A medicina ainda fala pouco da vagina
Miranda: Qual é o grande mistério? A minha vagina, não a esfinge!
Por mais sofisticadas - no vestir, no falar, no beber, no namorar - que as mulheres sejam, a vagina continua a ser, para elas, uma desconhecida. Vai-se aprendendo um bocadinho de cada vez. Às vezes, quando tudo corre mal, tira-se um curso intensivo. E há tanta coisa que pode correr mal. Sobretudo se nos lembrarmos que a vagina é uma cavidade e está rodeada por músculos. No corpo, o que mais se parece com ela é a boca, diz Isabel Ramos, fisioterapeuta especializada nas áreas da obstetrícia ginecologia e pediatria.
"Uma das razões por que as mulheres sabem tão pouco da sua vagina é não a poderem ver. Mesmo usando um espelho, só podem ver por fora", explica a ginecologista e obstetra Teresinha Simões.
Não podem, ou não querem. "Quanto faço exames, tenho um aparelho e as pessoas podem ver, mas muitas mulheres não querem. Algumas não sabem que a vagina não é um buraco aberto e têm medo de perder um tampão ou um preservativo", diz esta médica.
Há duas explicações relacionadas que explicam tanto desconhecimento. A vagina está associada à sexualidade e esse ainda é um tema muito oculto na sociedade ocidental. Talvez por isso a medicina tenha demorado tanto tempo a falar dela, das suas funções e da sua saúde.
A verdade é que a maioria das mulheres não teve quem lhe explicasse que a vagina é uma mucosa rodeada de músculos. E se estes músculos (o pavimento pélvico) têm um papel sexual importante, também são eles que suportam o útero, a bexiga e o intestino. Por isso, temos que lhes dar atenção, como damos atenção aos músculos da barriga ou dos braços. E, ao longo de toda a vida, sobretudo se pensarmos que a vagina é o canal natural para ter filhos, quem planeia tê-los precisa de fortalecer a musculatura.
Rupturas e prolapsosQuando há lesões musculares, os órgãos ficam fora do lugar e aparecem os problemas. Podem ocorrer rupturas de ligamentos, alargamentos da vagina e prolapsos do útero, da bexiga, do intestino e, nestes últimos casos, aparece a incontinência urinária ou fecal.
São múltiplos os factores que podem danificar os músculos do pavimento pélvico. Imaginemos uma mulher que trabalha numa grande cozinha e tem que carregar sacos de batatas e grandes panelões todo o dia; a força abdominal pode provocar danos. Também há factores genéticos. E o parto vaginal, sobretudo quando é prolongado e o bebé tem mais de quatro quilos. Às vezes, as mulheres nem dão por isso.
Há 13 anos, quando teve o primeiro filho, Maria Tomás acreditou que estava tudo normal. A roupa de antes da gravidez servia-lhe. Não tinha quebras de energia, falta de apetite sexual, dores... "Só sentia um incómodo. Por exemplo, quando vestia calças de ganga. Havia uma impressão, sentia-me mais larga, mais aberta."
O primeiro filho demorou oito horas a nascer. O parto, induzido às 40 semanas, não correu bem. O bebé era grande, mais de quatro quilos. Foi um parto vaginal. Com dois dedos de dilatação - conta Maria -, deram-lhe a epidural. "Estive oito horas com dores e sem dilatar. Foi horrível. Tiveram que me dar uma segunda epidural quando a dilatação aumentou e depois foi rápido. Mas eu nem sequer olhei para o bebé, só queria que aquilo acabasse."
A seguir, veio "o normal". Não são as próprias mulheres quem diz que depois de dar à luz nunca mais se é a mesma?
"Sim, achei que era mesmo assim."
E assim o "incómodo" permaneceu. Permaneceu quatro anos.
"Quando engravidei pela segunda vez, fiquei um mês de repouso. Tinha uma vida mais stressante, mais agitada, mas sobretudo tinha a "barriga" muito em baixo e, para não haver riscos, fiquei em descanso", conta Maria Tomás, que tem 43 anos e é redactora de publicidade.
A segunda experiência do parto, também vaginal e de outro bebé com mais de quatro quilos, foi o oposto à do primeiro filho. "No primeiro parto, ao todo, desde entrar na sala até me coserem, passei por sete pessoas. No segundo foi um único médico." Ele percebeu que alguma coisa estava mal. "Disse-me que me ia tratar melhor do que me tinham tratado no primeiro filho e explicou-me que me tinha cosido, que tinha "dado um jeito lá por dentro"", recorda Maria.
O que lhe fez o médico e em que condições lhe encontrou o aparelho sexual e reprodutor não sabe ao certo. Nada lhe foi dito.
