O Rei de Inglaterra que tinha medo ?do microfone
Chega hoje aos cinemas O Discurso do Rei, o principal favorito aos Óscares. Conta um episódio pouco conhecido na história de Jorge VI, o rei gago que recorreu a um terapeuta da fala para se transformar na voz de que a Inglaterra precisava em tempo de guerra. Em Portugal há ainda alguma reserva em associar a política à terapia da voz e ao medo de falar em público. Saber o que dizer é importante, mas saber dizê-lo também. Por Sérgio C. Andrade
Há uma cena n"O Discurso do Rei em que Jorge VI assiste com a filha, Isabel, no Palácio de Buckingham, a um filme de actualidades com um discurso inflamado de Hitler, e ela lhe pergunta: "O que é que ele está a dizer?" O pai responde: "Não sei. Mas a verdade é que o diz muito bem!" Jorge VI (1895-1952), que chegara ao trono de Inglaterra em 1936, mal conseguia disfarçar a admiração pela capacidade que o ditador alemão tinha de falar e de entusiasmar a população através de uma bem encenada utilização da rádio e do cinema.
O filme de Tom Hooper - que hoje chega às salas portuguesas e, com 12 nomeações, se apresenta como o principal favorito na corrida aos Óscares de Hollywood - começa com a recriação de uma situação, em 1925, no encerramento da Exposição do Império Britânico em Wembley, em que o então ainda príncipe Albertoe duque de Windsor fora chamado a discursar. Nessa época, a radiodifusão começava a afirmar-se como um instrumento fundamental para o discurso político e a comunicação de massas. Mas Alberto era gago. E o microfone colocado à sua frente na tribuna de Wembley assume dimensões desconformes e funciona mais como barreira do que como mediador da sua comunicação com a multidão. Era um instrumento que lhe causava pavor.
A acção do filme de Tom Hooper vai desse momento até ao dia 3 de Setembro de 1939, quando Alberto, reinando já como Jorge VI, proferiu a partir do Palácio de Buckingham um pausado mas fluente discurso aos povos da Commonwealth a anunciar a entrada da Inglaterra na guerra contra a Alemanha nazi: "Nesta hora grave, talvez a mais difícil na História, dirijo esta mensagem a todos os meus povos, tanto em Inglaterra como além-mar (...), como se estivesse a entrar em casa de cada um e a falar-vos pessoalmente. Pela segunda vez nas vidas da maioria de nós, estamos em guerra (...)."
O que é que se passou entre o discurso falhado de 1925 e esta comunicação radiofónica pausada, grave mas convincente no ano de início da Segunda Guerra Mundial? O príncipe e segundo filho de Jorge V que, contra todas as expectativas (incluindo as suas próprias), viria a ser Rei, tornara-se a voz da nação e o porta-voz de cada um dos seus súbditos. Em grande parte, esta mudança ficou a dever-se a Lionel Logue, um obscuro actor e terapeuta autodidacta australiano radicado em Londres.
É sobre a relação entre estes dois homens (interpretados por Colin Firth e Geoffrey Rush, ambos candidatos ao Óscar) que incide O Discurso do Rei, numa história que não esquece também o papel de figuras como Lady Isabel Bowes-Lyon (Helena Bonham Carter), mulher de Alberto, futura rainha consorte e mãe de Isabel II; o irmão mais velho deste, Eduardo VIII (que, com menos de um ano de reinado, em 1936, haveria de se tornar no Rei mais breve, e talvez o menos querido, da história de Inglaterra); e o futuro primeiro-ministro e grande herói da vitória sobre a Alemanha, Winston Churchill.
Boa imagem pública
No filme, a gaguez do Rei é apresentada como o principal motivo da sua falta de confiança e do seu desinteresse relativamente ao trono. Todavia, Vasco Pulido Valente desvaloriza a importância desta deficiência no seu desempenho histórico. "Jorge VI foi muito popular desde o início, mas sobretudo a partir do começo da guerra", diz o historiador ao P2, referindo-se ao facto de tanto Jorge VI como a rainha terem recusado "fugir" para o Canadá, tendo feito questão de permanecer no seu palácio em Londres, sob os bombardeamentos da aviação alemã em 1940-41. Pulido Valente recorda a afirmação de Isabel, aquando do primeiro ataque dirigido a Buckingham: "Estou feliz por termos sido bombardeados - agora podemos olhar de frente os habitantes do East End."A boa imagem pública que o casal real conquistou pela forma como decidiu enfrentar e partilhar com os londrinos as agruras da guerra contrastava com a má impressão deixada por Eduardo VIII. No filme de Tom Hooper,a sua abdicação do trono é justificada pelo romance com a plebeia norte-americana e divorciada Wallis Simpson, deixando em segundo plano a sua reconhecida simpatia pelo regime alemão que, aliás, "teve também expressão em vários quadrantes da aristocracia e do poder político britânicos, e que justificou a política de apaziguamento defendida praticamente até ao início da guerra", explica ao P2 o historiador Manuel Loff. Curiosamente, e também ao contrário da versão veiculada n"O Discurso do Rei, Winston Churchill, acrescenta este professor da Faculdade de Letras do Porto, foi um dos principais defensores da manutenção de Eduardo VIII no poder, "num momento da história britânica ainda pouco estudado".
