É possível escrever mal de um concerto do pianista Herbie Hancock? Não. Se não houvesse sempre nas suas apresentações uma réstia de genialidade no piano acústico, se não houvesse aquela devoção a um dos principais legados do jazz da segunda metade do século XX, talvez se pudesse dizer que o concerto de anteontem na Casa da Música, no Porto, padeceu de males a mais para poder ser considerado como bom.
Mas eis senão que pelo meio aparecem aqueles improvisos que começam em andamentos lentos e acabam em explosões rítmicas e tímbricas, acontecem aqueles breves acordes de temas que, como Cantaloupe Island, nos fazem felizes há décadas ou aquela paixão pela partilha da música muito própria das aparições ao vivo de Hancock a relativizar tudo e a apelar à nossa condescendência. Sim, no concerto de anteontem, que tinha como base a apresentação do The Imagine Project, houve muitos momentos duvidosos ou até deploráveis, mas a verdade é que os espectadores que praticamente esgotaram a Casa da Música acabaram a noite em pé, numa longa e sentida ovação.
Não é difícil identificar o que começou mal e continuou mal até ao último terço do espectáculo: Hancock nunca deixou de se deslumbrar com o poder da electricidade e com as receitas da fusão do início dos anos 70, mas continua a perceber que a “next big thing” de há 40 anos não passa agora de uma fórmula gasta. O tema de introdução do concerto, uma daquelas receitas palavrosas de solos intermináveis nas quais o sintetizador substitui as secções de metais (e quase tudo o resto...), sugeria que Hancock tinha vindo até nós sem ter nada para nos dizer. Mas houve mais: a cantora Kristina Train apresentou-se a interpretar Imagine, de John Lennon, sem ter na sua escala vocal amplitude para encher a sala; e sim, se é verdade que Greg Phillinganes é um grande cantor soul, as suas teclas puderam exasperar até o espírito mais tolerante ao criar um ambiente delicodoce para contaminar Round About Midnight.
Com o passar do tempo, porém, o concerto começou a fazer gradualmente sentido. Sem metais, teria de haver lugar aos sintetizadores e à tensão da electricidade; sem os cantores originais do Imagine Project, teria de haver uma voz feminina algo versátil e dois cantores ecléticos (além de Greg Phillinganes, Lionel Loueke, que mostrou também ser um guitarrista original); quando não havia possibilidade recriar elementos centrais do disco gravado, a alternativa consistiu em recorrer ao sampling. Sendo impossível repetir a grandiosidade do projecto original (com músicos e cantores de onze nacionalidades a cantarem em sete línguas), Hancock recorreu ao pragmatismo. E aí, a escolha da banda e a preferência pelo Hancock que fez a alma da fusão com os Headhunters em detrimento do Hancock que ainda hoje ilumina o jazz com Maiden Voyage começou a fazer sentido.
Facto é que, com o decorrer do tempo, o concerto foi ganhando brilho e intensidade. Kristina Train foi ganhando confiança e os temas foram-se ajustando às suas características vocais. A interpretação de Court and Spark, um original de Joni Mitchell que integrava o fabuloso disco “River, The Joni Letters” foi um momento sublime, em que a cantora mostrou de facto o que vale. Em mais do que um momento, Hancock pode deixar-nos as impressões do seu piano luminoso e intenso. E a interpretação de Greg Phillinganes de “Change is Gonna Comme” seria por si só suficiente para redimir todo e qualquer pecado anterior. Foi então que a Casa da Música se levantou das cadeiras para aplaudir, e pouco importou que o tema final do concerto fosse uma anódina recriação do velho Chameleon. Aí, Hancock e a sua banda (que actuarão dia 11 em Oslo, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz) estavam já redimidos.