O que sabe: "A tal sensação de incómodo desapareceu logo e, a nível sexual, só depois é que percebi a diferença. Antes sentia desejo e prazer, mas parecia-me que era [a penetração e o acto sexual] fácil, parecia-me mesmo facilidade a mais. Depois fiquei a sentir muito mais prazer. O segundo parto rejuvenesceu-me. Até a nível sexual. Fiquei a sentir-me muito bem com o meu corpo."
O mais provável - e é apenas uma hipótese - foi o pavimento pélvico ter ficado lesionado e ter sofrido um prolapso do útero. O médico poderá ter reconstruído o pavimento pélvico, que ficou mais fechado, recolocando os órgãos no lugar certo.
CirurgiasHá casos em que a cirurgia é a única opção, explica Teresinha Simões. "Mas só se os órgãos estiverem muito alterados", sublinha. Porque estas intervenções têm riscos. A vagina, como todas as outras partes do corpo humano, evolui ao longo da vida. É estreita e pequenina antes da primeira menstruação. No início da puberdade, as hormonas femininas tornam-na maior, mais rugosa (mais elástica) - é o período em que a vagina se adapta a possíveis maternidades. Na menopausa, atrofia. Na cirurgia é essencial ter em conta essa evolução, explica Teresinha Simões, para que a vagina não fique fechada de mais, o que pode provocar problemas após a menopausa ou dores durante as relações sexuais.
Estas cirurgias são feitas no Serviço Nacional de Saúde. Mas já se realizam em clínicas de medicina estética.
"Nunca fui procurado por mulheres com este problema", diz o cirurgião plástico Ibérico Nogueira. As cirurgias mais procuradas junto dos cirurgiões estéticos em Portugal, diz, têm mais a ver com alterações estéticas: a diminuição dos pequenos lábios, a lipoaspiração da zona púbica, a reconstrução do hímen...
Porém, Ibérico Nogueira já realizou cirurgias de reconstrução da vagina após danos causados por partos. Foi no Brasil, nos anos de 1970. "O meu pai, que era ginecologista, foi para o Brasil, quando já tinha 60 anos e este tipo de cirurgia era muito solicitada. Eu comecei a ajudar o meu pai, a minha ideia inicial era fazer a minha especialidade em ginecologia."
Ibérico Nogueira diz que muitas mulheres desconhecem que existem técnicas - cirúrgias e não cirúrgicas - para as ajudar a manter a sua saúde vaginal. "Há muita falta de informação e deveria haver mais divulgação por parte dos organismos. Trata-se de uma questão de saúde e qualidade de vida", defende o médico. As patologias da vagina podem provocar distúrbios físicos, mas também emocionais. Em último grau, podem "criar distúrbios na relação conjugal e mexer com a auto-estima".
Renato Natal, professor de Engenharia Mecânica na Faculdade do Porto e coordenador do Estudo de Valiação Biomecânica da Cavidade Pélvica da Mulher, explica que "os estudos epidemiológicos que existem indicam que estas patologias estão fortemente relacionadas [com o parto vaginal]. Mas não é causa única".
Teresinha Simões reforça: "A ideia de que partos estragam a vagina é um conceito recente que tem a ver com mitos." Sim, há uma correlação maior entre partos vaginais prolongados de bebés com grande peso e certas patologias, mas há mulheres que só fizeram cesarianas e que têm incontinências urinárias e prolapsos dos órgãos pélvicos. Se não imediatamente após terem filhos, anos depois. "E há freiras que nunca tiveram partos que têm prolapsos", refere a médica.
Segundo Teresinha Simões, é errada a ideia de que a vagina não foi feita para o parto. "É um órgão elástico que foi programado para ter uma função sexual e para o parto", diz, considerando que em Portugal se realiza um número excessivo de partos por cesariana: uma média anual de 36 por cento na saúde pública, acima dos 60 por cento na saúde privada. "É muito."
Engenharia mecânicaClaro que há casos extremos. Há mulheres cujo útero sai para fora do corpo. Há vaginas que, por uma razão ou outra, ficam tão fragilizadas que dificilmente as paredes musculares mantêm a sua função. O estudo que Renato Natal dirige está, em parte, a procurar soluções para estes casos. Mas não só - procura sobretudo evitar patologias.
O estudo está a ser realizado desde 2003 e é uma colaboração entre a Faculdade de Engenharia do Porto, o Hospital de S. João, a Faculdade de Medicina do Porto e o Instituto de Medicina Legal. "Não existe muito conhecimento sobre os movimentos dos órgãos da cavidade pélvica da mulher", diz este professor.
Financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, esta investigação procura simular o que pode acontecer para provocar determinada patologia. "Fomos avaliar o esforço induzido nas estruturas do pavimento pélvico durante o parto vaginal. As simulações que fizemos em computador permitem identificar lesões", explica o engenheiro mecânico. O primeiro passo, claro, foi identificar a mecânica muscular de cada um dos órgãos e a mecânica dos seus movimentos. As simulações poderão, no futuro, ajudar os médicos a tomar decisões. Na posse de indicadores de probabilidades de risco sobre cada órgão e sobre o conjunto dos órgãos, o obstetra poderá decidir sobre como realizar um parto de forma a evitar que os riscos se tornem patologias.
Um próximo passo na investigação será dirigido aos casos que exigem cirurgia e que podem ou não ter sido provocados por partos vaginais. "A intervenção cirúrgica pode implicar a colocação de determinadas próteses, um tipo de malha, de forma a dar rigidez ao pavimento pélvico", explica Renato Natal. Os investigadores estão não só a trabalhar nessas próteses, como nos indicadores que permitirão ao clínico fazer opções.
Em contacto com outras equipas que realizam estudos similares, nos Estados Unidos, no Brasil ou na Alemanha, Renato Natal pode dizer que, por comparação, apesar de estar ainda longe de concluído, este é um estudo que já avançou bastante. "Não estarei a exagerar se disser que criámos um modelo único a nível mundial e, com ele, conseguimos fazer quantificações dos esforços do pavimento pélvico que outros grupos ainda não fizeram", conclui o professor da Faculdade de Engenharia do Porto.
Exercício e fisioterapiaNão admira que a mecânica do pavimento pélvico esteja tão pouco estudada na sociedade ocidental. A saúde vaginal (ou a falta dela), como explica Teresinha Simões, é um assunto cultural. Num congresso no Oriente, a ginecologista assistiu a uma sessão a lembrar o filme O Império dos Sentidos. Numa demonstração de exercícios para fortalecer os músculos do pavimento pélvico, mulheres lançaram bolas da vagina, mas não as lançavam para qualquer lado, conseguiam direccioná-las para dentro de recipientes. (Estas bolas chamam-se pesos vaginais e estão à venda.)
"Não há, na sociedade ocidental, o hábito de fazer exercícios. No Oriente é comum", conta a ginecologista.
A fisioterapeuta Isabel Ramos defende que os exercícios, designados por Kegel (a contracção dos lábios vaginais para dentro), devem ser feitos a partir da adolescência, após a primeira visita ao ginecologista. Se os músculos estiverem devidamente trabalhados, a vagina evoluirá mais saudavelmente. E, em caso de partos, a recuperação será mais rápida e eficaz. Os exercícios, frisam as duas especialistas, deveriam ser realizados por todas as mulheres, queiram ou não ter filhos. Mas Isabel Ramos concede que parte do problema começa na classe médica, até há pouco tempo pouco disponível para fazer este tipo de recomendações.
Além destes exercícios, a manter ao longo da vida, existe a fisioterapia. São tratamentos não invasivos que devem ser considerados antes de se pensar em cirurgia. Isabel Ramos mostra uma sonda vaginal de fisioterapia - semelhante a um tampão, tem uma ponta metálica por onde passa uma corrente eléctrica que provoca a contracção dos músculos. Em França, Holanda, Bélgica e Alemanha, por exemplo, o Estado paga estes tratamentos pós-parto, porque, diz a fisioterapeuta, há estudos a provar que os gastos públicos devido à incontinência são elevadíssimos. "Em alguns países, estes gastos são mais elevados do que na área cardíaca."
Os exercícios Kegel são tão fáceis de fazer que não há quem entenda a resistência de algumas mulheres. Podem ser feitos no autocarro, no trabalho, na escola... Ninguém percebe que uma mulher os está a fazer.
Teresinha Simões aponta um dedo às mulheres, que se preocupam em ter a barriga lisa, em usar cremes para evitar a flacidez da pele do rosto, mas que não pensam no que não vêem.
Outra queixa, de Isabel Ramos, também dirigida às mulheres: "Muitas só quando a situação já compromete a sua vida sexual, familiar e profissional é que procuram os médicos."
Teresa Barros, reformada de 68 anos e mãe de dois filhos adultos nascidos de cesariana, sofre de incontinência urinária. "Quando me rio muito, ou quando faço alguma força, faço mesmo chichi. De resto são umas pinguinhas."
Neste caso houve falta de informação. Em Angola, onde os filhos nasceram, os médicos falaram-lhe dos exercícios de Kegel. Nunca os fez. Em Portugal, o urologista teve com ela a mesma conversa e aconselhou a cirurgia. Optou por não ser operada. Usa pensos higiénicos no dia-a-dia e nunca ouviu falar da "vagina deprimida" - outro ensinamento de O Sexo e a Cidade.