande receio das autoridades inglesas, não vertido no auto de acusação), afirmou muito sucintamente: "Não somos homens velhos. Não estamos preocupados com moralidades mesquinhas." Aos 67 anos, Keith Richards ainda não é um velho preocupado com "moralidades mesquinhas."

Fazer um inventário dos escândalos e polémicas em que se viu envolvido ao longo da sua longa carreira, quer os tenha perseguido com sorriso sarcástico de rufia, quer os tenha visto cair inadvertidamente sobre si, é tarefa épica. Pois agora, tudo isso acabou. Keith Richards ele mesmo, a face do rock"n"roll em cada ruga do rosto, o corpo seco e incrivelmente resistente da rebeldia contracultural, um verdadeiro herói da guitarra que ofereceu ao mundo todo um inventário vivo de riffs e poses provocadoras, escreveu a história da sua vida.

Chamou-lhe Life, sem mais, porque é precisamente disso que se trata. A vida de um homem que, no seu mítico apogeu de excessos, dormia não mais que duas noites por semana e, assim sendo (ele fez as contas), diz ter visto e vivido três vezes mais que todos nós, pobres mortais entregues a este simples tédio de deitar a cabeça na almofada todas as noites.

Fazer um inventário das prisões por posse de heroína, dos quartos de hotel destruídos, dos acidentes de carro com o filho Marlon a seu lado ou das facas atiradas a executivos da indústria musical a dar para o "beto", retomemos, é agora trabalho mais simples. Porque Keith Richards conta tudo - e em prosa correspondente à imagem que construímos dele ao longo de cinco décadas. Vemo-lo: é o rufia e o cavalheiro; o misógino e Sir Galahad; o pirata dos tempos modernos armado de facas e revólveres e o ícone de um rock"n"roll feito de personagens maiores do que a vida (que já não existe). É, por fim, a ponte entre uma Inglaterra antiga, ainda com resquícios da vida pós-Revolução Industrial e a que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial (pelo meio, pode também ser Rastafari jamaicano, porque Richards, este homem único que é Keith Richards, surge ao longo das páginas de Life como corpo onde coexiste tanta coisa que nenhum ficcionista teria imaginação suficiente para o inventar).

A pergunta que nos colocamos quando se esgotam as quase seis centenas de páginas de Life, editado em Inglaterra em Outubro de 2010 e que terá edição portuguesa, pela Cavalo de Ferro, em Outubro de 2011, é: "Como foi tudo isto possível?" Ou melhor: este que vemos no final é realmente Keith Richards, ou o mito que Keith Richards quis cristalizar? Na verdade, ambos. Em Richards, os factos da vida são inseparáveis do mito. Ele, homem inteligente, sabe-o.

Recordemos o seu último grande escândalo. Em 2007, correu mundo a entrevista em que contou ter "snifado" as cinzas do pai Bert, que morrera em 2002, misturadas com uma linha de cocaína. "Velho profissional que sou", escreve no livro, "disse que [a afirmação] tinha sido retirada do contexto. Não negar, não confirmar." Agora conta a história: "Depois de ter as cinzas do pai numa caixa preta durante seis anos, e porque não conseguia convencer-me a lançá-las ao vento, acabei por plantar um robusto carvalho inglês para as espalhar em volta." Enquanto retirava a tampa da caixa, um pouco das cinzas caiu sobre a mesa. "Não podia simplesmente varrê-las, por isso esfreguei o dedo nelas e "snifei" os resíduos." Conclui: "Do pó viemos, ao pó voltamos; do pai ao filho."

Elvis, heroína e Mick Jagger

Keith Richards. Rege-se pelas suas próprias regras e, por isso mesmo, paira sobre a cultura popular das últimas décadas como figura irresistível. É o herói inconformado e inquebrantável. Com a guitarra a tiracolo e cigarro no canto da boca, com os lentos movimentos aracnídeos que lhe vemos em palco e a sua máscula androginia (nasceu enquanto ícone de moda ao vestir roupa e adereços das namoradas), transformou o excesso em romantismo.

Quando participou em Piratas das Caraíbas 3: Nos Confins do Mundo, Johnny Depp, que se inspirara nele para a construção da sua personagem, Jack Sparrow, e que lhe prepara agora um documentário de vida, recordou assim a passagem pelo plateau do filme: "Foi como se um pistoleiro tivesse chegado à cidade, cortejado todas as mulheres e impressionado todos os homens e, depois, desaparecesse rapidamente."

