Isabel Silvestre Muitas vezes as pessoas c? antavam para não chorar
Para sabermos quem somos, a cantora de Manhouce tem dedicado a vida a preservar a cultura popular portuguesa. Lançou recentemente Memória de Um Povo, uma recolha de cantigas e ditos.
Como é que surge o livroMemória de Um Povo?
Acho que temos obrigação de preservar a nossa cultura, aquilo que somos, de onde viemos e a quem pertencemos. Porque, se não temos esse cuidado, daqui a pouco somos iguais a todos e não somos ninguém. Esse foi sempre o motivo que me levou a recolher as cantigas, a cantá-las e divulgá-las. A maneira de falar, os provérbios, os contos, as adivinhas - tudo o que é capaz de me dar a conhecer a minha terra - tem sido a minha força. Isto para quê? Para que os mais novos tenham gosto pela terra a que pertencem.Os jovens interessam-se pouco pelas tradições? A cultura popular está fora de moda.Talvez por ter sido professora durante anos, tenha tido ainda mais vontade [de fazer este trabalho] para que os mais novos bebam da sua própria cultura - e a entendam. No cancioneiro de Manhouce, há cantigas ligadas à ceifa ou à malha, às romarias, ou ao tempo do Natal ou da Páscoa... Por exemplo, a Oito Fora, que é uma das cantigas [recolhidas], dá a entender o esforço, o cansaço que as pessoas sentiam na ceifa, porque começavam de manhã a ceifar e iam até à noite. Muitas vezes as pessoas cantavam para não chorar. Se houver a preocupação de explicar o contexto, o porquê da música - e em que momento foi feita, vivida e cantada - de certeza absoluta que os jovens vão gostar.
As canções ainda fazem parte do dia-a-dia das pessoas? Não tanto, mas em Manhouce ainda fazem parte. Neste momento, tenho um grupo de miúdas dos 9 aos 16, que cantam a três vozes, com as características de Manhouce. Em Manhouce, estamos a dar continuidade [à tradição]. As que estamos a formar hoje mais tarde podem formar outras.
Qual é a particularidade do cantar de Manhouce? É um cantar a três vozes: "baixo", "raso" e "riba". São músicas muito bonitas, cantadas com sentimento, onde aparece a melodia do rio que passa no meio de nós, o vento que atravessa a serra, e até o cheiro do mar lá chega.
Como é que a Isabel faz esta recolha? Tive a sorte de viver durante muito tempo com três tias que sabiam muitas cantigas. A nossa casa era uma casa de lavoura onde, nos trabalhos agrícolas, vinha sempre muita gente e havia muita alegria. Quando andava a estudar, esperavam por mim ao sábado, para fazer as ceifas e as malhas, para que ajudasse às cantigas. Eu vivi sempre na minha aldeia. O gosto que tinha pelas cantigas e a vontade que tinha de que elas ficassem documentadas levavam-me a estar com as pessoas e as pessoas também gostavam de estar comigo. E foi uma bola de neve. Manhouce, já de longa data, era um pólo onde muita gente ia beber a qualidade da sua música - o [etnomusicólogo] Giacometti, o [compositor] Lopes-Graça...
Foi uma inspiração para si esse trabalho de recolha de música popular portuguesa de Giacometti? Eu era miúda, mas fiz parte desse trabalho. Ele e o Lopes-Graça estiveram na nossa casa. Recordo-me de que estavam na nossa mesa da cozinha - uma mesa redonda onde cabem 16 pessoas -, o Lopes-Graça com a cabeça em cima do tampo, as mulheres à volta. Nessa altura, fiquei toda zangada, porque ele só queria ouvir as mais velhas. Então e nós? Nós é que éramos as novas, tinham obrigação de olhar para nós e ouvir as músicas. Nesse tempo, eu esquecia-me de que o saber estava nelas.
Continua a descobrir coisas novas na sua terra ao fim de tantos anos? Continuo. E há tanta coisa para fazer. Quero fazer um pequeno museu que reúna coisas da terra - desde as ligadas à agricultura até ao historial da música. Não é só em Manhouce, em todo o país, tudo o que valha a pena deve-se preservar. Para quando quisermos ir beber à nossa fonte, estar a fonte sempre a brotar.
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