Reagan O "santo" que inspira Obama

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Reagan começou a sua carreira de actor em 1937, com Jim WATSON/afp

A América celebra hoje os 100 anos do nascimento de Ronald Reagan. É o mais popular presidente depois de Kennedy. Um herói para os republicanos - e (quem diria?) uma inspiração para o democrata que hoje está na Casa Branca. Nas próximas páginas, biógrafos discutem a presidência e o legado de Reagan.

Em Janeiro de 2008, em plena campanha presidencial, Barack Obama fez o que, para muitos democratas, é uma heresia: elogiou Ronald Reagan. "Penso que Ronald Reagan mudou a trajectória da América de uma forma que Richard Nixon não conseguiu, nem Bill Clinton", disse a um jornal do Nevada. "Ele percebeu o que as pessoas estavam a sentir, que era: "Queremos clareza, queremos optimismo"."

Obama foi repreendido pela rival Hillary Clinton, que procurou capitalizar o momento a seu favor, acusando-o de dizer que as ideias republicanas eram melhores do que as dos democratas. O episódio acabou por ser mais prejudicial para Hillary, que teve de cancelar um anúncio negativo em que caluniava Obama.

E, apesar de uma campanha eleitoral ser um período particularmente delicado, em que qualquer coisa que os candidatos dizem pode ser usado contra eles, os assessores de Obama não tinham um plano de socorro. Robert Gibbs, que na altura acompanhava sempre Obama como director de comunicações, explicou à revista Time que não pensou que fosse preciso alertar o quartel-general da campanha. "Eu já o tinha ouvido dizer aquilo tantas vezes."

Dois anos depois, as referências de Obama ao antigo presidente - e a sua aparente vontade de emular certas atitudes de Reagan - já não parecem chocar ninguém. Mais, ele quer que isso se saiba: no Natal, quando partiu de férias para o Havai, Gibbs escreveu no Twitter que ele levava consigo um livro: President Reagan: The Role of a Lifetime, de Lou Cannon, considerada a melhor de uma montanha de biografias de Reagan (a Amazon contém mais de mil livros escritos sobre ele).

Depois das incontáveis comparações de Obama com Kennedy, com Franklyn Roosevelt, com Lyndon B. Johnson e, basicamente, com qualquer presidente democrata do século XX, a capa da última edição da Time é uma montagem fotográfica, com Reagan a abraçar um sorridente Obama, e o título: "Por que é que Obama ama Reagan."

É difícil imaginar dois presidentes que tenham menos em comum, mas desde a estrondosa derrota democrata nas eleições intercalares de Novembro até ao discurso sobre o estado da União, há uma semana e meia, Obama não tem parado de dar sinais de que anda a estudar a presidência do republicano Ronald Reagan. Recentemente assinou um texto para o jornal USA Today, a propósito do centenário do nascimento, em que descreve Reagan como uma figura unificadora. "Apesar de saber que os conflitos entre partidos e adversários políticos eram inevitáveis, ele também sabia que eles nunca seriam suficientemente fortes para quebrar os laços que nos mantêm unidos", escreve. "Ele entendia que apesar de podermos ver o mundo de forma diferente e ter opiniões diferentes sobre o que é melhor para o nosso país, o facto é que somos todos patriotas."

Essa é a mensagem que Obama, ele próprio, tem procurado defender desde o seu discurso na convenção democrata de 2004 ("não existem estados azuis [democratas] e estados vermelhos [republicanos]. Existem os Estados Unidos da América") e que parecia estar esquecida até às eleições de Novembro. Com a instalação de uma nova maioria republicana no Congresso, Obama retomou o tema, dizendo que era a principal lição que extraíra da noite eleitoral: os americanos querem que os dois partidos trabalhem juntos. Citar Reagan dá-lhe legitimidade.

Por outro lado, apesar da tendência para comparar a derrota democrata de Novembro com a de 1994, durante o primeiro mandato de Bill Clinton, há quem defenda - mesmo entre os assessores de Obama - que o momento tem, na verdade, mais semelhanças com a primeira administração Reagan: em 1982, os republicanos sofreram uma pesada derrota eleitoral; a economia americana estava a atravessar a maior crise desde a Grande Depressão; a taxa de desemprego situava-se nos 10 por cento. E, no entanto, dois anos mais tarde, Reagan ganhou a reeleição confortavelmente, beneficiando da recuperação e crescimento económicos.

