Reportagem: As ruas do Cairo estão a viver uma festa e uma tragédia

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A rebelião está à solta e vive-se um clima de liberdade na capital egípcia Foto: Asmaa Waguih/Reuters

A revolução ganhou? É uma espécie de ilusão, ou um intervalo na guerra, ou uma armadilha, mas o que se vê é a liberdade, a rebelião à solta pelas ruas. Ninguém sabe exactamente o que se passa, nem quer saber. Cheira a fumo e a queimado, ouvem-se gritos, gargalhadas e canções, há grupos sentados no meio da rua, passam manifestações para baixo e para cima, entoando palavras de ordem espontâneas e confusas. Instintivas. As lojas, os bancos e os restaurantes estão fechados mas vendem-se laranjas em carroças no meio da rua. De um lado vem a música do hi-fi de um carro, do outro soa o chamamento do muezin para a oração, as buzinas não param, as chamas irrompem de todo o lado, há apitos, palmas, gargalhadas, e olhares aterrorizados. É a anarquia, ou será o caos? É uma festa e uma tragédia ao mesmo tempo.

Um jipe enorme e velho acelera pela avenida Saled Salim com uma bandeira egípcia a sair pela janela. Lá dentro segue um grupo de rapazes, metade deles com barbas de islamista, outra metade com cortes de cabelo hip-hop. Raparigas de jeans rasgados e véu na cabeça correm para assistir ao incêndio do edifício do Partido Nacional Democrata do Presidente. Um grupo de homens grita "Fora Mubarak", e um outro, só de mulheres, traz cartazes pintados à mão e repete em uníssono: "O Egipto não vai morrer."

A cidade ao contrário

Mal começa o recolher obrigatório, é hora de sair para as ruas. Tudo funciona ao contrário no Cairo insurrecto. A noite avança e todos recolhem, sim, mas às ruas. Parece que o medo está a desaparecer. Ou então está a aumentar. Há tanques e blindados do Exército nas avenidas, e bloqueando várias ruas. "São as ruas de onde ontem saíam os manifestantes", explica Karim, de 26 anos, licenciado em Informática, desempregado. "As pessoas estavam aqui sem fazer nada, e de repente apareciam daquela ruela uns com paus e pedras. E de um momento para o outro estava tudo a atirar-se à polícia, e começava o tiroteio."

Isso foi ontem, sexta-feira. Hoje, sábado, há tanques nas ruelas traiçoeiras. Ninguém pode passar. Os militares fazem sinais de stop. Mas muitos desobedecem e não acontece nada. Há quem cole nos blindados cartazes a dizer "Mubarak demite-te". Anteontem houve confrontos, ontem não. Os soldados parecem apáticos, sonâmbulos a olhar para os manifestantes, que sobem aos tanques e se fazem fotografar com os "irmãos das forças armadas", como lhes chamam.

Onde está a polícia

O problema não são eles. O problema é a polícia, explicam. E hoje não há polícia. Depois da repressão que marcou todo o dia e noite de sexta-feira, a polícia desapareceu de repente. Nem um agente em toda a cidade do Cairo. Algumas esquadras estão queimadas, ainda a fumegar, dos ataques da noite passada. Mas agora não há pretexto algum para assaltar uma esquadra de polícia. A repressão acabou.

Magotes de gente desfilam empunhando cartazes contra o novo vice-presidente e contra Mubarak. Ninguém os impede. Fala-se livremente. "Ninguém sabe o que está a acontecer", confessa Karim. Um homem aproxima-se. "Estamos a ser ingénuos. Isto vai acabar mal. Ninguém me ouve". O homem já está aos gritos, mas diz que quer manter o anonimato. "Mubarak vai deixar que o povo ganhe confiança, e venha todo para a rua. Depois, quando ninguém estiver à espera, vai haver um massacre."

Karim tem outra teoria. "Mubarak é inteligente", diz. "Ele quer mostrar que o povo não sabe governar sozinho, sem as forças de segurança. Vamos acabar a matar-nos uns aos outros. E a certa altura as pessoas vão implorar que ele volte a impor a ordem."

Os vigilantes

De facto, o aspecto de auto governo parece ter começado. Há piquetes por todo o lado, grupos de manifestantes cortam o trânsito nalgumas ruas, outros dão informações. Em certas zonas, o sistema funciona. A autoridade superior deixou de existir, e dir-se-ia que Mubarak já não está de facto no poder. Escondido num palácio da estância turística de Sharm-el-Sheikh, teria desistido do país e prepararia ignobilmente a fuga.

Mas à medida que a noite avança a cidade livre torna-se num lugar assustador. Circulam histórias segundo as quais bandos de criminosos começaram a assaltar armazéns e lojas. Umas serão verdadeiras outras não. Diz-se também que quem assalta se faz transportar de moto.

Formam-se piquetes populares armados. Muitas ruas enchem-se de homens com paus, barras de ferro, martelos, serrotes, facas, pistolas e espingardas. O objectivo é proteger a vizinhança. Mandam parar todas as motos que passam. Se não obedecem correm atrás delas com os paus e os ferros.

Uma pequena motorizada cheia de luzes azuis intermitentes aumenta a velocidade mal vê o piquete. Atiram-se a ela e fazem-na cair. O homem é empurrado contra uma parede e espancado. Tenta fugir. Ouvem-se tiros. Uma mulher desata a gritar e não pára mais. Há correrias, mais tiros. As pessoas estão à janela, na rua El Tahrir. Um homem sai, de calças de pijama, fita na cabeça, na mão, uma lança primitiva constituída por uma faca amarrada a um pau de vassoura. Crianças correm pela rua, armadas com facas de cozinha. Um rapaz de uns dez anos vai meio a dançar, meio ao pé-coxinho, a brincar, brandindo a lâmina no ar, e uma menina ainda mais nova, descalça, estaca no meio da rua, apontando a faca para a moto que avança na sua direcção. E a noite ainda mal começou.

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