Recordações do Faial
A ilha do Faial há-de ser dos sítios mais belos e inquietantes do mundo. E, por isso, não me surpreende que imagens feitas há mais de dez anos continuem a aparecer sempre que penso em viajar. Vejo a cratera central, a lava dos Capelinhos, a marina e o impressionante cone do Pico. Recordo as estradas estreitas e húmidas, uma carne no tacho que me deixou em KO técnico, o vodca laranja que cometi a heresia de pedir no Peter"s. E que era excelente.
Mas essas imagens são dinâmicas. Não são flashes, são videoclips. A cratera é um lugar mágico, onde o espaço e o tempo se explicam de uma maneira muito própria, num bailado constante de nuvens e cores, agora vê-se, a seguir desapareceu, para voltar diferente segundos depois. Olhamos lá para baixo e tudo parece musgo, quase ao alcance da mão. Ilusão: a cratera tem 400 metros de profundidade e o "musgo", afinal, é a silhueta esverdeada de árvores e arbustos por entre manchas de água.
O vulcão dos Capelinhos, que o mar desfaz a cada onda. Quando lá estive já se percebiam as linhas rectas do rochedo que existia no mar antes da erupção, contraste quase anacrónico com as curvas suaves da calota de cinzas e lava que aumentou a área da ilha (e do país) naqueles dramáticos meses de 1957 e 1958. Daqui a uns anos, tudo estará (quase) como dantes. Explicam-me que o material é pouco resistente e a erosão se processa a um ritmo rápido, pelo menos à escala geológica. Apanhei um bloco do chão e levei-o para casa. Desculpem lá.
A marina nunca é a mesma. Nos Açores, não há dias constantes, muito menos em Outubro. Agora um raio de sol, a seguir chuva, outra vez a claridade. A certa altura, levanto-me a correr da mesa, para espanto dos comensais, e vou até à varanda do restaurante. Pela primeira vez em três dias, o pico do Pico (chamam-lhe, carinhosamente, "Piquinho") mostra-se acima das nuvens. Fotografo. Bem podia ter filmado, tudo isto está em constante movimento.
Rever as fotos é uma forma de tentar assentar ideias. Ainda não estávamos na era do digital, mas fiz slides, em vez de simples fotos. Lá estão a marina cheia de barcos, o Pico com e sem nuvens, a cratera agora um mar de nevoeiro depois, as suaves curvas dos Capelinhos. A liliputiana escala do ferry no canal entre as ilhas.
Mas, estranho, há uma imagem que retive e não encontro. Sei que nos apareceu um dia, à direita da estrada, quando percorríamos a ilha em carro alugado. Por entre as árvores, a silhueta colorida nascendo de um mar verde de erva. Juro que vi uma casa que tinha a forma de proa de barco. Como se o resto da embarcação estivesse momentaneamente enterrado no chão, à espera de regressar às águas conturbadas do Atlântico sempre ali tão perto. Estou a vê-la e não a encontro, essa imagem. Será real?
(Durante a erupção dos Capelinhos, começaram a surgir vapores da cratera central. Toda a ilha do Faial cresce para aquela bacia imponente a mil metros de altitude e se esta entrasse em actividade seria catastrófico. Metade da população fugiu da ilha. Talvez aquele barco-casa que vi fosse, afinal, uma casa-barco. Símbolo de uma vida em que até o chão que pisamos é efémero.)
Jornalista