"É perfeitamente natural que ele esteja a olhar para Reagan porque, a meio do seu mandato, Reagan tinha um desemprego elevado e uma derrota nas eleições intercalares", diz à Pública o jornalista Lou Cannon, 77 anos, autor da biografia que Obama leu no Natal. "E, no entanto, Reagan deu a volta a isso e conseguiu uma extraordinária vitória em 1984, ganhando em todos os estados menos um."

"Se Obama conseguir baixar o desemprego até aos 7 por cento [no dia das eleições em 1984, a taxa era de 7,4 por cento], pode ser que ele consiga repetir o milagre de Reagan. Resta esperar para ver", diz Tony Blankley, 63 anos, que foi um dos speechwriters de Reagan.

A última campanha

Reagan é o presidente americano mais popular desde Kennedy. Uma sondagem da Gallup realizada em Novembro mostra que 74 por cento dos americanos aprovam a sua presidência, logo a seguir à de Kennedy, com 85 por cento.

Reagan já era um presidente popular quando deixou a Casa Branca, ao fim de oito anos, mas ninguém imaginava que uma década depois o Congresso americano estaria a discutir uma proposta para esculpir o seu rosto em Mount Rushmore, junto de quatro presidentes históricos: George Washington, Thomas Jefferson, Lincoln e Franklyn Roosevelt. Em 1996, quando o New Yok Times publicou um Índice da Grandeza Presidencial, baseado na votação de 719 historiadores e académicos, Reagan apareceu em 25.º lugar num total de 40. "Ele ficou atrás de Rutherford B. Hayes, um presidente que ninguém recorda e que nunca fez nada", nota Richard Reeves, 74 anos, autor de livros sobre três presidentes americanos, Kennedy, Nixon e Reagan.

"Quando deixou a presidência, ele era popular junto das pessoas mas muito pouco reputado junto dos académicos, que tendem a ser de esquerda", diz Lou Cannon. "A avaliação da academia melhorou devido à queda da União Soviética e outras razões. Por outro lado, a visão sobre Reagan tem melhorado com o tempo por causa dos seus sucessores. O primeiro Bush, apesar de eu pensar que ele era um presidente bastante capaz, não conseguiu ser reeleito; Clinton tinha falhas de carácter; e George W. Bush foi impopular, especialmente nos últimos anos."

Mas a popularidade de que Reagan goza actualmente também resultou de uma manobra deliberada. Como nota Richard Reeves, muitos presidentes modernos inspiram uma última campanha, já depois de deixarem o cargo: a defesa e promoção do seu legado. "Kennedy fez isso, não digo pessoalmente, mas a sua mulher, [o historiador presidencial] Arthur Schlesinger, e Ted Sorensen [speechwriter] lançaram de imediato uma campanha [a seguir ao assassínio] que basicamente defendia que Kennedy era um grande presidente."

A novidade, com Reagan, foi que, no seu caso, a monumentalização começou quando ainda estava vivo (embora incapacitado pela doença de Alzheimer).

O Índice da Grandeza Presidencial foi o toque de clarim para alguns conservadores, que ficaram furiosos com o fraco ranking de Reagan, coincidente com a reeleição de Bill Clinton. E em 1997 foi criado o Ronald Reagan Legacy Project, um lobby com o objectivo de baptizar locais públicos nos 50 estados americanos, bem como nos antigos países comunistas do Leste europeu. Até hoje, mais de uma centena de edifícios e locais receberam o nome de Reagan, incluindo o aeroporto de Washington.

Negociar com o inimigo

Lou Cannon diz que a popularidade de Reagan hoje se deve à forma como lidou com a União Soviética e restaurou a confiança dos americanos quando "tínhamos uma economia muito, muito má".

Reagan fez o impensável: chamou à União Soviética "império do mal" e forjou uma relação próxima com o líder soviético, Mikhail Gorbatchov - e fez as duas coisas ignorando os conselhos dos seus membros de gabinete.

"Tony Dolan, que era o seu principal speechwriter, escreveu a frase "o foco do mal no mundo moderno", mas sempre que esse discurso passava pelo processo de aprovação - tinha de passar pelo Departamento de Estado, o Conselho Nacional de Segurança, David Gergen, que era o director de comunicação, e, por fim, James Baker [chefe de gabinete] - a expressão era cortada", conta Tony Blankley. "Ninguém no aparelho diplomático ou de comunicações na administração queria chamar a União Soviética de "império do mal"."