Keith Richards existe para acreditarmos num mundo em que o tédio não existe e em que a vida só faz sentido desta forma: vivida no fio da navalha e sem compromissos de qualquer espécie. Mas não glamoriza a sua vida nem a recomenda particularmente. "Façam aquilo que eu digo, não aquilo que eu faço", escreve.

Life, escrito com o jornalista britânico e amigo de longa data James Fox, impressiona pela forma crua e desassombrada, repleta de humor e de bílis (principalmente quando o assunto é Mick Jagger), como Keith Richards atravessa os seus 67 anos de vida. A biografia está repleta de passagens em que sobressai o músico explicando os seus segredos (a afinação da guitarra em cinco cordas ou a gravação de Street fighting man e Jumping Jack flash directamente para a novidade tecnológica de então, um gravador de cassetes) e em que o amante de música aborda os seus fascínios de forma tão apaixonada quanto evocativa.

Para Richards, tudo começou com o Heartbreak Hotel de Elvis Presley, ouvido no quarto, numa emissão da pirata Radio Luxembourg, aos 14 anos. Vale a pena a transcrição do momento: "Era uma forma totalmente diferente de atacar uma canção, um som completamente diferente, despido, incandescente, sem merdas, sem violinos e coros femininos e lamechices, completamente diferente. Era despojado, directo às raízes que tinhas a noção de que existiam mas que ainda não tinhas ouvido. Tenho de tirar o meu chapéu ao Elvis por isso. O silêncio é a tua tela, é a tua estrutura, é aquilo sobre o qual trabalhas; não tentes ensurdecê-lo."

Com este Keith Richards, o que disserta sobre as raízes do blues como historiador e que recorda episódios com Chuck Berry ou Little Richard como fã eternamente agradecido, pinta-se o retrato de um músico astuto e conhecedor que nos fala com a autoridade de um guitarrista que não só atravessou uma parte determinante da história da música popular urbana, como se inscreveu nela. O mito? Esse sobressai em tudo o resto.

Keith Richards não se esconde da controvérsia e relata minuciosamente, por exemplo, os seus anos de heroinómano, que o ergueram a partir da segunda metade da década de 1970 à dúbia distinção pela imprensa de "próxima celebridade a morrer" - aborda o tema com humor, consciente que estará agora, como de resto todos nós, da sua provável imortalidade. Em Life, descreve minuciosamente como, enquanto os Rolling Stones gravavam Exile On Main Street (1972), preparava a dose de heroína necessária para manter um "funcionamento normal", conjugando-a com cocaína e uma generosa dose de anfetaminas. Conta como se entregou a uma cura de desintoxicação, recomendada pelo escritor William Burroughs, e remata a história com um cómico: "Depois de uma semana inteira daquela merda, precisava de dar um "chuto"."

Expõe sem constrangimentos, lamentos ou moralismos a sua vida (que dava um filme) de estrela rock toxicodependente nos anos 1970, aos tiros com dealers em zonas esconsas de Nova Iorque para assegurar que não lhe roubavam o produto - "Adorava aquilo. Era uma cena à OK Corral [cena de um famoso tiroteio do Velho Oeste norte-americano]. Só o fiz duas vezes."

Aborda as digressões na companhia do filho de oito anos, Marlon (a filha, Angela, fora confiada à avó), que agia como seu protector e "secretário pessoal": tinha a responsabilidade de o acordar a horas para os concertos, quando estivesse demasiado pedrado, ou de o avisar quando a polícia se aproximasse do quarto. Fala do peso na consciência que carrega por ter dado a primeira dose de heroína a John Phillips, o antigo vocalista dos The Mamas & the Papas que morreria em 2001, aos 65 anos, depois de um transplante de fígado e de décadas de abusos.

Refere um peso maior ainda, o da morte súbita do filho Tara, com dois meses de idade, em 1976. Keith Richards estava em digressão em Paris, Tara em casa na Suíça com a mãe, a actriz e modelo Anita Pallenberg. Richards não cancelou o concerto que tinha essa noite. "Que iria eu fazer, conduzir de volta para a Suíça e descobrir que não acontecera? Já tinha acontecido." Desde essa noite, Richards e Anita não mais falaram da morte do filho. Seria demasiado doloroso, escreve. "Abandonar um recém-nascido é algo de que não consigo perdoar-me. É como se tivesse desertado do meu posto."

