"Só se for daquelas". Foi assim, de caminho do casual para o incrédulo, num atirar do dedo a apontar para aquelas prateleiras pouco visitadas dos arquivos da Valentim de Carvalho em Paço d'Arcos, que Hugo Ribeiro pôs fim a um mistério que estivera muitos anos à espera de nascer e, passados alguns meses, tinha solução à vista. Se alguém podia ter a chave, esse alguém só podia ser Ribeiro, técnico de som que sempre acompanhou Amália e que, vezes suficientes, lhe desobedeceu ao não apagar gravações que a fadista considerava menores. A busca por um tema ironicamente intitulado "Naufrágio" terminava ali, mas revelar-se-ia mais rica do que o imaginado. Frederico Santiago, principal empreendedor da expedição, ligaria numa excitação adolescente a David Ferreira logo em seguida para lhe dizer isto: "David, agora ou vou ter a maior alegria ou a maior desilusão da minha vida. É que não é só o 'Naufrágio', é também o 'Com que Voz' e outras coisas". Gravações realizadas numa máquina descontinuada (que Santiago descobriu depois no Tchá Tchá Tchá), Ribeiro tinha-as arquivado igualmente na sua memória de 84 anos, não as tendo mencionado antes por achar que não poderiam voltar a ser tocadas. Como diziam "Amália", as bobines salvaram-se sempre de umas mãos menos católicas que não acreditassem na ressurreição.
A procura por este "Naufrágio" começara em meados de 2009, quando David Ferreira - editor, filho do poeta David Mourão-Ferreira (autor de muitos poemas cantados por Amália) e sobrinho de Rui Valentim de Carvalho (o fundador dos estúdios de Paço d'Arcos onde Amália gravava) - teve uma das primeiras reuniões com Frederico Santiago, cantor lírico do Coro do S. Carlos, para o integrar no projecto de reedição de "Com que Voz". Debruçados sobre a base de dados que inventaria as gravações de Amália, elaborada pelo jornalista Jorge Mourinha, os dois foram peneirando os temas dispersos que poderiam dar corpo a um segundo CD com extras menos conhecidos. Cada caso era discutido e soltavam argumentos para dentro de um ringue em que vencia a lógica mais inquestionável, tendo em conta o período histórico, a formação de duas guitarras que acompanha Amália em "Com que Voz" ou serem composições do francês Alain Oulman, autor da totalidade do disco.
Depois de finalizada a lista com todas as hipóteses, Frederico, possivelmente desconfiado da empresa que se seguiria, larga a bomba: "E há um Naufrágio". Os dedos de David apressam-se a comandar a busca na base de dados. "Não é possível ao Excel localizar os dados que procura", devolveu-lhe o computador. Se "Naufrágio" tivesse sobrevivido numa qualquer ilha deserta, estaria há 40 anos a acenar em vão a quem passava. "Mas qual Naufrágio?", pergunta David. "Há um Naufrágio muito diferente [do constante em "Com que Voz"] que a Amália fez em televisão". E é então, quando tenta desvalorizar o facto de se tratar de uma versão televisiva, que David percebe o quanto aquele cantor lírico de 33 anos sabe demasiado do assunto: 'É playback e sei que é playback porque comprei o programa à televisão. E aquilo é o eco do Valentim de Carvalho, aquilo é o som do Hugo Ribeiro". David rende-se a Frederico.
Em troca, oferece-lhe o passo seguinte: providencia-lhe o acesso aos arquivos para resgatar o "Naufrágio" em questão.
A escolha de Fontes
O queixo levantado, a cabeça levemente inclinada para trás, os olhos cerrados e uma expressão de quem solta uma palavra já mastigada vezes sem conta, de cada uma delas mais pesada no peito e áspera na língua.
Ao mesmo tempo, um semblante que se diria convocar o divino. Chama-se simplesmente "Busto" a escultura de Joaquim Valente, terminada em 1952, e que acabaria por baptizar popularmente o disco lançado dez anos mais tarde. Quando "Busto" é lançado, Amália sabe que está a pisar o risco, a esmagar os calos desse grupo hiper-sensível a que se chama "os puristas". A sua colaboração com o compositor Alain Oulman rasgará por inteiro as regras do cânone fadista. Nada de novo, portanto. Diz a diva do fado na biografia escrita por Vítor Pavão dos Santos: "Havia quem dissesse que eu já não cantava o fado, que o fado do Alain não era fado.
