Africa.cont ainda não saiu do papel e já custou 570 mil euros

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Antevisão do futuro centro de arte contemporânea Africa.cont, entre a Rua das Janelas Verdes e a Av. 24 Foto: DR

"Ao contrário do que se pensa, não são precisos ovos para fazer omoletas", disse o presidente da câmara ao PÚBLICO em Maio de 2009, referindo-se ao Africa.cont. Afinal, os ovos eram mesmo necessários e o orçamento camarário mostra-se agora magro até para as exposições, concertos e colóquios que têm sido programados pelo coordenador do projecto - o professor Fernandes Dias, da Faculdade de Belas-Artes.

Por outro lado, os esperados mecenas e parceiros, incluindo o Ministério dos Negócios Estrangeiros, não apareceram, ou ficaram-se por apoios marginais, como é o caso da Fundação Gulbenkian.

Concebido por Fernandes Dias, em Novembro de 2007, na sequência de um convite de António Costa, como "um centro multidisciplinar e interdisciplinar para o conhecimento de África e das suas diásporas nos seus desenvolvimentos contemporâneos", o projecto foi inicialmente proposto para o Pavilhão de Portugal. Esta localização acabou por ser preterida, ficando apenas para o Pavilhão de Portugal o papel de acolher o jantar em que o Governo, representado por José Sócrates e três ministros, e a Câmara de Lisboa apresentaram o Africa.cont, em Dezembro de 2008.

O evento - que custou 17 mil euros ao gabinete do primeiro-ministro - foi marcado pela definição do Africa.cont como uma "prioridade nacional", palavras de Sócrates, e pelo anúncio oficial de que a sua sede seria instalada no Palácio Pombal (onde funciona o Instituto de Conservação e Restauro José de Figueiredo) e num conjunto de edifícios a erguer ou recuperar nos terrenos municipais contíguos, entre a Rua das Janelas Verdes e a Av. 24 de Julho. O complexo seria projectado pelo arquitecto anglo-tanzaniano David Adjaye e incluiria o aproveitamento dos edifícios degradados das Tercenas do Marquês, que serviam de armazéns ao Palácio Pombal.

Um projecto informal

O estudo prévio feito por Adjaye ficou pronto em Março de 2009, foi pago pela Gulbenkian (65 mil euros) e obrigou a câmara a gastar 14 mil euros com o levantamento topográfico. A obra tinha um custo estimado de 15 milhões de euros, sem o apetrechamento dos edifícios, nem os vastos espaços exteriores, e deveria abrir em 2012.

De acordo com o gabinete do vereador Manuel Salgado, o financiamento caberia a "entidades privadas e estatais, sendo intenção da câmara entrar apenas com o valor patrimonial do conjunto edificado". Para o funcionamento do projecto, que seria gerido pela Fundação Africa.cont, a criar em 2008, previa-se uma despesa anual de quatro milhões de euros. Com o objectivo de assegurar a consolidação da imagem do futuro centro cultural, enquanto não fosse inaugurado, seriam realizadas diversas iniciativas culturais propostas por Fernandes Dias, informalmente designado por António Costa como coordenador do projecto. Para concretizar a programação, a financiar pelo município, foi criada uma equipa, também informal, composta por dois técnicos superiores da autarquia, dirigidos por Fernandes Dias. Este não tem qualquer vínculo formal com a câmara e, segundo o próprio, não aufere qualquer remuneração.

Desde o jantar do Pavilhão de Portugal até agora foi feito o estudo prévio dos edifícios, mas nada mais avançou. "Devido aos actuais constrangimentos financeiros não foi possível dar andamento ao desenvolvimento do projecto de reabilitação das Tercenas do Marquês (...), nem estamos por ora em condições de dizer quando poderemos avançar", disse ao PÚBLICO, por escrito, o gabinete de Manuel Salgado.

A nota refere que "a actual conjuntura não é propícia ao encontro de parceiros nacionais e estrangeiros" e diz que a câmara "está convicta" de que "será possível a prazo reunir um conjunto de investidores que, conjuntamente com a autarquia, façam avançar a iniciativa".

Apesar de o projecto estar parado e terem sido feitos numerosos cortes na programação anual proposta por Fernandes Dias, a câmara já gastou com ele, desde o fim de 2008, mais de 570 mil euros. Deste valor, que poderá ser superior e que o PÚBLICO apurou pelo cruzamento de documentos de despesa facultados pelo município com os dados constantes da base de dados dos ajustes directos (www.base.gov.pt), a maior parte foi gasta com espectáculos e exposições. E cerca de 70 mil euros foram despendidos em viagens de convidados do projecto e do seu coordenador.

Promover o que não existe

Segundo a documentação disponibilizada, Fernandes Dias fez oito viagens ao estrangeiro (quatro a Espanha, duas a Inglaterra, uma ao Brasil e outra à Costa do Marfim) em serviço do projecto, pagas pela câmara, além de duas em que foi convidado de outras entidades (Itália e Argélia). Em algumas destas viagens, justificadas com as necessidades de divulgação internacional do Africa.cont e com os preparativos da programação anual, foi abonado com despesas de representação, tal como previsto na lei.

"Muitas vezes sinto o desconforto de andar a promover uma coisa que não existe e que não sei se alguma vez existirá", confessou Fernandes Dias ao PÚBLICO, garantindo que não tem nenhum prazer em viajar e que para ele "férias é ficar em casa". O que vale, frisou, é que o presidente da câmara lhe diz sempre para continuar, "porque o projecto é para avançar". "Se não fosse isso eu pensava duas vezes."

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