Herzog & de Meuron: "A democracia é boa e má para a arquitectura"

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Herzog & de Meuron Pedro Cunha

Paris vista do céu é uma cidade de constelações. Beirute vista do céu é uma cidade de cicatrizes. Guadalajara vista do céu é uma cidade de divisões - de um lado os mexicanos ricos (percebe-se pelo enorme número de piscinas), do outro os pobres.

É assim, como quem paira sobre elas, que os arquitectos suíços Jacques Herzog e Pierre de Meuron olham para as cidades. E é de cidades - "esculturas psicológicas petrificadas dos seus habitantes" - que Herzog fala antes de falar de edifícios.

O arquitecto - na dupla é geralmente sempre Herzog o que fala - explicou numa conferência esta semana na Aula Magna, em Lisboa, no encerramento da Trienal de Arquitectura 2010, o trabalho da Herzog & de Meuron, responsável pelo Estádio Olímpico de Pequim, a Tate Modern em Londres e de muitos outros projectos emblemáticos por todo o mundo, e distinguida com os prémios Stirling (2003) e Pritzker (2001).

Na manhã seguinte, o Cidades conversou com os dois arquitectos durante o pequeno-almoço num hotel de Lisboa. Pierre de Meuron estava descontraído a ler o jornal, Herzog chegou com um pequeno atraso e, como sempre, falou mais. "Quero ser muito preciso", disse no início da conversa. Depois descontraiu.

Construíram um dos mais famosos edifícios da actualidade, o Estádio Olímpico de Pequim, conhecido como o Ninho de Pássaro. Como foi a experiência de trabalhar na China?

Jacques Herzog - Foi difícil, mas no fim conseguimos fazer o que queríamos, não o que eles queriam. Literalmente, o edifício foi construído de acordo com as nossas ideias e planos e ninguém podia dizer isso à partida porque ninguém tinha tido a experiência de construir um edifício tão grande e tão complexo naquele país. Foi um desafio sério. E houve um longo período durante o qual não sabíamos como as coisas iriam acabar.

Os chineses são negociadores muito duros, toda a gente lhe pode dizer isso, e não apenas na arquitectura. Todos os países ocidentais estão a fazer negócios com a China e sabem como é interessante e duro. Todos temos de fazer esta pergunta a nós próprios: como se faz isto? Valerá a pena?

Para a segunda pergunta que nos pode fazer - como podem trabalhar num país autoritário como a China? - a resposta é a mesma: toda a gente está a fazer negócios com a China porque é um mercado tão interessante e um país tão interessante. Não é o nosso papel, vindos de um pequeno país democrático, convencer toda a gente noutros pontos do mundo a adoptar o mesmo mundo democrático que temos na Suíça.

Li uma declaração sua em que dizia que "os chineses têm uma grande frescura mental". Há uma maior capacidade para aceitar ideias diferentes e propostas ousadas na China do que noutros países?

J.H. - O que dissemos foi que eles têm uma herança de tal maneira rica que coisas que são inesperadas para nós, para o nosso olhar ocidental, são-no menos para os chineses, porque eles já viram tanta coisa. É por isso que parecem abertos, no caso da arquitectura, a coisas muito pouco habituais, estruturas que parecem ser muito caóticas. É algo que os chineses, de uma forma ou outra, já viram no passado.

É uma experiência muito diferente da que viveram, por exemplo, em São Paulo, onde tiveram de explicar e discutir o vosso projecto [Complexo Cultural Luz - Teatro da Dança] em encontros públicos?

J.H. - São Paulo é muito diferente, porque durante um longo período as pessoas não viram arquitectura contemporânea feita por arquitectos estrangeiros. O Brasil está a abrir-se lentamente. São Paulo e o Brasil têm uma tradição muito importante de arquitectura modernista, mas durante um longo período as portas estiveram mais fechadas, menos abertas a pessoas como nós.

