Por que é que tens de ser um deles?
"Você vai gostar da Bishop", disse-me uma vez um professor de Literatura Americana. Na altura, eu só conhecia Elizabeth Bishop (1911-1979) das antologias. E o tema recorrente desses poemas - a viagem - não me interessava especialmente. Depois, comprei os poemas completos, que reúnem as quatro breves colectâneas North & South (1946), A Cold Spring (1956), Questions of Travel (1965) e Geography III (1976). E descobri que o professor Torres tinha razão: gostei bastante da Bishop.
Etariamente, Elizabeth Bishop pertence à geração da "poesia confessional". Mas, embora fosse amiga de alguns desses escritores despudoradamente autobiográficos, Elizabeth sempre recusou o confessionalismo. Na sua poesia encontramos um evidente controlo das emoções, Bishop nunca revela muito, é sempre discreta, reticente, irónica. A linguagem é clara, a composição meticulosa, o poema evita tudo que seja abstracto ou confuso, e mesmo as alegorias não são excessivamente densas. O crítico Adam Kirsch escreveu: "A sua melhor poesia demonstra que a experiência, canalizada através de símbolos, sublimada na paisagem, incorporada nos ritmos e nas imagens, pode ser mais eficaz e mais honesta do que a simples confissão." É uma boa maneira de provar que a honestidade, sendo uma virtude, pode ser atingida por outras vias que não a confissão.
Bishop ficava aterrada com experiências como as do seu grande amigo Robert Lowell, que chegou a incluir nos poemas excertos de correspondência conjugal. Ela fugia desse desnudamento público e eticamente questionável. Ao lermos os poemas de Bishop, podemos pensar que teve uma vida menos acidentada do que os seus contemporâneos, mas as biografias desmentem tal ideia. Elizabeth cresceu órfã (o pai morreu tinha ela quatro anos, a mãe deu entrada num hospício pouco depois), teve uma vida amorosa por vezes tempestuosa, caiu com frequência no alcoolismo e na depressão. Mas isso, que interessa, não interessa aos poemas. O mais que ela se permitia era interrogar as suas experiências através de "questões sobre a viagem" e de episódios de infância.
Comecemos pela viagem. Os títulos dos livros de Bishop explicitam as suas preocupações geográficas, e basta lermos umas passagens para encontrarmos sobretudo poemas "paisagísticos". Mas Bishop - que viveu em várias cidades americanas e europeias - tem sobre a paisagem, e sobre a viagem, uma visão cautelosa, feita de deslumbramento e medo. A viagem é uma forma de conhecimento, e de enraizamento, mas também é propícia a decepções. Um dos seus poemas mais significativos é sobre um Robinson Crusoe decepcionado, mesmo depois de ser resgatado da ilha. Longe de serem idílios pastorais, os poemas de Bishop vêem na natureza (mais do que nas pessoas) uma hipótese de resposta. Embora Elizabeth fosse agnóstica, tinha, como alguém escreveu, "um temperamento religioso", pois fazia certas perguntas acerca do sentido da vida próprias de uma pessoa religiosa. Dois dos seus poetas favoritos, Herbert e Hopkins, de resto, eram sacerdotes.
Tendo vivido com frequência fora dos Estados Unidos (com um desafogo material que lhe adveio de uma herança), Elizabeth Bishop era acompanhada pelo sentimento de ser "estrangeira". E, mesmo na vida social, mantinha a distância, o cepticismo, uma espécie de neutralidade. Via as coisas de fora. E assim como evitava o biografismo, também não se interessava pela política ou por outros assuntos temporais. A sua poesia é meditativa e de algum modo intemporal, embora esteja muito embrenhada na espessura do tempo.
A viagem alimenta "desejos imodestos de um mundo diferente", mas este verso contém em si uma aspiração boicotada à partida pela descrença. Ao contrário de muitos poetas "paisagistas", Bishop vê uma grande ambiguidade na natureza. E, ao contrário dos escritores de viagens, duvida que se aprenda alguma coisa decisiva com a experiência. A vida é cumulativa, não avança em saltos qualitativos.
Não que Elizabeth fosse irremediavelmente triste. Sabemos que encontrou alguma felicidade no Brasil. Viveu quinze anos entre Samambaia, Rio de Janeiro e Ouro Preto, Minas Gerais, em companhia da impulsiva arquitecta Lota de Macedo Soares, por quem se tinha apaixonado. Mas até esses anos brasileiros acabaram mal, com o suicídio de Lota. Não por acaso, um dos mais célebres poemas de Bishop é sobre "the art of losing", "a arte da perda", a qual, confessa com mágoa, "não é difícil de dominar".
Se as "questões de viagem" revelam questões de Elizabeth Bishop consigo própria, os poemas de infância são alguns dos mais tocantes que escreveu. A poesia de Bishop centra-se em geral na realidade concreta ou na sua representação; mas nas recordações de infância a realidade é filtrada pela memória, e a representação é naturalmente viciada pelo desvio retrospectivo, pois mesmo uma criança sábia dificilmente seria assim tão adulta.
O meu poema preferido desta fase é In the Waiting Room, espantoso relato de uma consciência que desperta. É dia 5 de Fevereiro de 1918, Elizabeth está a três dias de completar sete anos. Nesse dia acompanhou a tia ao dentista, em Worcester, Massachussetts. É um inverno escuro e gelado. Na sala de espera do dentista, quente, iluminada, bisonha, a rapariguinha folheia a National Geographic (já então a geografia), e não consegue deixar de estudar aquelas fotografias fascinantes e violentas de povos distantes, de costumes bizarros, ali naquela sala de espera cheia de adultos silenciosos e encasacados. Então ouve a voz da tia, vinda do consultório do dentista, um grito de dor certamente, mas de súbito Elizabeth não sabe se é a voz da tia, se é a sua, ou ambas, ela, como a tia, não passa de uma "foolish, timid woman", e então, na sala de espera do dentista, cai em si, descobre que existe: "Então senti: tu és um "eu", / és uma "Elizabeth", / és um deles. / Por que é que tens de ser um deles?" Fora da sua consciência, na sala de espera, não se passou nada, mas ela deu uma queda da qual ninguém se levanta. O que é que tem de comum com aquelas pessoas, pensa, os pacientes, a tia, os indígenas da revista? Como é que ela está ali, porquê, e porque é que tem de ser um deles? E de repente regressa à normalidade. "Então voltei à sala. / Havia a Guerra. E lá fora, / em Worcester, Massachussetts, / havia noite e frio e granizo, / e ainda era o dia cinco / de Fevereiro de 1918."