O irmão e némesis Mick Jagger

A maior controvérsia provocada pela edição de Life, contudo, emanou das porções de texto dedicadas a Mick Jagger, o colega de escola com quem fundou os Rolling Stones, o parceiro musical com quem erigiu a face contestatária do rock"n"roll da década de 1960 e que se tornaria no irmão de quem é impossível separar-se e, ao mesmo tempo, na sua némesis. Richards não se contém. Jagger é obcecado pela fama e pelo dinheiro; Jagger passa o tempo a falar de finanças e marketing e esqueceu-se do que é o rock"n"roll: Jagger é um "disco-boy", um homem possessivo e de sexualidade indefinida. Jagger foi o único membro da banda a provocar a fúria de Charlie Watts, a ponto de ser esmurrado - "Nunca mais me chamas "o teu baterista"", vociferou Watts certa noite em Amesterdão. Jagger "não consegue deixar de ser Mick Jagger a tempo inteiro" e, revelação pouco cavalheiresca que fez as delícias da imprensa quando da edição de Life, não foi propriamente abonado pela natureza.

Publicamente, o vocalista comentou simplesmente que achou a biografia "entediante". Porém, soube-se entretanto que foram canceladas as conversações para uma digressão em 2011, anunciada por Richards quando Life foi editado. Aparentemente, Jagger não se incomodou grandemente com as várias alfinetadas de Keith, ora indignadas, ora desapontadas ("Às vezes tenho saudades do meu amigo; pergunto-me por onde andará?"), ora bem humoradas. Recordamo-nos do baptismo de Jagger pelos colegas de grupo, no início dos anos 1980, quando o vocalista "se tornou insuportável", como "Brenda", "Sua Majestade" ou "simplesmente Madame", ou do relato do seu casamento com Bianca Jagger, em 1971: "O Mick organizou aquilo que considerou um casamento discreto, para o qual escolheu Saint-Tropez no pico da estação. Nenhum jornalista ficou em casa."

Aparentemente, Jagger suportou tudo com fair-play. Tudo, com excepção desse pormenor do ataque à sua virilidade. E por isso, os dois velhos amigos que não convivem num mesmo camarim há 20 anos, estão de relações cortadas.

Será realmente chocante e desrespeitoso o grau de detalhe das acusações de Richards? Talvez para todos nós. Mas nós, é preciso lembrá-lo, não somos os Rolling Stones. Em entrevista ao New York Times em Outubro passado, Richards afirmava candidamente: "Temos uns conflitos avulsos aqui e ali. Mas, se pesarmos tudo, essas coisas não contam para nada." E há alguma coisa que um Stone possa dizer a outro que possa ser tomado como ofensivo?, questionou o jornalista. Resposta sucinta: "Não." Pormenor importante: "Um Stone a outro" - e só um Stone a outro.

Que nunca nos sintamos tentados, num qualquer dia em que a vida nos conduza à presença de Keith Richards, a concordar com ele e a verbalizar que sim, que Mick Jagger se transformou num monstro corporativo sem alma e que o seu álbum a solo de 1985, She"s the Boss, tal como descrito em Life, "é como o Mein Kampf: todos tinham um, mas ninguém o ouviu." Keith explica e é bom que o ouçamos: "Eu posso dizer essas coisas; elas vêm do coração. [...] Ninguém mais pode dizer nada contra o Mick." Ameaça: "Corto-lhes a garganta." O que une o guitarrista ao vocalista, a dupla mais influente e emblemática da história da música popular urbana depois de Lennon & McCartney, é mais forte que amizade. Demasiadas lágrimas e zangas impedem-nos de ser amigos. Mas são "os irmãos mais próximos que podem existir" - e essa relação é impossível de quebrar.

Não surpreende portanto que Richards, homem justo e que preza a lealdade, tenha guardado para o "irmão" tantas recriminações quanto elogios. Elogia-o como um performer impressionante, só ultrapassado ("talvez") por James Brown e não esquece de que, durante o período mais negro da sua toxicodependência, quando se via detido pela polícia a intervalos regulares, Jagger esteve sempre do seu lado, cuidando dele com "grande carinho" e, sem um único queixume, "comandando as forças" que o salvaram.

