Um ano depois do terramoto, Port-au-Prince é uma cidade em ruínas
Um menino teve um sonho. É esta a grande história em Port-au-Prince, um ano depois do terramoto. A grande notícia. Um menino teve um sonho terrível. Apareceu-lhe um anjo, contou ele à mãe. Um anjo com um discurso muito complicado, cheio de termos técnicos sobre placas tectónicas e falhas, que o menino reproduziu depois, de memória, embora não tivesse percebido - prova de que não inventou. No próximo dia 12 de Janeiro (hoje), precisamente um ano depois do grande terramoto, disse o anjo no sonho, haverá no Haiti um sismo ainda maior. Mas tu não tens que temer, acrescentou, porque te virei buscar
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A história iniciou o seu caminho lento pela cidade. Depois veloz, quando o menino morreu, de cólera, a semana passada. “As pessoas têm medo”, conta ao PÚBLICO, de Port-au-Prince, Rebecca Sevère, numa entrevista telefónica. “Não querem voltar para as suas casas, mesmo quando elas estão intactas, porque temem um novo terramoto. A minha mãe, por exemplo, vai a casa todos os dias, mas dorme num campo de desalojados”.
Rebecca tem 30 anos, era estudante de línguas e professora. Agora as escolas estão encerradas. “Reabriram, mas fecharam por causa das réplicas, depois por causa das eleições, depois as manifestações, depois a cólera, agora as celebrações do aniversário”. À volta do estádio, transformado em campo de desalojados, as igrejas evangélicas preparam uma grande festa, para o dia de hoje. “Andam a dizer que é o fim do mundo, vai chegar o Messias, e quem não mostrar arrependimento e não se converter vai para o Inferno”.
A paisagem não mudou muito. Port-au Prince é uma cidade em ruínas. Tal como ficou, há um ano, após o terramoto de intensidade 7 na escala de Richter, que matou 230 mil pessoas, assim está hoje. Uma ou outra excepção. “Aquele prédio em frente ao hotel Cocconut Villa, começaram hoje a trabalhar na reconstrução”, conta Rebecca. E o Mercado de Ferro. O magnífico edifício do século XIX onde se vendia tudo, no centro da cidade, está pronto a ser inaugurado. É o único, dos 180 mil que ficaram destruídos, num prejuízo global calculado em 8 mil milhões de dólares. No resto da cidade, continua tudo no chão. Apenas 5 por cento do entulho foi removido. Há obras por todo o lado, mas as coisas não mudam. Parece impossível que mudem, porque não se percebe por onde começar.
A vida continua
“Na cidade não se reconstrói nada. Só nos arredores”, diz, também por telefone, Joseph Edouin, de 35 anos, mecânico. “Aqui não há nada a fazer. É preciso limpar tudo e depois construir uma cidade nova. Mas entretanto para onde iriam as pessoas?”
A cidade não parou. “Toda a gente continua a sua vida”, diz Rebecca. “Há muita gente que trabalha para as ONG. Outros montaram negócios, ou criaram novos. Conheço um homem que tinha um supermercado. Ficou destruído, mas ele agora reabriu a loja, numa tenda. As pessoas improvisam, mas não param. Ainda que prefiram adaptar-se à situação a transformá-la”.
As mais de 4000 agências humanitárias que estão no Haiti dão emprego a milhares de haitianos. “Muita gente que nunca teve emprego tem-no agora”, diz Rebecca. “Nesse aspecto, nunca estivemos tão bem”. Mas são, na maioria, empregos não- produtivos. Gasta-se o dinheiro dos donativos internacionais, sem que se reconstrua o país. Dos 500 mil milhões de dólares prometidos pelos vários países, organizações e personalidades privadas, apenas cerca de 12 mil milhões foram confirmados e 6 mil milhões se concretizaram até agora em donativos, dos quais só um quarto está a ser utilizado, segundo dados disponibilizados este mês pela Cruz Vermelha, a World Vision, Oxfam, Care e outras organizações internacionais. A incapacidade de aplicar os fundos disponíveis deve-se ao caos político do país e à não menor anarquia da estrutura internacional montada para ajudar.
A Comissão Interina para a Recuperação do Haiti, co-presidida pelo americano Bill Clinton e o primeiro-ministro haitiano, Jean-Max Bellerive, não consegue coordenar funcionalmente os doadores de fundos com as ONG que operam no terreno. Também não consegue coordenar as ONG umas com as outras, e muito menos com o Governo do Haiti, que na prática não existe.
A destruição da estrutura administrativa do país impediu que as eleições presidenciais de Novembro se tivessem realizado com credibilidade e sem contestação. Em consequência, ainda não foram anunciados os resultados definitivos da primeira volta, a segunda, prevista para o próximo fim-de-semana, foi adiada para Fevereiro e o país continua sem administração.
Cólera e violência
A estrutura internacional toma decisões sem consultar os haitianos, sem os incluir nos grupos coordenadores. Decisões erradas quase sempre, porque não conhecem o país. Mas as pessoas não se voltam contra quem lhes dá emprego. Voltam-se contra os 12 mil soldados internacionais da MINUSTAH (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti), que custam 600 milhões de dólares por ano e reprimem os protestos nas ruas (lançaram gás lacrimogéneo nos campos de desalojados e mataram cinco haitianos no bairro pobre de Cité Soleil) e são acusados de muitos abusos, incluindo negócios ilícitos e incentivo à prostituição de menores. E a responsabilidade pelo surto de cólera, que já matou mais de 3300 pessoas.