Mas isso foi uma constante: os primeiros fados que cantei não eram fados, eram à espanhola; depois os fados do Valério não eram fados; depois já eram e os do Alain é que não eram. Quer dizer: eu vou fazendo os fados serem fados à medida que os vou cantando".
Mas não se caia no erro fácil de achar que só os puristas mais amargos do fado, querendo reclamar a sua autoridade sobre o género, apresentavam uma resistência de aço às mais rendilhadas composições do francês. Hugo Ribeiro lembra-se bem de como lhe era indigesto o escárnio habitual que ouvia aos guitarristas que acompanhavam Amália assim que a fadista anunciava temas de Alain Oulman: "Pronto, vão começar as óperas". A exigência destas novas composições era inicialmente mal recebida pela dificuldade técnica que apresentavam e por exigir aos músicos saírem do seu registo seguro. O desafio era tomado como provocação. O desconcerto dos músicos terá sido uma das justificações para a redução do quarteto de guitarras que acompanhava Amália para o formato mais despido de guitarra portuguesa e viola em "Com que Voz". Ribeiro defende que era a solução ideal para os temas de Oulman. "Senão ficava como certas gravações que ela tinha feito antes. O público não dava por isso, mas a voz da Amália estava impecável e as guitarras com desafinações, desencontros, atrasos. Os guitarristas não estavam preparados para se adaptar àquilo e já eram homens bem adultos".
A excepção era Fontes Rocha, não apenas um "artista de fado" como os outros, mas um músico versátil. E aqui, levanta-se uma bruma densa sobre a escolha de Fontes Rocha. Ribeiro defende que era o único que sabia as músicas de Oulman e era capaz de as tocar, David Ferreira acredita que se tinha começado a formar uma cumplicidade artística entre Fontes, o viola Pedro Leal e Amália em certas noites no Embuçado, onde terão começado a experimentar pela calada o formato a três. Fontes Rocha, segundo guitarra no quarteto de Raul Nery, passava repentinamente para a ribalta. E a verdade é que dificilmente "Com que Voz" poderia reclamar o seu estatuto de obra-prima não fosse a carta-branca que lhe é dada. É ímpar a forma como a sua guitarra dança em volta da voz de Amália, sem nunca impor a sua presença. Não há despiques neste disco de assombro, apenas um encaixe ao nível do sublime. Se as notas de Fontes Rocha encenam um bailado melódico belíssimo, a voz de Amália está no auge, é um primor absoluto de entrega e de justeza interpretativa.
O disco milagroso
Segundo Hugo Ribeiro, Amália ter-lhe-á pedido que fosse ele a informar os guitarristas do formato reduzido para o disco, avisando-os de que iam "fazer uns ensaios só com uma guitarra e uma viola, a ver se resulta melhor", para não ofender ninguém. O resultado foi de tal forma o pretendido que, apesar de satisfeita, Amália avisou que da sua boca não sairia nem uma palavra sobre o assunto. "Se eu disser alguma coisa aos guitarristas são capazes de se zangar comigo e posso perder o apoio deles", terá confessado. Mas ninguém se zangou e Hugo tem uma suspeita forte quanto a isso: "Talvez vissem que se tinham livrado de uma alhada. Ao princípio ficaram ofendidos. Depois quando viram que aquilo estava a sair muito bem, e com eles não saía bem...".
Gravado em duas noites, "Com que Voz" foi registado no ambiente familiar que era habitual nos estúdios da Valentim. Amália "levava as comidas do tempo da família dela pobre", lembra Hugo Ribeiro. Era a famosa ementa de carapaus de escabeche ou arroz malandrinho de bacalhau. E, sem falha, uma garrafa de champanhe que cumpria um importante ritual de estúdio. "Quando eu lhe dizia que a gravação estava boa, mandava logo abrir a garrafa para todos beberem menos ela", lembra o técnico de som.