Não duvidemos portanto de que Keith Richards, rufia e cavalheiro unidos no mesmo corpo, corte a garganta a quem se atrever a denegrir Jagger. Concentremo-nos na página 345 da edição inglesa de Life e atentemos nas dicas úteis para a vida que ela nos oferece. Isso mesmo: uma lição de luta com naifas. Aprendeu-a nos anos 1970, quando vivia em Steer Town, na Jamaica, qual membro honorário da comunidade rastafari. Saiba-se então que o segredo reside na rapidez do movimento horizontal a efectuar na testa do oponente, de forma a fazer o sangue jorrar sobre os seus olhos e a cegá-lo momentaneamente. Não é, assinale-se, a táctica preferida de Richards. Para ele, a lâmina não existe para ser utilizada, antes para distrair o adversário - e enquanto o olhar se concentra nela, devemos aproveitar para "chutar os tomates" do desgraçado que temos perante nós.

Nunca leríamos nada assim numa biografia de Mick Jagger, nem na do elegantíssimo Charlie Watts ou mesmo na de Ron Wood, alma gémea de Richards em caos e rebaldaria. Para entender porquê, recuemos. Recuemos até muito lá atrás, quando não existiam Rolling Stones e o sucesso dos Rolling Stones, e quando ainda não passavam pelos seus ouvidos os blues que transformariam um guitarrista adolescente. Um passado muito distante, longe das mulheres da sua vida, a incontrolável Anita Pallenberg, verdadeira força da natureza e mãe de Marlon, Angela (os dois primeiros filhos) e de Tara, e a modelo americana Patti Hansen, com quem casou em 1983, com quem teve duas filhas, Alexandra e Theodora, e com quem se mantém desde então. Recuemos a um subúrbio operário inglês, Dartford. Estamos em 18 de Dezembro de 1943 e a Europa vive o pesadelo da Segunda Guerra Mundial. Nesse dia nasceu Keith Richards.

De Dartford à "Stone Mania"

Life dá-nos uma descrição precisa do ambiente em que cresceu este filho de pais separados, operários, e neto de sindicalistas, socialistas militantes, que o ensinaram desde cedo a ser um bom ateu: "Ninguém se preocupava com as palavras de Cristo, ninguém disse que não existia Deus ou algo do género, mas sim "Afasta-te de organizações". Os padres eram vistos com muita desconfiança. "Vês um tipo num hábito preto, atravessa a estrada. Cuidado com os Católicos, são ainda mais matreiros.""

Numa Inglaterra a lidar com as dificuldades do pós-guerra (o pai foi ferido no desembarque dos Aliados na Normandia), Richards cresceu a idolatrar o avô Gus, que tocara em bandas de swing e que o despertou para a música, e a mãe, tão rígida quanto protectora (certo dia matou-lhe os gatos de estimação e, perante os seus protestos, disse-lhe simplesmente para deixar de ser "mole.")

"Mole" não é certamente adjectivo que aplicássemos a Keith. De resto, como podia sê-lo, filho que era desse pequeno subúrbio chamado Dartford, dividido ao meio pela linha de comboio e onde se erguiam pequenas casas de habitação social, com fábricas expelindo golfadas de fumo nas proximidades e bosques onde, de quando em vez, se podia tropeçar no cadáver de alguém que morrera de cerveja e de frio na noite anterior. Richards em Life: "Dartford desenvolveu uma incrível rede criminal - podem perguntar a alguns membros da minha família alargada", recorda. "Há sempre alguma coisa a cair da traseira de um camião. Não fazes perguntas. Se alguém aparece com um belo par de qualquer coisa feita de diamante, nunca perguntas "De onde é que isso veio?""

Vivendo em Dartford, Londres era incrivelmente distante e o estrangeiro era uma ficção inalcançável. Para fugir, Keith Richards tinha a jukebox na loja de gelados e as sessões de cinema semanais onde via Flash Gordon e o Capitão Marvel. E, a partir do momento em que ouviu o piano e a voz infernizada de Little Richard em Long tall Sally, o Chuck Berry de Johnny B. Goode e o Elvis de Heartbreak Hotel, passou a ter o rock"n"roll. Eis o mito em formação, favorecido pelos genes: "[O meu pai] era um verdadeiro atleta. Era um "Eagle Scout", que é o máximo que podes atingir em escutismo. Era um pugilista, um pugilista irlandês. Muito físico, o meu pai. Penso que herdei dele aquilo do "Então, que é isso de não te estares a sentir bem?" Tomas o corpo por garantido. Não interessa o que fazes com ele, é suposto que trabalhe. Cuidar dele? Esquece. Temos esta constituição que torna imperdoável que [o corpo] falhe." E eis também o mito em construção, definindo precocemente a sua posição perante o mundo em redor: adolescente, foi-lhe dito que poderia pôr de lado as disciplinas de física e química se se dedicasse activamente ao coro da escola. Keith, Spike e Terry, seus colegas, fizeram do coro um sucesso, mas a promessa foi quebrada. Perdeu o ano, ganhou uma causa: "Spike, Terry e eu tornámo-nos terroristas. [...] Foi quando percebi que existem bullies maiores que os simples bullies. Existem eles, as autoridades." Por esta altura, tinha os discos, tinha a guitarra, tinha a personalidade e a genética certas. Faltava apenas um "pormenor" para que Keith, o rapaz de Dartford, se transformasse em "Keef", a encarnação viva do espírito insaciável e transbordante do rock"n"roll. Esse pormenor tinha um nome: Mick Jagger.

