Reviver o passado em Lisboa

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pedro cunha

Não são só as pedras. Há, um pouco por toda a Lisboa, muitos sinais do milenar passado da cidade, vestígios de povos e histórias de outros tempos. Descobri-los é apenas o pretexto para um longo passeio por ruas, vielas e praças que resistem ao passar dos anos. Luís Francisco (texto) e Daniel Rocha (fotos) meteram os pés ao caminho

A placa é extensa. "Chafariz d"el Rey. Edificado no séc. XIII. Foi reformado pelo Rei D. Dinis. Reconstruído no ano de 1747. Reparado depois de 1755. E melhorado nos meados do século XIX." Estamos entre o rio Tejo e a colina do Castelo, em Lisboa, e só este arrazoado já nos dá uma boa noção das vicissitudes e antiguidade de uma cidade que chegou a ser capital de um império. Mas há mais, muito mais. E é disso que vamos conversando enquanto nos juntamos ao grupo da Natuga, a empresa que organiza passeios onde a história se desvenda.

Joaquim é biólogo, tal como Maria João, que o acompanha no papel de guia do grupo. Mas a história é uma paixão antiga e, juntando o útil ao agradável, todo o conhecimento que foi acumulando permite-lhe agora guiar grupos numa viagem por espaços de Lisboa que parecem ter cristalizado o tempo. A introdução, feita com o Tejo ao fundo e um céu de nuvens a ameaçar chuva, dá o tom para o resto do dia: "Vamos contar a história de Lisboa de forma algo diferente."

Estamos no miradouro de Santa Luzia, que oferece uma ampla visão sobre o casario e o imenso plano de água do estuário do Tejo. Este abrigo natural das águas do Atlântico, o maior da Europa Ocidental, cedo foi aproveitado pelos povos que velejavam ao longo das costas do Velho Continente. E, por isso, não espanta que os primeiros colonizadores "registados" do que depois viria a ser Lisboa tenham sido os fenícios, grandes navegadores.

Bom, antes deles havia gente por aqui, na colina do Castelo. Atraídos pela abundância de água (muitas nascentes antigas estão hoje emparedadas ou desaparecidas, restando apenas um ou outro chafariz, eventualmente desactivado), pela proximidade dos férteis terrenos agrícolas do Ribatejo e, lá está, pela facilidade de acesso aos recursos marinhos fornecidos pelo estuário, cedo houve gente que por aqui se instalou. O povoamento de Lisboa vem, pelo menos, de 1000 a.C., mas desde a pré-história que o local estava ocupado.

Não há vestígios dessas épocas. Nem podia haver. A sucessão de civilizações que aqui assentaram praça cobriu os sinais do passado. Mesmo o império romano tem dificuldades em dar sinal de si: restam apenas duas ruínas visitáveis: as catacumbas da Baixa (que só estão abertas ao público três dias por ano) e o anfiteatro na colina do Castelo, enquadradas por um museu que quase não vê gente, apesar de as entradas serem gratuitas.

Romanos, visigodos, árabes...

Para os romanos, pouco dados à aventura do mar, Lisboa não era uma cidade importante. O império era terrestre e a capital da Lusitânia (a província mais ocidental da Ibéria) era Mérida, agora em território espanhol. Mesmo assim, os romanos construíram um aqueduto, que passava mais ou menos onde está o actual (que data do século XVIII) e também começava em Belas, na ribeira de Carenque. Nada restou dele e da presença romana talvez só tenha subsistido a contabilidade das sete colinas da cidade (são, na verdade, mais) que remetia para Roma. Aliás, em Lisboa, nem o nome consegue ser unânime: diz-se que Olisipo será um termo grego, que remete para Ulisses, o seu fundador... Não há certezas.

No Museu do Teatro Romano, onde as pedras das construções romanas convivem com outras de épocas mais antigas e mais recentes, pode ver-se a olho nu a estratificação das civilizações que, século após século, foram colonizando esta colina e utilizando os materiais ali deixados pelos seus antecessores. Pode ver-se isso e muito mais: esculturas, achados arqueológicos, manuscritos. Lá fora, os ângulos menos conhecidos da Sé e o Tejo, sempre ele, a encher os espaços por entre as fachadas.

Depois de cinco séculos de ocupação romana, os visigodos instalaram-se por aqui. Onde está a Sé havia uma igreja visigótica. Os árabes, que vieram a seguir, construíram a mesquita por cima da igreja e, depois da reconquista, a mesquita deu lugar à Sé, que começou a ser erigida no tempo de D. Afonso Henriques (século XII) e demorou cinco séculos a ser concluída. Está tudo aqui, bem como o castelo. Lisboa tem esta coisa especial: um castelo medieval bem dentro da sua malha urbana.