Os brasileiros, nomeadamente na comunidade intelectual e nas escolas de arquitectura, não têm ainda o mesmo nível de compreensão e de aceitação de ideias que tinham nas décadas de 1950 e 1960, quando eles próprios produziam arquitectura de vanguarda. O Brasil foi um laboratório para o modernismo, mas não foi um laboratório para arquitectura nos anos 1980 e 1990.

Foi, então, mais fácil conseguir que as vossas ideias fossem aceites na China?

J.H. - Sem dúvida.

Pierre de Meuron - Na China não há debates públicos, como temos na Suíça, ou noutros sítios, com uma audiência, jornalistas, pessoas com diferentes opiniões e expressando-as em público, e nós em frente delas. São condições completamente diferentes. Na China não tivemos esse encontro e essa troca directa com o público.

E como se sentem em relação a essa troca de ideias com o público? É útil para o vosso trabalho?

J.H. - No fundo, a questão é se a democracia é boa ou má para a arquitectura. Acho que é as duas coisas. Nós vimos de um país muito democrático, estamos habituados ao debate e estamos habituados a, por vezes, perder perante o que consideramos serem argumentos menos bons. Faz parte do jogo. Tentamos defender uma ideia e encontrar argumentos para o fazer. Faz parte da nossa cultura. Não é uma coisa boa nem má, nascemos nesse mundo.

Muitas coisas foram construídas neste planeta em sociedades que não são de todo democráticas e algum desse trabalho é muito bom. No entanto, para atingir alguma estabilidade numa sociedade e conseguir uma aceitação pública da arquitectura e do urbanismo, as decisões que são tomadas por meios democráticos são sem dúvida mais estáveis. Mas lutamos sempre pelo que queremos? Não quero ser demasiado hipócrita e dizer "sim, somos democráticos e precisamos disso para fazer boa arquitectura". Não é o caso.

Acho que a questão é mais se a democracia vai sobreviver e como, porque todos os mercados emergentes têm um background que é claramente menos democrático que aquilo a que estamos habituados por exemplo na Europa. Se pensarmos nos países árabes, na China, na Rússia...

Mas acreditam que a arquitectura pode ajudar a desenvolver ideias de democracia.

J.H. -A arquitectura é apenas arquitectura, mas pode oferecer um espaço que não mantenha as pessoas fora, que as integre, ou que tenha outro tipo de potencial. É isso que podemos fazer, mas não mais do que isso.

P. de M. - A arquitectura é como um carro. Podemos usar um carro para salvar pessoas, como acontece com uma ambulância, ou para matar pessoas, se lhe pusermos uma bomba dentro. Na história, estádios foram usados como prisões. Não acredito que a arquitectura por si só possa resolver os problemas ou tornar o mundo melhor. Pode ajudar, mas é uma ajuda e não uma solução.

Discute-se hoje muito a ideia de que os edifícios icónicos e os arquitectos-estrela começam a perder peso e sentido face aos problemas que enfrentamos, a crise, a necessidade de vivermos num mundo mais sustentável, com menos desperdício, e com um diferente tipo de preocupações arquitectónicas. O que pensam disso?

J.H. - Penso que tudo colapsa... e o arquitecto-estrela, como marca que cria um grande entusiasmo à sua volta, uma marca de moda, que atrai a fama e é associado ao luxo, ao desperdício e às formas grandiosas, mas mais cedo ou mais tarde vai sofrer por causa disso, porque vai passar a ser associado aos tempos que já passaram e a algo que já não queremos, que foi ultrapassado por ideias de sustentabilidade, economia, etc.

Mas é claro que há diferentes tipos de arquitectos, e por detrás do nome e da marca estão seres humanos. Nós oferecemos sempre uma grande diversidade de coisas, e não apenas formas exageradas ou luxuosas. Por isso achamos que podemos oferecer um contributo em tempos que são completamente diferentes daqueles que vimos até há três ou quatro anos.

Essa mudança de tempos já está a transformar a forma como fazem arquitectura? Na apresentação que fez do vosso trabalho na conferência na Aula Magna, Eduardo Souto Moura disse que sentia que neste momento estavam a entrar numa espécie de terceira fase [sendo que a primeira foi mais discreta e a segunda mais espectacular] e que estavam a "regressar a casa", com obras mais simples, mais lineares.