Colegas de escola na infância, separados quando a família de Jagger se mudou para o outro lado da linha férrea, para a zona "nobre" de Dartford, iriam reencontrar-se precisamente na estação de comboio, nos últimos dias de 1961. Keith levava consigo um vinil de Chuck Berry, o que era à altura marca identitária poderosa, e Mick Jagger, que tinha todo os discos de Chuck Berry e de bluesmen como Muddy Waters ou Howling Wolf (o blues ressoara fortemente na geração baby boomer britânica), abordou-o. Dias depois, Keith ouviu Mick num clube e passaram a tocar juntos. Em Abril de 1962, Richards escrevia a uma tia, Patty (a carta, tal como muitas outras, está incluída na biografia) e falava do encontro. Descrevia Mick Jagger como "o maior cantor R&B deste lado do Atlântico".

Em Maio de 1962, os Rolling Stones têm o seu primeiro ensaio, já em Londres. Keith estudava Artes, Mick Jagger frequentava a London School of Economics. Com eles vivia Brian Jones, que era guitarrista e, à epoca, o líder da banda - estava ainda distante a sua decadência e morte trágica, afogado na piscina da sua mansão dias depois de, em 1969, ter sido despedido dos Rolling Stones. Em Julho de 1962, deram o primeiro concerto, no histórico Marquee, e até ao final do ano chegariam Bill Wyman, Charlie Watts e Ian Stewart, teclista que seria afastado da formação oficial quando a banda assinou contrato com a editora Decca, por não ter o perfil adequado à imagem que a banda pretendia projectar (ainda assim, continuou a trabalhar como pianista de estúdio e road manager até à sua morte, por ataque cardíaco, em 1985). Em 1962, com Jagger e Richards, com Brian Jones, Bill Wyman e Charlie Watts, nasciam verdadeiramente os Rolling Stones. O impacto foi imediato. À Beatlemania sucedeu a Stone Mania e os adolescentes encontraram uma banda que representava na perfeição a sua irrequietude e anseio libertário.

"[A expressão] "adolescente" surge da publicidade", escreve Keith, mas dar-lhes um nome, reflecte, "criou algo novo entre eles, uma autoconsciência." Que se manifestou de forma eloquente. O momento em que tudo mudou para sempre e em que cinco tipos que só queriam ser bluesmen perceberam que não seriam isso, mas algo de muito diferente, chegou, prestemos atenção, quando "as miúdas começaram a gritar". "Estavam a ser educadas para serem betinhas muito felizes e irritantes e algures no caminho decidiram simplesmente que queriam deixar-se ir. A oportunidade surgiu para que o fizessem, e quem as iria parar? Estava tudo encharcado em desejo sexual, ainda que elas não soubessem o que fazer com ele." Uma força imparável e os Stones apanhados no centro do turbilhão. O que lhes aconteceu, confessa, "podia ter acontecido com quaisquer outros": "Eles estavam-se a cagar que eu estivesse a tentar ser um músico de blues." As mudanças na vida de Keith, para além dos concertos que começaram a ser marcados em catadupa e dos discos que começaram a vender de forma assinalável, surgiram de imediato. Bem vindos aos swinging sixties: "Os resultados foram impressionantes. Apenas seis meses antes, não conseguiria dormir com ninguém; teria que pagar para o conseguir."

Nos anos seguintes, os compositores que se sentiram envergonhados por mostrar ao resto da banda a balada As tears go by, a primeira canção composta por Jagger e Richards (consideravam-na demasiado "lamechas"), tornar-se-iam numa máquina imparável, agarrando firmemente o pulsar do seu tempo. Satisfaction, Mother"s little helper, Under my thumb, Street fighting man, Simpathy for the devil, Gimme shelter. Uma exuberância desafiante, tingida em tons de negro, admirada por adolescentes, artistas, músicos ou activistas. Assim definiram um modelo imitado vezes sem conta desde então, mas nunca superado.

