A desforra do disco
Um artigo publicado a semana passada no Guardian, a partir da análise da tabela dos 100 singles mais populares de 2010 no Reino Unido, proclamava que o "rock morreu", pelo facto de estar pouco representado na referida lista, em favor de outras tipologias musicais. Artigos do género são recorrentes e geram acaloradas querelas sem que se saiba exactamente o que se está a discutir.
Mas proclamar-se a morte de determinada tipologia musical está longe de ser um exclusivo do rock. O disco (ou disco-sound como ficou conhecido em Portugal nos anos 70) é o caso mais sintomático. Mal acabou de nascer e disse-se logo que tinha os dias contados.
Dizia-se que era música efémera e que não iria durar mais do que um Verão. Mas afinal continua a provocar ondas de entusiasmo por todo o mundo e a influenciar alguns dos atalhos da música popular.
Proclamava-se que era música para adolescentes e minorias (gays, lésbicas e negros), mas não existe celebração de casamento ou festa familiar onde não se oiça I feel love de Donna Summer, Le freak dos Chic ou YMCA dos Village People, perante o delírio incontido de avós, pais e filhos, negros e brancos, "hetero" ou "homos".
Havia quem acreditasse que era o paradigma da música descartável. E realmente, se olharmos apenas para a superfície, é isso que veremos, como acontece com todas as músicas. Mas na última década foi-se descobrindo progressivamente que por cada canção feita por medida a pensar no sucesso (dos Boney M aos Bee Gees) existiam dezenas delas arrojadas, bem mais relevantes, criadas por músicos na altura desconhecidos como Arthur Russell.
Dizia-se que era o típico fenómeno de massas, mas a revisão histórica revela que as movimentações mais relevantes foram originadas por gente anónima, em espaços nocturnos obscuros.
As mentes mais progressistas da época juravam que era música inofensiva, alienante até pelo facto de ser física, feita e consumida a pensar na pista de dança. O rock, sim, era sério e rebelde, mas é difícil imaginar outro estilo que tivesse abalado tantos preconceitos como o disco.
Durante anos gostar de disco era sacrilégio. Revivia-se o género, mas com sentimento de culpa. Nos anos 60 a cultura do "não" prevalecia. E o disco proclamava euforicamente "sim". Não se adoptava uma postura agressiva em relação ao resto do mundo, tentava-se ignorá-lo e construir uma utopia própria, mas as transformações operadas a partir dessa atitude foram profundas.
O disco era a demonstração de que todos os tipos de comportamentos eram possíveis, mesmo não sendo tolerados pelo pensamento dominante. Enquanto fenómeno social constituiu um dos momentos mais complexos da cultura popular, por isso também um dos mais incompreendidos. Em 1980, em Chicago, milhares de adeptos do rock realizaram uma manifestação que haveria de ficar célebre por queimarem milhares de singles. Na altura a palavra de ordem era "disco sucks!" Gritava-se que era a música que o bom gosto havia esquecido. Três décadas depois o disco sorri.
Jornalista