Satiagraha, uma bomba pacífica pela liberdade
No 62º Dia da República da Índia, homenagem a Mahatma Gandhi
Seria difícil imaginar um jovem advogado, tímido, obcecado em imitar padrões ocidentais, ser o libertador da Índia, por meios pacíficos, sem maltratar ninguém e, muito menos, tirar a vida. Ele voltara à sua Índia, depois dos estudos em Londres, mas depressa o seu fracasso como advogado o fizera desejar sair na primeira oportunidade. Aceitou sem hesitar um convite para trabalhar um ano na África do Sul; mas acabou por lá ficar 21, pois as circunstâncias fizeram-no viver marcantes experiências na luta contra a humilhação do apartheid.
Essas vicissitudes foram a sua escola de aprendizagem para uma acção eficaz em prol dos injustamente discriminados. De pessoa tímida foi-se afirmando em coragem e fortaleza; da sua formação de advogado fez valer os direitos de cidadania perante um poder colonial que tinha a força das armas, mas estava vazio de razão.
Cedo compreendeu que a violência é típica dos "sem-razão" e encontrou formas pacíficas de protesto para reclamar direitos elementares e inalienáveis que uma minoria negava à maioria. Organizou maciçamente o movimento Satiagraha ou a "força da verdade", em Setembro de 1906, protestando sem matar nem destruir, mas apenas com a desobediência civil, passiva, ou greves, para remover determinações ilegítimas.
Depois dos êxitos conseguidos em direitos humanos sobre a potência colonial na África do Sul, e da fama que granjeara, volta à Índia, onde é recebido como herói pela população e pelo incipiente Partido do Congresso. Em 1920, pouco tempo depois do falecimento de Tilak, então presidente do partido, Gandhi é convidado a ocupar o seu lugar. Aceita e dedica-se ao conhecimento do país real, dos seus inúmeros problemas, viajando milhares de quilómetros, visitando e falando com populações paupérrimas, para entender o estado a que a potência colonial os levara e a forma de o superar. Entretanto, prepara e lança o movimento Satiagraha na Índia, que se difunde como pólvora a arder, provocando os ingleses e deixando-os confundidos perante esta forma de luta, sem derramar sangue.
No julgamento a que fora submetido, em 1922, devido àquelas provocações, Gandhi declarou solenemente no Tribunal de Ahmedabad: "Aqui estou para provocar e para me submeter, muito feliz, à mais severa pena que possa ser infligida, reservada na lei ao crime deliberado, porque esse me parece ser o mais nobre dos deveres de um cidadão."
A seguir passou a explicar a razão pela qual, de legalista e cooperante, passara a não cooperante com o regime britânico. Afirmou que as leis britânicas haviam deixado a Índia absolutamente desamparada, como jamais o fora, quer política, quer economicamente.
O juiz Broomfield curvou-se respeitosamente e proferiu a notável sentença: "A lei não faz acepção de pessoas. Não obstante, seria impossível ignorar o facto de que, aos olhos de milhões dos seus conterrâneos, o sr. é um grande patriota e um grande líder. Até aqueles que não estão de acordo consigo em política olham para si como um homem de ideias superiores e com uma vida de nobreza e mesmo de santidade." E sentenciou-o a seis anos de prisão.
Poucos meses antes, as tropas inglesas haviam cometido um massacre de manifestantes, incluindo mulheres e crianças, em Jalianwalla Bagh: uma unidade militar de Gurkas (corpo militar nepalês), comandada por R. Dyer, assassinou a sangue-frio, e sem qualquer motivo, 379 pessoas absolutamente indefesas. Outras 1200 ficam feridas. A população encontrava-se nessa praça, em sinal de protesto contra o Government of India Act, num comício não autorizado, pacífico, sem quaisquer armas. A praça, murada a toda a volta, tinha apenas uma entrada que foi fechada pelo pelotão do Exército e de onde começaram as rajadas de disparos, semeando mortes e feridos.
Poderá ter sido sadismo ou desrespeito pela vida, ou "dar uma lição", na sua arrogância colonial. Parece-me, antes, o desnorte dos dirigentes ingleses perante a luta pacífica, autêntica bomba face às armas de destruição maciça em uso. Na verdade, os ingleses e o mundo só entendiam a linguagem da morte! O Satiagraha foi a genuína forma de luta pelos direitos que revolucionou o mundo.
Gandhi foi-se afirmando como líder e aproveitou todas as ocasiões para falar e escrever - nos jornais que criara, Young India, em inglês, e Navajivan em gujarati..., porque lhe fora barrado acesso a todos os jornais - e assim formar o povo no satiagraha. O Partido do Congresso era ainda de elites e só chegou a identificar-se com o povo com a "marcha do sal", que Gandhi aproveitou milimetricamente para sacudir toda a Índia à volta da iniquidade de vários impostos e, em particular, do imposto sobre o sal. A marcha de 320km, feita em 24 dias no ano de 1930, entre o seu ashram de Ahmedabad, e a localidade costeira de Dandi, no Gujarat; movimentou multidões que, dia a dia, engrossavam o caudal até à chegada ao mar, onde um gesto simbólico de retirar água estabeleceria que, daí em diante, ninguém pagaria o famigerado imposto. Era o começo generalizado da desobediência civil.
A marcha teve forte impacte nacional e internacional. Animou os patriotas, criou inércia e fez vibrar em uníssono todo o país. Gandhi e, com ele, o Partido do Congresso conquistaram os corações dos indianos. A forte curiosidade da imprensa estrangeira, perante o fenómeno desconcertante do Satiagraha, fez do acontecimento um ponto irreversível do termo da nefasta tutela inglesa.
A independência da Índia dá-se a 15 de Agosto de 1947; a Constituição do país é aprovada a 26 de Novembro de 1949 e a proclamação da República da Índia faz-se em 26 de Janeiro de 1950.
Entretanto, um fanático assassina Gandhi, quando se dirigia para o local das suas ora? ões matutinas, no ashram onde vivia, no dia 30 de Janeiro de 1948.
O povo português, em particular a cidade de Lisboa, parece ter entendido e aderido à mensagem de Satiagraha, a ponto de homenagear Gandhi com duas estátuas: uma no Restelo e outra no Lumiar. Professor da AESE; presidente da AAPI-Associação de Amizade Portugal-Índia e autor do livro O Despertar da Índia