Há uma tradição de grandes interpretações nos filmes do cineasta inglês Mike Leigh e "Um Ano Mais" não foge à regra. A David Thewlis ("Nu"), Brenda Blethyn ("Segredos e Mentiras"), Imelda Staunton ("Vera Drake") e Sally Hawkins ("Um Dia de Cada Vez") vem-se agora juntar Lesley Manville, no papel de uma secretária solitária que se refugia no álcool e nos sonhos impossíveis para combater a sua solidão.O que há de invulgar no caso de Manville é que, por uma vez, ela não é a personagem principal do filme. "Um Ano Mais" é um filme de conjunto, e a Mary a que a actriz dá corpo e alma é apenas um dos "satélites" que orbitam à volta dos "heróis" aparentes: Tom e Gerri, um casal londrino que parece ter a vida perfeita, ele engenheiro geólogo, ela assistente social. (Desenganem-se se acharem que os nomes, Tom e Gerri, são coincidência.)
Mas este casal feliz (que está longe de ser tão santo como o olhar superficial sugere) é mais o "fio condutor" do filme do que o centro deste olhar desencantado sobre a solidão. São personagens que Leigh usa como "ponto de entrada" dos espectadores, "substitutos" dos espectadores que, tal como nós, assistem à litania de misérias e grandezas que os seus convidados trazem à sua casa confortável ao longo das quatro estações do ano. Espectadores investidos nas vidas dos outros: Mary, claro, mas também Ken, o velho amigo que parece estar a matar-se aos poucos, Joe, o filho que ainda não assentou, Ronnie, o irmão viúvo que não sabe o que fazer da vida. Espectadores investidos mas, atenção, sem voyeurismo, sem a condescendência altaneira ou o desprezo que muitos críticos teimaram em ver no filme.
A verdade é que todos conhecemos gente como a que faz parte deste filme - gente que se esforça por ser feliz e que dá graças pelas suas pequenas bênçãos, gente perdida que não consegue reunir a energia para reencontrar o caminho. Personagens que ficam desenhadas com meia dúzia de pinceladas magistrais e que transformam "Um Ano Mais" na mais recente manifestação do olhar cirúrgico, lúcido, que Leigh lança sobre a Inglaterra contemporânea, erradamente descrito muitas vezes como fazendo parte do "realismo social".
Definição tecnicamente correcta mas que falha porque Leigh não está tanto interessado no "realismo social" por si próprio, mas antes em captar uma vibração emocional no trabalho dos actores que transponha a barreira entre o real e a ficção e evite a lógica fechada das narrativas tradicionais, excertos de um contínuo sem princípio nem fim. Os riscos desse trabalho são constantes no cinema de Leigh, que alinha clássicos incontornáveis e obras menores numa sequência irregular, mas é reconfortante ver alguém que não se acomoda. Basta ver como a própria estrutura "televisiva", episódica, da narrativa consegue uma densidade e uma gravidade que as exigências do pequeno écrã só raramente permitem (e que, na maior parte dos casos, só mesmo a ficção televisiva britânica está em condições de manter, mas nunca deste modo tão incisivo).
Paradoxalmente, "Um Ano Mais", exemplar do método Leigh no seu melhor, tem sido um dos seus trabalhos menos unânimes desde que estreou em Cannes 2010, com as opiniões a abrangerem o espectro da aclamação incondicional à recusa mais absoluta. Mas já demos por nós a pensar que "Um Ano Mais" é tão incisivo e desencantado que talvez seja essa franqueza que incomoda quem vê. Para nós, é o melhor Leigh desde o magistral "Segredos e Mentiras" - e isto, num ciclo que incluiu "Topsy-Turvy" ou "Vera Drake", não é dizer pouco.