P. de M. -Como Jacques disse na conferência, há diferentes formas de olhar para uma coisa, e de a começar. Muitas vezes começamos com diferentes conceitos. Não é no início que dizemos "isto tem de ser simples" ou "isto tem de ser muito complexo". Isso não é um objectivo em si. Há diferentes formas, de acordo com a maneira como cada projecto se desenvolve, de escolhermos ir por este ou por aquele caminho. Não é uma decisão deliberada, de dizermos "agora vamos ser outra vez como éramos antes".

J.H. -É interessante o que o Eduardo disse. Nós não vemos isso a partir de dentro. Não voltamos para trás, porque estamos mais velhos, somos um atelier muito maior do que éramos, mas questões como a simplicidade e o questionamento radical são uma das nossas imagens de marca. Não podemos mudar o nosso carácter. O resultado desse carácter em termos de formas pode mudar ao longo dos tempos, mas o carácter, sendo algo que se baseia no reafirmar daquilo que sempre soubemos, é algo que não se pode manipular. E, como disse na conferência, a arquitectura é uma coisa muito honesta, não podemos enganar os outros.

Temos de responder ao nosso tempo. E hoje ninguém quer formas desnecessárias, decorativas, o luxo pelo luxo. Houve um tempo em que as pessoas viviam num universo muito mais hedonista, queriam apenas ser entretidas. Nunca gostámos muito disso, mas claro que fizemos trabalho que foi muito experimental, testando essa parte da nossa disciplina. É importante testar as fronteiras de uma disciplina para podermos inovar.

A experiência na China, o facto de terem feito o estádio como queriam, a tal sensação de que podiam criar formas mais livremente, modificou a maneira como trabalharam nos projectos seguintes?

J.H. -O estádio é um tipo de forma muito novo, muito arrojado. Toda a gente gostou dele, mas não é uma explosão individualista, louca e opulenta. É uma estrutura mínima e de grande precisão, com um enorme grau de engenharia. Se não fosse assim, os chineses tê-lo-iam construído sozinhos. Porque os chineses são também muito pragmáticos.

P. de M. -O estádio é uma excepção. Não é um projecto que tenhamos desenvolvido com um cliente, o que é uma experiência completamente diferente. Era um concurso e nós colocámos o projecto na mesa. Eles tinham a opção de escolher este ou outro, e escolheram este. O desafio foi mais na implementação do projecto, não na definição da sua arquitectura.

Estiveram também envolvidos no projecto Ordos 100, escolhendo muitos jovens arquitectos de todo o mundo para construir uma casa no deserto da Mongólia. Como é que fizeram essa escolha?

J.H. -Viajámos com [o artista chinês] Ai Weiwei [que também esteve ligado ao projecto do estádio] e ele falou-nos nessa ideia. Concordámos que não iríamos fazer o projecto nem interferir nele, mas Weiwei iria fazer o masterplan e nós ajudaríamos a elaborar uma lista de nomes de jovens arquitectos de todo o mundo. Não conhecemos assim tantos arquitectos, por isso pedimos ajuda a amigos que nos indicaram aqueles que achavam os mais interessantes da próxima geração.

Conhecíamos alguns, mas muitos não conhecíamos. Por isso não se pode exactamente dizer a partir daqueles nomes que este é o tipo de arquitectura de que gostamos. Não há um diagrama geral de características, mas tinha de haver diversidade, com representantes de diferentes países, e representando também diferentes ideias ou mesmo ideias opostas sobre como se deve entrar num sítio daqueles.

Para muitos era a primeira vez que podiam fazer um projecto na China e ficaram esmagados, outros tinham mais experiência e estavam mais descontraídos. Acho que para a maior parte deles foi uma experiência muito interessante e uma oportunidade para criar uma rede com pessoas da mesma geração. Todos se sentiram felizes por participar, embora o projecto só vá ser construído parcialmente.