Era o tipo de provocação, receavam, que poderia levar a um confronto entre as duas potências nucleares.

"Sempre que havia um discurso sobre diplomacia, Tony Dolan tentava metê-la. Até perceber que não tinha de ser um discurso sobre diplomacia e meteu-a num discurso sobre política interna, que não passou pelo mesmo processo. Reagan viu uma boa expressão e usou-a."

Por outro lado, quando Gorbatchov visitou a Casa Branca pela primeira vez, havia receios de que Reagan estava a ser manipulado ou demasiado suave com os soviéticos.

"Muitos de nós, conservadores, tinham sérias dúvidas em estender a mão a Gorbatchov", diz Tony Blankley. "Não tínhamos a experiência de Reagan, estávamos quase todos na casa dos 30 ou 40, quando ele estava nos 70. E estávamos muito irredutíveis em relação ao que pensávamos da União Soviética. Lembro-me que Gorbatchov tinha os seus seguranças com ele, que eram muito altos, usavam casacos de cabedal e tinham uns rostos duros como pedra. E alguns de nós estávamos de olhos fixos neles, a poucos metros, e eles de olhos fixos em nós. Quer dizer, a ideia de o líder da URSS estar na Casa Branca era chocante para muitos de nós." E, no entanto, Reagan achou que Gorbatchov era um homem com quem poderia negociar. "Maggie Thatcher tinha lidado com ele primeiro. Maggie Thatcher e Reagan eram muito próximos. E ela tinha-o aconselhado: ele é alguém com quem podemos negociar. E Reagan seguiu-lhe o conselho."

O Muro de Berlim e a URSS caíram pouco depois de Reagan deixar a presidência, contribuindo para a ideia generalizada de que ele ganhou a Guerra Fria, uma noção disputada por Richard Reeves. "A vitória na Guerra Fria decorreu de um processo de 50 anos, que começou com o fim da Segunda Guerra, com Harry Truman e com centenas de milhões de americanos: havia um consenso americano de que íamos conter o comunismo."

Mas é verdade que Reagan restaurou o orgulho e o excepcionalismo americanos. Até aos anos 1970, a América via-se como a única nação com perpétuo optimismo em relação ao futuro. Isso mudou com a Administração de Jimmy Carter. Carter foi à televisão dizer que havia uma malaise, que algo estava errado nos americanos. "Até que surgiu Ronald Reagan, que lhes assegurou que ainda eram melhores do que qualquer outro povo. Que podia haver altos e baixos, mas a América seria sempre a "cidade resplandecente numa colina" porque os americanos são melhores do que os outros", diz Richard Reeves. "Veja os discursos dele. O último parágrafo diz sempre qualquer coisa como: "Vamos mudar o mundo, podemos fazer tudo o que quisermos. E por que não? Afinal, somos americanos." Essa é uma mensagem muito atraente para imensos americanos."

Que fazer com o governo?

Impossível não pensar que Obama se inspirou em Reagan quando fez o seu discurso à nação no passado dia 25 de Janeiro. Nunca mencionou Reagan, mas tentou transmitir confiança no futuro, numa altura em que muitos americanos receiam ser ultrapassados pela China, e a convicção de que os Estados Unidos são únicos. O paradoxo de ver Obama seguir o exemplo de Reagan é que o actual Presidente americano defende uma doutrina oposta. Reagan acreditava que "o governo não é a solução, mas o problema", como disse no seu discurso da tomada de posse, iniciando uma atitude de cepticismo e desconfiança em relação ao governo que perdura até hoje. Obama, por seu lado, acredita que o governo pode e deve lidar com os problemas do país.

"Há uma diferença bastante pronunciada entre a era pré-Reagan e a era pós-Reagan na política americana", diz Jeremy Mayer, professor de Ciência Política na Universidade George Mason, na Virgínia, e autor de um livro sobre Reagan. "Antes de Reagan, o consenso, quer se tratasse de Nixon, Ford ou Carter, era: o governo pode fazer muito mais. Reagan fez com que a direita e a esquerda mudassem a forma como falam dos programas do governo. Ele mudou a agenda do país."

Obama, diz, quer ser "o tipo de figura transformadora que Reagan foi", mas revertendo o credo reaganista.