À volta das muralhas (existem outras, mais antigas, as da chamada cerca moura, de que restam apenas vestígios) as ruas e vielas transportam-nos para o mundo árabe. Estreitas, labirínticas, inclinadas, permitiam manter a frescura nos dias de calor e confundiam eventuais invasores. De vez em quando, como se estivéssemos no campo, há laranjeiras nos passeios. São, também elas, testemunhas do vaivém de povos e culturas: as laranjeiras são originárias do Oriente. E, já agora, as oliveiras também foram trazidas dos confins do Mediterrâneo.

Há sinos que repicam nesta manhã de domingo enquanto avançamos pelo dédalo de ruelas e escadarias que nos leva até perto do Tejo. Às vezes parece que vamos entrar em casa de alguém, mas aparece sempre uma saída. Joaquim, que mora por aqui, garante que um dos fascínios deste bairro é que até os seus moradores podem fazer um caminho diferente todos os dias. Há praças que parecem saídas de um cenário serrano, granitos no chão e fachadas austeras; noutros locais, cores garridas e linhas insinuantes remetem para os cenários das Mil e Uma Noites. µ

Os Descobrimentos e a Revolução

Depois da reconquista e das sucessivas cenas de pancadaria com Castela - que produziram, literalmente, uma fronteira desenhada a murro -, os portugueses conseguiram assegurar a sua soberania e voltaram-se para o mar. E disso teremos conta noutra zona da cidade. Há que apanhar o eléctrico para Belém.

O Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos. A era mais gloriosa da nação está aqui representada e há sempre histórias laterais para temperar as "lições" de mestre Joaquim. Como ficarmos a saber que foram os monges da Ordem dos Jerónimos que inventaram os pastéis de Belém... Ou que a Torre de Belém, o grande símbolo de Lisboa, foi também utilizada como prisão para detidos políticos nos tempos da dinastia dos Filipes, quando Portugal perdeu (temporariamente) a sua independência.

No Padrão dos Descobrimentos (erigido já no século XX, a tempo da Exposição do Mundo Português, em 1940, e posteriormente recriado em betão, em 1960) pode ser um exercício engraçado identificar as 33 personagens retratadas, mas a lição mais importante vem do mapa-múndi traçado a mosaicos no chão. Vêem-se a datas de chegada dos portugueses às sete partidas do mundo. Foram eles os primeiros no Japão, onde fundaram a cidade de Nagasáqui e deixaram palavras e hábitos - sabia que a célebre tempura é uma adaptação dos tradicionais "peixinhos da horta" da região lisboeta?

Nova viagem de eléctrico e agora, de regresso à Praça do Comércio, falamos do terramoto de 1755, esse acontecimento apocalíptico que mudou a face da cidade e apagou muitos dos vestígios do passado. Mas também das invasões napoleónicas, da fuga da família real para o Brasil. Ali ao lado, uma chamada de atenção: na Casa dos Bicos, o segundo andar parece muito mais bem preservado. O que é natural, dado que foi reconstruído a seguir ao terramoto, ao contrário do de baixo, os bicos mais desgastados a mostrarem a passagem do tempo e das águas do maremoto.

Rua Augusta, Restauradores, subida no elevador da Glória até ao miradouro de São Pedro de Alcântara, no Bairro Alto, de onde se pode estender o olhar pelas Avenidas Novas, pólo de expansão da cidade no século XIX. Do miradouro de Santa Catarina podem ver-se sinais da época salazarista, a ponte sobre o Tejo e a estátua do Cristo-Rei, na outra banda. Mais uns passos e, junto ao quartel do Carmo (e ao convento quase destroçado pelo terramoto de 1755), recordam-se episódios da revolução de 25 de Abril de 1974, que teve momentos particularmente dramáticos mais abaixo, na Rua do Arsenal, onde o capitão Salgueiro Maia desafiou os tanques do regime.

O dia está a terminar. Houvesse mais horas de sol - e elas estão aí a chegar, que o Inverno não dura sempre - e ainda haveria tempo para visitar a zona oriental de Lisboa, onde o Parque das Nações testemunha uma nova era da cidade. Fica só a meia dúzia de quilómetros, mas a três mil anos da colina do Castelo. É assim Lisboa: pequena, mas com muito para contar.

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