As mulheres e Keith Richards

Life tem sido celebrado como um acontecimento. Elogiado pela verve e vividez da escrita, e pela ausência de autocensura, não é, ainda assim, consensual. Keith Richards tem sido acusado de misoginia, de ter uma postura perante as mulheres que "parece ter sido preservada em compota por altura da última vitória da Inglaterra num Campeonato do Mundo [1966]", como escreveu o jornalista Dorian Lynksey num artigo no Guardian. Richards, dizem, é o velho que se recusa a crescer e que se comporta como um adolescente irresponsável. É, pior, o "Sir Galahad" que insiste em tratar todas as mulheres por "bitches". Sendo inegável que a expressão "bitch" surge impressa em doses generosas e que é algo confrangedor ler a entrada do seu diário, transcrita em Life, em que Richards preservou a memória do primeiro encontro com a actual mulher, Patti Hansen - "basta estalar os dedos para ter sexo, mas encontrei uma mulher!" -, a verdade é que as acusações de misoginia soam, parafraseando Mark Twain, francamente exageradas.

Digamos que fazer equivaler a quantidade de vezes que a palavra "bitches" surge em Life a um irredutível carácter misógino soa a um aborrecido acesso de politicamente correcto, que o acusado certamente considerará incompreensível ou intolerável. Lida a biografia e familiarizados com a linguagem directa e ritmada à oralidade de Keith Richards, sobressai mais o tipo incomodado com a luxúria nada cortês de Mick Jagger e Bill Wyman, que se revezavam na competição "quantas groupies consegues meter num quarto de hotel", do que o machista que dedica as linhas seguintes a Anita Pallenberg, ex-amante de Brian Jones e vítima das suas recorrentes explosões de violência: "Se eu fosse o Brian, teria sido um pouco mais doce e mantido a bitch." Descontextualizada, é certo que a frase soa cruel e irresponsável. Imersos no mundo de Keith Richards, recusamo-nos a atirar sobre ele o odioso do "parece mal".

Keith Richards, o homem que discorre sobre a perseguição da polícia a estrelas rock utilizando analogias com John Le Carré, o ateu casado com a filha de uma família profundamente religiosa e leitor voraz da Bíblia - "está repleta de boas frases", justifica -, o estudioso da marinha britânica do século XVIII e profundo admirador dos romances históricos dos britânicos George MacDonald Fraser e Patrick O"Brian, nunca quis "parecer bem."

A profundidade arrancada à banalidade do quotidiano que encontrou no blues é a sua cartilha e a sua gente é os working class heroes e os desalinhados com que se foi cruzando ao longo da vida. Passa a sua biografia a desdenhar, justa ou injustamente, do glamour pretensioso do estrelato, quaisquer que sejam as suas manifestações. Allen Ginsberg? "Um velho maçador", "sentado a tocar mal a concertina e a fazer sons de "ommm", fingindo ignorar a socialite em seu redor." Jean-Luc Godard, que filmou os Stones em 1969 em One Plus One? "Acho que alguém lhe passou um pouco de ácido e ele entrou naquele ano hipócrita de histeria política." Marlon Brando? Tentou seduzir Anita Pallenberg, tentou seduzir Anita e Keith quando a primeira investida falhou, mas Keith não se mostrou impressionado - "Mais tarde, pá." Brian Jones, antigo companheiro de banda, amigo de Jimi Hendrix, de Andy Warhol e dos Velvet Underground? Um freak a devorar celebridades, fama e atenção, e um crente no "elitismo da treta" da comunidade mística alimentada a LSD, "deslumbrado com as outras estrelas, mas apenas por serem estrelas", não pela qualidade do que faziam.

Keith Richards, no alto do panteão da mitologia rock"n"roll a que foi erguido, mantém uma aura de outsider. Reproduzir-lhe os gestos ou tentar acompanhar-lhe os excessos redunda em reprodução confrangedora de clichés. Por dura que seja a verdade para os Steven Tyler deste mundo, só Keith Richards pode ser Keith Richards. E, para ele, é tarde demais para deixar de ser o mito que criou ao longo de 67 anos.

"As pessoas perguntam, "Porque não paras?" Até que expire, não me posso reformar. Não penso que percebam verdadeiramente o que retiro disto. Não estou a fazê-lo simplesmente pelo dinheiro ou por vocês. Estou a fazê-lo por mim." Não, Keith Richards não parará.

mario.lopes@publico.pt

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