Vidas secas

De "Tanta Gente, Mariana" (1959) a "Seta Despedida" (1995), Maria Judite de Carvalho deixou, em oito esplêndidos livros de contos, uma crónica triste da burguesia feminina lisboeta. O seu universo aparece já completamente formado no livro de estreia, publicado aos 38 anos, que contém um conto longo e sete curtos [esta reedição diz na capa que se trata de um "romance", informação objectivamente falsa, e que tem apenas intuitos comerciais].

São histórias de pessoas sem futuro, amargas, sozinhas, precocemente envelhecidas, que vivem entre um quotidiano de empregos aborrecidos, famílias convencionais e estioladas, e umas vagas memórias de episódios felizes que acabaram em nada. O conto que dá nome à colectânea deve o seu nome ao facto de a protagonista, Mariana, ter confessado ao pai que se sentia só. Ela era apenas uma adolescente, mas o pai não minimiza essa sensação, pelo contrário, diz-lhe que estamos todos sozinhos, no meio de tanta gente. Mariana passa depois por um casamento infiel, por uma gravidez inesperada, pelo vexame social, até cair vítima de uma doença mortal, ainda antes dos 40. A doença, mesmo que física, não deixa de ser psicossomática, pois ela confessa que se sente como um tronco a quem secaram as folhas e depois os ramos. Morre porque desistiu da vida, ou porque a vida desistiu dela.

O ambiente glauco e os acontecimentos patéticos são um risco assumido, tanto mais que o estilo, contido, se anula. Mas percebe-se que este é um mundo vivido, e isso traz veracidade e pungência aos textos. Um mundo em que é importante que os homens sejam "respeitáveis" e as mulheres "honestas", em que é imperioso evitar o "escândalo" e é necessário que cada um carregue a sua "cruz". A condição feminina do Portugal de 1959 está por todo o lado nestes contos, e as protagonistas vivem amarradas a expectativas estreitamente domésticas: "Detesto as boas donas de casa. Se são pobres, esfalfam-se a trabalhar, se são remediadas ou ricas arranjam uma ou mais pessoas para se esfalfarem em seu lugar. De qualquer dos modos são escravas do trabalho ou então da vigilância com outras escravas às suas ordens. A vida a correr lá fora, os maridos e os filhos a correrem com a vida, metidos nela, e as donas de casa a esfregar, a limpar, a dar brilho aos metais. Ou a ver as outras a fazê-lo. Olhe que o pó não está bem limpo. Olhe que a torneira não está bem areada" (p. 57). Mesmo que obviamente revoltada, Judite de Carvalho aproxima-se de um intimismo da abdicação que vem de Irene Lisboa, embora antecipe também o feminismo de 1960. Diga-se no entanto que as personagens masculinas não levam vidas muito mais ricas. Um homem empregado e entediado sonha com atlas, Verne e Salgari, e em segredo observa os aviões nos aeroportos e os barcos no cais, cheios de gente que parte para longe. Outro homem entediado e empregado, no estupendo "O Passeio no Domingo", imagina uma banal ida ao campo com um amigo e umas meninas como se fosse uma apoteose festiva. Mas nem um nem outro chegam a ir a lado nenhum, ou porque são impedidos, ou porque não têm coragem, ou porque é demasiado tarde. É sempre demasiado tarde para as ambições destas pessoas: "Não tinha nascido para aquilo, era possível. Mas quem é que nasce para o que é? - reflectia a querer consolar-se. Era um homem plácido, habituado a suportar as contrariedades da vida. Um homem para quem os prazeres não eram muito fortes nem os desgostos muito intoleráveis. Um homem metódico, com sonhos impossíveis mas nenhumas ambições" (p. 74).

Ninguém aqui tem direito a uma vida verdadeira. O trabalho e a família estão sempre primeiro. Mas essa "vida normal" é uma vida vazia, especialmente para as mulheres. Algumas, aliás, nem a "normalidade" conseguem, porque esperaram demasiado por um homem indiferente, porque foram abusadas, porque não foram mães a tempo. Muitas vezes, esses traumas resolvem-se de forma trágica ou violenta, mas em todos os casos é sempre uma grande desolação. Uma mulher tem um amante, mas ele só se quer vingar do marido dela. Uma mulher sem filhos rapta um bebé. Uma mulher que foi recusada por ser puritana é de novo recusada por ser promíscua. Todas estas histórias têm elementos de 1959 e outros que não se esgotam nessa época, caso contrário os contos teriam perdido interesse. A opressão das mulheres (tal como todo o condicionamento social) é uma forma marcial de frustração; mas a frustração é em Maria Judite uma condição existencial, inerente a qualquer sociedade. A condição feminina é também a condição humana.

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