P. de M. -Lembro-me que foi mais ou menos com a idade deles, em torno dos 40 anos, que começámos a trabalhar fora da Suíça e a criar amizades com arquitectos de outras partes do mundo, como Portugal ou Viena. Foi um momento muito interessante na minha vida.

Os arquitectos portugueses que participaram [SAMI Arquitectos] disseram que o maior desafio foi tentar fazer um projecto para uma área onde não há nada, sem saber o que vai crescer à volta, ou quem serão os clientes. Sendo a vossa arquitectura tão ligada ao lugar, como encarariam o desafio de fazer um projecto nestas condições?

J.H. -Quer dizer a folha em branco? Toda a gente acredita que os arquitectos gostam de liberdade e gostam de não ter obstáculos quando começam a imaginar o mundo. Mas o contrário é verdade. Os arquitectos são arquitectos porque precisam de um orçamento, de limitações, e de tudo isso. O planeta é uma rede de pessoas e condições, e é por isso que é difícil construir alguma coisa no vazio. Somos trazidos de volta à nossa própria individualidade, o que é geralmente muito doloroso.

Na conferência falou da ideia do número, necessariamente limitado, de edifícios que um arquitecto pode construir durante a vida. Como é que isso vos afecta? Correm para fazer o maior número possível de edifícios? Sentem a necessidade de ser mais radicais a cada novo projecto?

J.H. -Somos um grande escritório, e temos muitos projectos ao mesmo tempo, mas nem todos têm o mesmo potencial. Cada projecto tem condições muito concretas, no solo, a nível político, de orçamento. Olhamos para tudo isso para, honestamente, escolher aqueles projectos que acreditamos que nos podem abrir novas portas interessantes.

Mas mesmo assim, alguns são mais normais, outros mais extraordinários. Se olharmos para trás, nem todos os projectos que fizemos eram necessários no nosso caminho para fazer aquilo que queremos. Mas, como arquitectos - e não digo isto por falsa modéstia -, não estamos aqui apenas para nos realizarmos a nível individual, estamos aqui para fazer um projecto que seja um trabalho bom, no momento certo, para o cliente certo.

Ao mesmo tempo é algo que nos mantém acordados e ocupados, é uma razão para nos levantarmos de manhã. Mas isso é outra questão. Mais cedo ou mais tarde, iremos perguntar a nós próprios: quantos dos projectos que entram no nosso escritório queremos controlar directamente?

P. de M. -No final, o que temos de sentir é que, por detrás do projecto, há aquilo a que podemos chamar uma forma positiva de pensar. Se pomos algo no mundo devemos ter um pensamento positivo, não devemos ser cínicos ou negativos. No final acho que se sente isso.

A arquitectura pode ser viciante? A ideia de seguir para o próximo projecto, o próximo edifício, experimentar uma nova ideia?

J.H. -A vida é interessante quando podemos exprimir a nossa criatividade e deixar no mundo algo que exprima essa criatividade. Não é que precisemos de uma espécie de monumentos permanentes para a nossa vida. A arquitectura é dizer sim à vida e à sociedade, porque é algo que acrescenta. Não tira nada, e, pelo contrário, acrescenta alguma coisa. É uma contribuição concreta para o mundo físico, por isso deve ser feita com este espírito. Além disso, é uma expressão da nossa criatividade.

Os empregados nesta sala trazem o chá, falam de uma certa forma, movimentam-se no espaço, colocam o prato no sítio certo. Pode-se dizer que não é uma coisa tão interessante, mas não concordo com isso. Talvez as oportunidades de educação deles tenham sido limitadas, talvez outras coisas não tenham permitido que fossem arquitectos ou jornalistas, mas o que é importante é que cada coisa que se faz seja feita com uma atitude decente de criatividade, mesmo que pareça uma forma menor de criatividade. Não quero soar hipócrita, prefiro ser arquitecto do que empregado de mesa, mas se fosse empregado de mesa daria o meu melhor para trazer o chá de uma forma bonita. Essa é a mensagem importante.

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