A História com letra maiúscula é, pois, apenas o pano de fundo do enredo d"O Discurso do Rei, que põe a tónica na relação pouco convencional de Jorge VI com o seu terapeuta da fala, que durante anos foi tratada quase como um "segredo de Estado". À época, na sociedade britânica, a gaguez era vista como uma falha de carácter, mais grave ainda se afectava um membro da realeza. (Curiosamente, pela mesma altura, o Presidente norte-americano, Franklin D. Roosevelt, que padecia de poliomielite, usufruía da sua boa prestação aos microfones da rádio, mas "a sua deficiência era ocultada dos olhares do país", lembra o politólogo António Costa Pinto. Nesta altura a televisão não tinha ainda chegado à arena da política.)
O episódio dos tratamentos vocais de Jorge VI só agora chega ao grande público pelo cinema depois de cumprida uma exigência da rainha Isabel (1900-2002), que pediu ao escritor David Seidler - ele próprio também afectado pela gaguez na sua infância - que não escrevesse sobre o caso do marido antes da morte dela. "As memórias desses tempos são ainda muito dolorosas", respondeu a rainha-mãe, quando, no início da década de 80, foi contactada pelo argumentista anglo-americano.
A voz em política
Hoje, em Portugal, o recurso de políticos e outras figuras públicas a terapeutas da fala ou a professores de dicção é uma prática reconhecida, mas há ainda alguma reserva em falar disso. Não é o caso, por exemplo, de Maria João Seixas, actual directora da Cinemateca Portuguesa e reconhecida pela naturalidade com que lida com a sua gaguez. Seixas, que ainda não viu este Discurso do Rei, admite que, durante muito tempo, e à imagem de Jorge VI, sentiu "algum mal-estar perante os microfones e o telefone". Já o mesmo não acontecia com as câmaras da televisão. Mas, para além da terapia que também fez, diz que o principal apoio para superar a gaguez que surgiu ainda na infânciafoi a forma como os pais a ajudaram a lidar com a situação. "Eles convenceram-me de que a gaguez me dava uma graça que as outras crianças não tinham", recorda.A actriz Glória de Matos tem uma longa experiência de acompanhamento de políticos e de outras pessoas como professora de dicção. Os mais conhecidos são o actual Presidente da República, Cavaco Silva, e o fundador do PPD-PSD, Francisco Sá Carneiro. "Só falo dos dois, porque são situações que já vieram a público", diz ao P2 a actriz, que lamenta que entre nós não se consiga ainda abordar o assunto "com naturalidade". "Um dos problemas mais frequentes é o medo de enfrentar o público. E isso acontece tanto com os políticos, como com os actores e outros artistas", acrescenta, lembrando o caso de Amália Rodrigues, "que tremia sempre que tinha de subir ao palco, mesmo sabendo que iria ser recebida com uma grande ovação".
Com Cavaco Silva, a actriz trabalhou em dois períodos em meados dos anos 80, aquando da sua chegada à liderança do PSD e depois a primeiro-ministro. "O professor Cavaco Silva impressionou-me imenso pela sua capacidade de trabalho. Ele entrava na sala e tudo o resto deixava de existir, só lhe interessava o trabalho da voz e da dicção."
Ao anterior primeiro-ministro social-democrata Sá Carneiro, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, Glória de Matos ajudou principalmente a libertar-se da tensão e dos problemas na voz resultantes do grave acidente de viação que tinha sofrido. "Foram apenas duas semanas, mas muito intensivas. Pu-lo a fazer exercícios de relaxamento, e ele também levava o trabalho muito a sério."
A voz é o instrumento primordial do político - um verdadeiro instrumento de poder - e o seu domínio é indispensável à transmissão eficaz da mensagem. Manuel Alegre admite que as características da sua voz, trabalhada nos anos em que integrou o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) com "o grande professor Paulo Quintela", o ajudaram na actividade política, iniciada nas assembleias gerais de estudantes. "Mas uma pessoa é um todo, e a oratória é um dom que está tanto ligado à voz como à língua", acrescenta o ex-candidato à Presidência da República, que cita o poeta irlandês William Butler Yeats ao dizer "um discurso prepara-se como um poema".
Já Adelino Gomes, jornalista com carreira na rádio, televisão e jornais, realça que, para além da voz e do domínio da técnica que é indispensável a qualquer comunicador - político, actor ou locutor -, o mais importante de tudo é "ter alguma coisa para dizer". E lembra o caso histórico de Vitorino Nemésio com o seu sempre muito apreciado programa de televisão. "Ele não tinha presença física, nem voz, nem performance a ajudar. Mas ultrapassava tudo isso pela riqueza e inteligência do que tinha para comunicar."
No caso do rei Jorge VI, não se tratava apenas daquilo que ele tinha para comunicar, mas de o poder fazer, com toda a carga simbólica que a voz do Rei assumia em Inglaterra, principalmente na era da rádio e em tempo de guerra. O jornalista do Telegraph Nigel Farndale recorda uma cena do filme autobiográfico de John Boorman, Esperança e Glória (1987), cuja acção decorre em Londres sob os bombardeamentos da Luftwaffe, em que uma família ouve, com atenção tensa, a mensagem de Natal do Rei. No final, alguém comenta que, se ele estava a recuperar da sua gaguez, também o povo inglês conseguiria vencer a guerra.
O Discurso do Rei chega hoje a 35 salas do país. Continuará a ser o filme de que se vai falar até à cerimónia de Hollywood, a 27 de Fevereiro. Será que Colin Firth vai gaguejar no palco do Kodak Theatre de Los Angeles, quando, como se prevê, aí subir para receber o Óscar de Melhor Actor?