Contra a retórica da certeza

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"Muros de Abrigo" é o título da exposição de Ana Vieira no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Um título, disse a artista ao Ípsilon na visita guiada que noz fez, relevador das inquietações e matérias do seu trabalho e que surgiu de uma história de infância cuja importância sublinha. E a história é assim:

"Em São Miguel, quando chegava a casa vinda da escola, a primeira coisa que me apetecia fazer era ir passear para uma zona de plantação de vinha, de que gostava muito. Ia buscar um molho de chaves e dirigia-me à parte da propriedade mais próxima do mar. Nessa zona existiam grandes muros de pedra, muros de abrigo, que protegiam a vinha da maresia [...]. Absorvi esse espaço, a ambiguidade de ser simultaneamente aberto e fechado, e ainda o facto de haver passagens, de implicar tempo, cadências e percursos. A última porta dava para o mar." (texto publicado catalogo da exposição)

"Não interessa saber se é verdade ou não, se era tudo exactamente como conto", diz Ana Vieira. E esta indecisão quanto ao conteúdo factual e verificável da narrativa é uma indicação precisa do seu universo criativo. Todos os seus trabalhos, como esta história, para além da relação específica que possuem com a história da arte e com a linguagem artística que utiliza (pintura, escultura, fotografia, som), são sempre ficções e "encenações" (que é, diz, o modo como gosta de chamar os seus trabalhos).

Encenações as quais reivindicam, paralelamente ao seu estatuto estético, a dimensão lúdica do jogo que diz ser importante recuperar para a vida quotidiana: "As minhas peças são uma espécie de propostas de jogos como no teatro. E nós no quotidiano precisamos dessa dimensão. O meu trabalho tem muito que ver com a encenação no sentido teatral."

Este sublinhar da metáfora teatral mostra não estar em causa um jogo qualquer, mas um com uma linguagem rigorosa e onde se assiste à disposição de diferentes coisas (paisagens, objectos, palavras, pessoas) com vista à criação de um universo ajustado e com sentido: os ambientes e as casas encenados por Ana Vieira constituem-se sempre como mediações para o mundo, a vida e a existência. São passagens. Todo o trabalho de Ana Vieira está sempre a regressar às operações que a criança realizava na quinta paterna: absorve o espaço, explora a ambiguidade de tudo quanto há, cria zonas de passagem e pontos de fuga e evasão que exigem movimentos contínuos daqueles que atravessam os seus corredores, percorrem as suas casas ou permanecem nos ambientes que encena.

A permanência destes temas torna-se clara na exposição porque se podem ver obras de tempos tão diferentes como 1967 e 2008 e estes 40 anos de trabalho dão a ver as passagens, os diálogos estabelecidos com a sua época e com outros artistas e, sobretudo, a trama invisível que mantém unidos os muros da infância e as casas fantasmáticas e assombradas da artista crescida (veja-se "Casa Desabitada", 2004)

Sentir com o corpo

Ana Vieira nasceu em Coimbra em 1940, cresceu da ilha de São Miguel nos Açores e estudou pintura na Escola de Belas Artes de Lisboa. Mas o título de pintora não lhe convém, não por desgostar de imagens, mas porque sempre sentiu que não só as suas pinturas "desgostavam a um morto", diz ironicamente, mas também porque com a pintura não conseguia atingir o modo de compreensão que queria. A pintura que aprendia na academia era cheia de constrangimentos e "empecilhos", para além de lhe tentar impor uma lógica de paleta e cavalete que não lhe serviam. Já na altura da sua formação procurava modos de criar espaços porque "a contemplação não me chega, tenho de sentir com o corpo. É como quando olho para o mar: não consigo ficar quieta tenho de ir mergulhar."

Esta relação problemática com a pintura foi desde cedo tematizada. Já em 1968 dizia: "sob o ponto de vista académico, que impõe ao artista a paleta e o cavalete, pode chocar o princípio de que cada artista se pode exprimir com quaisquer materiais ou melhor recorrendo aos meios que mais lhe convêm." ("Correio dos Açores", 1.09.1968)

Enfatizar a expressão contra uma linguagem artística instituída deu origem a uma lógica não de destruição da herança artística que recebeu, mas à construção de obras em que as lógicas artísticas dominantes eram abandonadas. Para Paulo Pires do Vale, comissário da exposição, os trabalhos de Ana Vieira dos anos 60-70 são uma "revolta contra o plinto e contra a moldura. Contra a obra sacralizada, fechada e afastada da existência" a artista reivindica "uma arte viva, participada, partilhada não só na recepção, mas já na sua produção."