Quando terminaram as gravações, Ribeiro inscreveu nas caixas das bobines: "disco milagroso". Ainda hoje, considera-o perfeito. David Ferreira concorda. "Até 1964, a Amália grava em mono, com as guitarras em baixo para se ouvir a voz dela. Mas se andarmos quatro anos para a frente, a voz da Amália já não é a mesma". Na sua opinião, "Com que Voz" coincide também numa procura a cinco, feita de outras tantas procuras individuais: Amália procura um novo ciclo no seu acompanhamento, escolhendo Fontes e preferindo gravar a duas guitarras; Alain Oulman procura levar mais além a sua composição específica para aquela voz que tem de criar uma nova tradição para o fado, transbordando os limites da anterior; Fontes Rocha procura uma nova sonoridade, mais descarnada, que lhe permite brilhar sem disputar espaço debaixo dos holofotes; Hugo Ribeiro procura o som definitivo para servir Amália, limpando o eco exagerado de "Busto"; e Rui Valentim de Carvalho procura ter o melhor estúdio possível para gravar a cantora - "era um apaixonado por máquinas e pela Amália, e aquela coisa de ter um estúdio novo era muito a pensar nela".
Se "Busto" é o disco revolucionário, acredita David Ferreira, então "Com que Voz" é o disco da consagração da parceria com Alain Oulman. Até porque leva consigo a vantagem de carregar uma bagagem leve: a polémica do estilo de composição (e a heresia do piano) de Alain ficou gravada em 1962, com "Busto"; a censura a "Abandono", "por falar de uma prisão para onde se vai por delito de opinião", pertence igualmente a "Busto"; a polémica de cantar Camões acontece em 1965 e enche as páginas do "Diário Popular" com artigos a favor e contra. Chegado "Com que Voz", já se esgotou o stock de polémicas. Talvez por isso não precisa de assumir-se como um risco, e tem espaço para se afirmar livremente como o disco maior de Amália. No entender de David Ferreira, só há outros dois discos tão presentes em quase toda a música portuguesa que se lhes seguiu: "Cantigas do Maio", de José Afonso, e "Ar de Rock", de Rui Veloso. "Esteticamente ou em termos de viabilidade de mercado, alteram tudo".
A ausência de polémicas no meio de um frenesim artístico e pessoal fazem de "Com que Voz" um disco pouco apetecível para os media, passando por obra tímida a mais vibrante gravação de Amália. Os jornais estão mais interessados em parangonas como "Amália não pode dar um rim à irmã mas Celeste dá", "Amália no Brasil" ou capas com a fadista a passear com Fontes Rocha por Moscovo. A digressão de 18 recitais na URSS, de resto, conduz a uma demonstração de como o poder sempre se apropria das suas figuras de proa. Em 1969, sendo demasiado nocivo impedir Amália de cantar no Bloco de Leste, em pleno auge da abertura da Primavera Marcelista cantora e guitarristas têm ordem para sair do país. E se muito se especulou sobre uma ligação de Amália ao Estado Novo, numa tentativa de implicar a cantora no regime, na União Soviética a máquina de propaganda também não deixou os seus créditos em apropriações alheias. As notícias da digressão referem sempre a presença em terras comunista "desta mulher genial que canta a voz sofrida do povo mártir de Portugal", descobriu Frederico Santiago. "Quando estamos a falar de grandes artistas e do poder, o poder faz sempre a mesma coisa - atrela-se", sentencia David Ferreira.
Para Hugo Ribeiro, o sucesso soviético de Amália era fácil de explicar. "As pessoas desfaziam-se em lágrimas porque estavam a sofrer". Mas o técnico sabe também que o período entre 1965 e 1975 foi o ponto mais alto da sua genialidade. "Com a Amália a gente chega a estar comovido a ouvir o que ela está a cantar", diz. E é isso que não escapa ao ouvir "Com que Voz" e os seus notáveis extras: a expressão mais elevada do fado está aqui escarrapachada e é por este padrão irrepetível que passa a avaliar-se o surgimento de cada novo fadista. Depois, a voz começou a encolher, a esconder-se por detrás dos 80 cigarros que fumava pela metade em dias de estúdio, da idade, de uma saúde em despedida, e Hugo tentou demovê-la de cantar em público. "Quero ver se morro lá no palco", respondeu-lhe Amália.
Para os distraídos, é em "Com que Voz" que está "Gaivota", Amália a cantar Alexandre O'Neil. Por isso, é favor apagar da memória Amália Hoje. E voltar a ouvir Amália ontem.