A saga de Battisti
Andava tudo muito calado até que uma canção recente (escrita por José Mário Branco e co-interpretada por vários outros músicos) trouxe ao de cima uma série de disparates sobre o italiano Cesare Battisti, ao ponto de alguém, indignado, exclamar: "Só por ser cantor e pertencer à extrema-esquerda é que não pode ir para a cadeia?"
Ora Battisti já está na cadeia, não é cantor, mas sim escritor (com 17 livros publicados) e não é nenhum santo. Nascido numa família de comunistas activos, mas antiestalinista e avesso ao sangue (até a morte dos animais na quinta da família lhe provocava repulsa), a militância num grupo político que recorria a assaltos para se financiar levou-o à prisão. Libertado em 1976, aderiu aos Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), grupo onde era influente um homem que conhecera na prisão, Arrigo Cavallina. Também assaltavam bancos. Em Maio de 1978 (e isto alegou-o no Brasil, numa longa petição explicando-se à justiça) viu com horror nos jornais e na televisão como tinha sido assassinado Aldo Moro pela Brigadas Vermelhas. Nos PAC, segundo Battisti, decide-se que as armas seriam apenas para autodefesa, não para assassinatos. Mas Cavallina e Pietro Mutti, à revelia dessa decisão, decidem executar o coronel Antonio Santoro, chefe da polícia penitenciária. Em protesto, Battisti abandona os PAC, com outros militantes, e mudam-se para Milão. Ainda lá estavam quando três outros assassinatos ocorrem: um em Milão, o do joalheiro Pierluigi Torregiani (o filho deste, que ficou paraplégico na sequência do atentado, é hoje um dos activistas contra Battisti); o do açougueiro Lino Sabbadin, em Veneza; e o do polícia Andrea Campagna, também em Milão.
No Verão de 1979, já depois destes crimes, Battisti foi preso com outros militantes no prédio de Milão onde viviam. Foi condenado, então, a 13 anos e seis meses de prisão por "subversão contra a ordem do Estado", acusação que acatou. Durante o julgamento esteve numa prisão especial para terroristas, mas, após lida a sentença, foi transferido para uma prisão destinada aos que não tinham cometido crimes de sangue. Alegando, mais tarde, temer pela própria vida (viu prisioneiros voltarem embrutecidos de sessões de tortura ou desaparecerem sem rasto), evadiu-se a 4 de Outubro de 1981. Primeiro para França, e daí para o México e para o Brasil.
A prisão de Pietro Mutti, em 1982, mudou tudo. Mutti, que considerara Battisti um traidor por ter abandonado os PAC depois do assassinato de Santoro, passou a incriminar Battisti pelos crimes de sangue que lhe eram imputados. Em troca de nova identidade, tornou-se "arrependido" e, com a ajuda de outros "arrependidos" dos PAC, levou Battisti a ser condenado, à revelia, a prisão perpétua com privação da luz solar. Parece um filme? Mas é assim mesmo. O resto do processo anda por aí, em milhões de palavras, em papel e na Internet, para quem queira informar-se ou até tomar partido - por ele ou pelos acusadores.
Battisti está preso desde 2007 no Brasil, onde alega inocência. Os que acreditam nele batem-se contra a sua extradição para Itália. Os outros fecham os olhos à vendetta.
Jornalista