Mas a reforma do sistema de saúde, o fundo de emergência que salvou os bancos americanos da falência e o pacote de incentivos à economia apenas fizeram com que a opinião negativa dos americanos sobre o governo atingisse um novo recorde. Uma sondagem da Gallup realizada em Setembro revelou que sete em dez americanos têm uma visão desfavorável do governo federal. "Demasiado grande", "confuso" e "corrupto" foram algumas das palavras usadas para descrevê-lo.

A mensagem que continua a ser mais atractiva para os americanos é a de Reagan, e republicanos e Tea Party não têm parado de invocar o seu santo nome. O reaganismo - governo reduzido, impostos baixos, poderio militar e a crença de que os americanos são melhores do que qualquer outro povo - está bem, obrigado, embora, na prática, Reagan não tenha diminuído o tamanho do governo, e tenha começado por baixar impostos para níveis históricos, mas depois voltou a subi-los.

"O governo era maior quando Reagan saiu do que quando entrou e isso tem sido verdade para todos os presidentes. Quando se está no governo, ninguém é realmente a favor de um governo mais pequeno", diz Richard Reeves. "A discussão não é sobre o tamanho do governo mas sobre o seu papel. Quando Reagan fez carreira reclamando a redução do governo, na verdade ele aumentou o tamanho do governo mas pô-lo a fazer coisas diferentes." Por exemplo, aumentou o orçamento militar em 50 por cento, alegadamente atribuindo mais dinheiro ao Pentágono do que o pedido. Alguns dos actos de Reagan contradizem a sua ideologia e, no entanto, isso não manchou a sua reputação. Mais: essa retórica é hoje raramente disputada e continua a dominar o discurso político conservador.

Reagan é particularmente venerado pelos republicanos - qualquer candidato presidencial, por exemplo, tem de invocar o seu nome durante a campanha como se fosse um teste de pureza.

"É impossível criticar Reagan, é impossível diferenciar-se dele. Ele é Santo Ron, o Primeiro", ironiza Jeremy Mayer.

David Frum, que mais tarde viria a escrever discursos para George W. Bush (é o autor da frase infame "eixo do mal"), e um defensor do corte epistemológico dos republicanos em relação a Reagan, escreveu em 1994: "Os conservadores pós-Bush olham para os feitos dos primeiros anos Reagan da mesma forma que os romanos do século VII devem ter olhado para os seus aquedutos: "E pensar que em tempos construímos tudo isto!""

"Para todos os efeitos, Ronald Reagan ainda é o líder do Partido Republicano", diz Richard Reeves. "Quando ele surgiu, o partido era feito de gente que se odiava. O republicano de Wall Street odiava as pessoas da direita cristã. E havia os republicanos anticomunistas, os populistas, os libertários. A única coisa que mantinha estas pessoas juntas era Reagan. Hoje é a mesma coisa."

Há quem defenda que Reagan hoje faria figura de moderado num partido que se barricou na ideologia. "Existe a noção de que ele era um ideólogo conservador, e é falsa", diz Lou Cannon. "Ele era conservador, isso não está em causa, mas Reagan era uma pessoa extremamente prática. Baixou os impostos, mas depois aceitou fazer vários aumentos fiscais. Colaborou com uma Câmara dos Representantes Democrata e Tip O"Neill [o speaker democrata] numa série de coisas. Não gostava que a ideologia lhe barrasse o caminho. Tinha convicções conservadoras mas queria obter resultados, em casa e lá fora."

Tony Blankley confirma: "Ele tinha uma boa base intelectual - ideológica, se quiser chamá-la assim. Ele tinha lido os mesmos livros que nós. Mas essa não era a sua linguagem. E quem escrevia para ele tinha de se purgar ideologicamente. Ele queria falar de problemas e soluções, das tradições e valores da América, de onde queremos viver como povo. Julgo que essa é uma área em que os conservadores falam em termos muito mais ideológicos."

"Fico arrepiado quando alguém como Sarah Palin se compara a Reagan", diz Lou Cannon. "Muitas destas pessoas, especialmente na direita, que endeusam Reagan esqueceram convenientemente, se é que alguma vez souberam, que ele era um presidente muito mais prático, muito mais dado a compromissos do que elas se lembram."

Talvez Obama seja, de facto, o seu herdeiro político. a

klg@publico.pt

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