De facto, vários especialistas acreditam que a doença, que é endémica em certas regiões do Sul da Ásia, terá sido trazida por um grupo de capacetes azuis do Nepal. Mas se pode constituir uma verdadeira catástrofe no Haiti é devido à falta de condições de higiene nos campos de desalojados, onde vive mais de um milhão de pessoas, sem electricidade, água canalizada ou esgotos.
Nesses campos, segundo um relatório recente da Amnistia Internacional, não é apenas o contágio da cólera que torna a vida perigosa. As violações de mulheres e adolescentes ocorrem em número crescente (250 casos denunciados oficialmente nos primeiros seis meses do ano passado). Homens armados, pertencentes a gangs ou a grupos de segurança privada, surgem durante a noite nos acampamentos pouco iluminados para atacar jovens e crianças, por vezes com menos de cinco anos de idade.
Nos orfanatos, que albergaram muitas das cinco mil crianças que, após o terramoto, perderam o contacto com os pais, são também frequentes os abusos físicos e sexuais. Tal como o são entre as cerca de três mil crianças que vagueiam pelas ruas, e aquelas que ficaram entregues a famílias adoptivas. É tradição, no Haiti, que os pobres ofereçam os filhos a pessoas mais ricas, que tratem deles. Na realidade, estes restaveks, como lhes chamam, são muitas vezes submetidos a maus tratos, obrigados a trabalhar como escravos e raramente vão à escola. Calcula-se que havia muitos milhares de restaveks antes do terramoto, e que o número se terá multiplicado depois. Sabe-se que muitas das crianças abandonadas após o sismo foram (pelo menos duas mil) vendidas para o estrangeiro, em alguns casos por elementos das ONG da ajuda humanitária.
No entanto, segundo dados da ONU, o número de nascimentos triplicou no Haiti após o terramoto. Uma maternidade operada por ONG estrangeiras no bairro de Cité Soleil ganhou a alcunha de “Baby Factory”, pelas centenas de bebés que lá nascem por dia. Em muitos casos, as mães fogem após o parto, deixando os filhos entregues aos cuidados do pessoal internacional.
"A vida decorre normalmente. As pessoas no Haiti são muito activas, não se entregam ao desespero. Tentam prosperar”, diz ao telefone Franz Bassien, de 25 anos. Ele próprio trabalhou na construção do único edifício que está pronto a ser inaugurado, o Mercado de Ferro. “Esta obra é a prova de que é possível. Desde que haja gente com vontade e capacidade de organização”.
A reconstrução do mercado foi iniciativa de um empresário irlandês, Denis O"Brien, o homem que divulgou os telemóveis no Haiti. Logo após o sismo, anunciou que daria 5 milhões de dólares para a reconstrução. O presidente da Câmara de Port-au-Prince nomeou-o embaixador da boa vontade da cidade para o mundo. O"Brien conseguiu recolher mais 800 milhões, através de um mecanismo que inventou de donativos através de transferências por SMS nos telemóveis.
Telebanco
O sistema começou entretanto a ser usado pelos cidadãos haitianos como forma de transferir dinheiro e fazer pagamentos. Mais de 40 por cento dos haitianos têm telemóvel (só 5 por cento em 2006, quando O"Brien veio para o Haiti criar a Digicel). O telefone celular tornou-se assim uma espécie de substituto da conta bancária (que menos de 10 por cento da população possui). Quando alguém compra um produto ou um serviço, transfere por SMS o dinheiro para o saldo do telemóvel do vendedor. É um sistema revolucionário, que permite trazer o dinheiro sempre no bolso, sem o perigo de ser assaltado (o eventual ladrão não pode aceder ao saldo sem conhecer o código do cartão).
"As pessoas vão reagir”, diz Rebecca, que parece estar à espera de algum acontecimento simbólico que acorde os haitianos do medo.
"As famílias estão a fazer listas dos seus mortos. O objectivo é reunir toda essa informação e construir um grande memorial. Isso vai ser muito importante, para voltarmos a ter uma vida normal”, diz ela. Ou: “Quando forem anunciados os resultados da eleições, então poderemos seguir em frente”. Ou ainda: “Quando passar um ano e não acontecer outro terramoto, as pessoas vão perceber que o sonho daquele menino é uma lenda, e que não são os pastores protestantes que vão salvar o país”.
Rebecca admite que foi um ano com demasiadas catástrofes, para que as pessoas pudessem ter mantido a racionalidade. “Tivemos o terramoto, depois a cólera, depois as eleições. As pessoas têm medo e preferem desligar-se da realidade”. E essa atitude paralisa-as para a acção. Como se vivessem em estado de choque, sem coragem para abrir os olhos. “A terra rejeitou o sangue. As plantas recusam-se a crescer. O palácio, a catedral, as universidades sob os quais os nossos irmãos pereceram ainda fazem sentir o seu o peso. As pedras ainda não saíram de cima de nós”.