Um gesto de revolta que a faz afastar-se dos clichés visuais e intelectuais do discurso habitual da arte, mas simultaneamente reafirma a validade e permanência dos valores artísticos. Quando isso acontece Ana Vieira apropria-se de obras "clássicas" e muito conhecidas, e por ela muito admiradas, e "refaz" esses acontecimentos artísticos. Em "Ambiente" (1972) é a famosa Vénus de Milo que ocupa o centro de uma sala com paredes de cortinas esvoaçantes e transparentes. A escultura elevada por um plinto está rodeada de cadeiras vazias (onde já ninguém se senta? ou onde ninguém nunca se sentou?) que, na sua cor negra dominante, sugerem um ambiente fúnebre. Esta morte encenada não é um lamento, mas um retomar da potência da arte: por mais que se anuncie a morte da arte, ela permanece potente, significativa, resistente e são sempre os homens com as suas ideias que morrem, são as cadeiras que estão vazias, a escultura continua lá a exercer o seu poder.

Com "Le Déjeuner sur L'Herbe 77" (1977) é o pintor Manet que Ana Vieira retoma. Não por descontentamento, mas por admiração. Pega na pintura e torna-a mais "real" ao transformar a bidimensionalidade em tridimensionalidade: uma toalha estendida no chão, com copos, corpos, natureza. Corpos que podem ser atravessados e assumidos pelo corpo do visitante.

Voyeur

Neste gesto da artista não existe nenhum tipo de reclamação teórica ou o estabelecimento de um programa e trabalho. É um modo sensível e intuitivo de tornar suas as imagens (que diz estarem sempre no começo das suas obras) que deseja, admira e quer possuir. Por isso, este voltar a fazer, longe de ser uma cega repetição ou a crítica aos clichés e sistemas da simbólicos e institucionais da arte, é uma forma de tornar íntimo e próprio.

Os fascínios de Ana Vieira não são só constituídos pelos momentos consagrados da história da arte, mas faz parte da generosidade do seu olhar a atenção ao que a rodeia e o permanente movimento de procurar o que mais lhe convém. Foi assim com as sombras de Lourdes Castro, os espelhos de Michelangelo Pistoletto, as performances de Joan Jonas que em Paris viu com Helena Almdeia, e é assim com Jorge Silva Melo que produziu a sua inesquecível exposição "Casa Desabitada" e que está a terminar um filme sobre a artista chamado "E o que não é dito".

Aos 70 anos Ana Vieira continua a afirmar que não ter sido descoberta foi a sua "grande sorte", pois só assim pôde fazer um trabalho totalmente livre e, sobretudo, um "trabalho contra as retóricas da certeza."

Esta luta longe de ser uma metáfora descreve uma inquietação a qual tem na "Janela Indiscreta" (1954) de Hitchcock a boa apresentação. O filme, diz a artista, é a melhor descrição do seu trabalho porque mostra alguém sempre inquieto por ver através das coisas e nesse movimento de visão as fronteiras entre o dentro/fora, próximo/distante, ausente/presente ficam abaladas e são transpostas.

Acrescente-se que o voyeur é um lugar permanente no trabalho de Ana Vieira: está-se sempre a espreitar através de janelas, pelo buraco das janelas, pelas frinchas das portas. E sempre a assistir a acontecimentos privados, domésticos, quotidianos, cuja potência artística parece nula, mas que a Ana Vieira surgem como mote permanentemente desenvolvido.

Se o espreitar do voyeur é a modalidade da experiência da sua obra, a casa é o seu lugar de segurança. Porto inabalável contra todas as tentativas de desvanecimento do corpo, das imagens e sensações.

E com a casa surgem silhuetas, sombras, sugestões, jogos de espelhos que remetem o espectador para um universo de reflexos e de imagens. Não se trata da exploração do ambiente doméstico, mas das fantasmagorias da normalidade. Ana Vieira materializa os fantasmas (que são produtos da "phantasia" que é o nome antigo da imaginação) da normalidade, as imagens espectrais que continuamente são sugeridas pela casa que se habita, se espreita ou se visita. E com os seus trabalhos a experiência da arquitectura transforma-se em inquietação e permanente novidade: nunca se sabe o que está atrás de uma porta, de uma cortina ou o que acontece depois de atravessar um corredor ou transpor um muro.

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