E Gredos aqui tão perto

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Portugal é país de colinas e montes aprazíveis, que em pouco lembram a alta montanha. Mas um simples atravessar de fronteiras, durante pouco mais que um fim-de-semana, pode ajudar a matar as saudades da neve e do ambiente agreste das alturas: a serra de Gredos, em Espanha, fica mesmo à mão, diz Ana Isabel Mineiro (texto e fotos), que por lá andou a calcorrear trilhos durante três dias

Para quem já conhece a serra da Estrela e aspira a novas montanhas, que sem serem longínquas já cheiram a neve e a altitude, a serra de Gredos está mesmo à mão. Fica em Espanha, cruzando a fronteira em direção a Salamanca, e oferece o ambiente agreste da alta montanha, porque embora não o seja em altitude recria o seu ambiente agreste, o clima áspero que zurze os sentidos e as paisagens em bruto, que se elevam à medida que caminhamos trilhos acima. E já se sabe, as saudades da montanha são como as saudades do mar: matam-se com um passeio ao longo da cordilheira ondulada das águas ou dos montes, consoante os desejos. Gredos oferece-nos esse mergulho e, com um bocado de azar, alguns mergulhos em charcos cobertos por placas de neve. Mas isso são histórias de botas.

Da viagem por estrada em direção à Guarda e a Salamanca quase não guardei memória; recordo apenas a enorme fortaleza de El Barco de Ávila, com um céu em cima que não prometia nada de bom, a chegada ao fim da tarde a Navalperal de Tormes e o desejo de me instalar dentro da lareira acesa, que o frio da montanha pesa nos ossos como pedras. A caminhada começou de manhã, debaixo de um sol radioso que iluminava as árvores de aspecto morto que rodeiam a povoação. A roupa cuidadosamente vestida às camadas foi sendo pelada uma a uma, até restar uma camisola de manga curta debaixo do casaco, uma cara rosada e um grande sorriso. Não havia chuva, a erva brilhava nos pastos, os muros de pedra que fecham os campos da aldeia iam ficando para trás. Aos poucos íamos subindo, e a paisagem desumanizava-se.

O rio Tormes, afluente do Douro, descia entre pedras brancas e redondas, polidas pela água e pelo tempo, e mais acima uma manada de cavalos aproveitava o sol junto ao Refúgio de Reguero Llano, onde uma pausa em cima de um pedregulho me soube pela vida. É a isto que sabe a vida: a sol na pele, ao martelar do coração nos ouvidos com o esforço da caminhada, à água fresca do cantil e à sanduíche preparada de manhã com aquele pão espanhol, que duas horas depois de sair do forno parece borracha - mas borracha gourmet, se for comido sobre uma pedra lisa a ouvir o silêncio da serra.

O caminho continua em direcção às montanhas cobertas de neve que se avista desde a aldeia, de formas suaves e regulares. Este é um dos subsistemas montanhosos do Sistema Central Ibérico, e o ponto mais alto, o pico Almançor, com os seus 2592 metros de altura, ficava no fim do nosso caminho. Que a zona é protegida já sabíamos, mas alguém deve também ter avisado as cabras-montesas, que por ali pastam muito calmamente e sem medos, parando no trilho para ver quem passa. Algumas aqueciam-se ao sol, deitadas nos lameiros, entre carvalhais que a neve tinha polvilhado durante a noite, as mais tímidas lançando-nos olhares por cima do ombro.

O frio subia do chão e o sol desfalecia, sem forças para derreter a neve que cada vez mais marcava presença, sobretudo nas margens do rio pedregoso que as cabras atravessavam sem ponte, saltando de pedra em pedra. Pouco a pouco fomos saindo das zonas arborizadas e chegámos ao pequeno planalto - mais alto do que plano - que dá pelo bucólico nome de Roncesvalles, onde foi a nossa vez de atravessar o rio sobre uma ponte de madeira, atrás de um rebanho de cabras-montesas em fila indiana. A ideia era montar tendas e comer, mas a paisagem assaltava-nos, e o grupo foi dispersando à procura de fotos, de vistas, de paz, dos últimos raios de sol.

Ao fim do dia desceu uma surpresa do céu: uma nuvem espessa, como uma placa de neve que se tivesse descolado dos montes, veio desfazer-se em flocos em cima do refúgio que serve de cozinha a quem por ali pernoita. Tendas armadas, todos fugiram para dentro das paredes de pedra à procura de calor e comida. Lá fora ficaram os maciços graníticos cada vez mais imponentes, as cabras e a neve, que caiu sem descanso até ao dia seguinte. Sem guia, teria sido impossível continuar até ao refúgio Elola, onde devíamos abrigar-nos na segunda noite: o caminho desapareceu debaixo de uma camada de neve, que escondia também pedras e charcos traiçoeiros, onde os pés - os meus, pelo menos - se enfiavam constantemente, à procura de solo firme.

Subimos pela Garganta de Gredos embrulhados num turbilhão de flocos empurrados pelo vento, que nos entravam na boca e nos olhos, pintando tudo de branco e escondendo os picos. Em certos locais a paisagem parecia terminar a dez metros de distância, e as únicas cores que sobressaíam no branco luminoso da neve eram os blusões garridos dos caminhantes, cada um ao seu ritmo, os mais distantes transformados em pintas coloridas. Pé ante pé, mergulhados num nevoeiro gelado que não nos deixava parar, seguimos o ribeiro que desce da Laguna Grande, cada vez mais indetectável sob a capa da neve. Lá em cima, a lagoa estava transformada numa pista de gelo lisa, que teríamos de contornar no dia seguinte para alcançar a Plataforma de Gredos.

O refúgio Elola fica escondido no covão glaciar da Laguna Grande, um dos maiores da Península Ibérica, que está rodeado pelos cumes do Almançor, Morézon (2393 metros) e Três Hermanitos (2277 metros). Debaixo da tempestade nem sombra dos cumes, claro está, mas a sensação de estar encerrado entre os blocos graníticos do maciço é aqui mais forte do que nunca. A zona é tão remota que serviu de refúgio à tribo celta dos Vetões e, mais tarde, aos guerrilheiros antifranquistas, que aqui procuravam refúgio; e também nós fugimos, perseguidos pela tempestade, para dentro das acolhedoras paredes da casa que nos proporcionou comida quente, uma noite sossegada e uma original exposição de meias molhadas, penduradas à volta do aquecedor.

O pico do Almançor voltou a faltar ao encontro logo de manhã, mas mal saímos do covão, subindo por um dos lados da garganta, as vistas privilegiadas fizeram-nos esquecer os gigantes escondidos pelo nevoeiro: do cimo de uma plataforma de pedra o vale glaciário estendia-se aos nossos pés, e vários miradouros naturais permitiam ver as formas e recortes da serra até muito longe - até porque o sol voltava aos poucos, tornando o chão ofuscante e apressando a marcha, agora fácil, até à Plataforma. Confrontadas com um terreno liso e sem obstáculos, as pintas coloridas espalhavam-se e juntavam-se ao sabor da descoberta e do prazer de caminhar sem esforço numa paisagem natural e selvagem. Já se adivinhava o silêncio da viagem de regresso, com o cérebro a processar as imagens fantásticas colecionadas nos últimos três dias num local tão afastado do nosso mundo - e ao mesmo tempo tão próximo.

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