O triunfante regresso de Mariza à taberna
Em Terra (2008), Mariza acentuou influências do flamenco, jazz e música africana, que já anteriormente se faziam sentir na sua carreira. Fado Tradicional, disco lançado ontem e apresentado em estreia mundial no Porto, tem um título muito auto-explicativo: trata-se de um back to basics, do regresso da intérprete à sua infância e adolescência e aos fados que ouvia na taberna dos pais (melodias tradicionais como o Fado alfacinha, Fado Vianinha ou o Fado Zé António).
Mariza dirá, justificadamente, que nunca abandonou a matriz fadista. Concordamos, mas há claramente uma faceta mais conservadora: face à anterior digressão, foi dispensado o piano e o trompete de Simon James e o protagonismo do percussionista Vicky Marques é muito menor. Ironicamente, foram as intervenções do convidado Artur Batalha que nos puseram de volta à terra: o fado de Mariza nunca será tradicional como o deste fadista "castiço" dos seus tempos de infância. Há uma sofisticação, uma orientação pop nas melodias e um estilo próprio - evidente, por exemplo, nas pausas que imprime nas canções - que nunca lhe permitirão carimbar-se com esse rótulo. Naturalmente, o intuito da cantora não é esse, mas sim revisitar o passado, sem abdicar daquilo que a torna única. Tendo em conta esse objectivo, apresentou-se de forma irrepreensível e mostrou estar, provavelmente, no auge da sua carreira.
No palco (quase sempre mantido na penumbra), o cenário criado pelo arquitecto Frank Gehry procura recriar o intimismo de uma casa de fados. O autor do Museu Guggenheim, em Bilbau, imaginou este dispositivo em Outubro de 2007, para um dos concertos da portuguesa no Walt Disney Hall, em Los Angeles.
Atrás dos músicos estavam sete mesas, ocupadas por gente de carne e osso com quem Mariza procurou frequentemente interagir. Para além disso, apenas uma série de discretas telas como pano de fundo. O dispositivo surpreende a princípio, mas não consegue criar calor humano numa sala tão ampla como o Coliseu do Porto. Aliás, a própria fadista já anunciou que esta digressão é destinada a palcos mais pequenos.
Voltando à música, importa referir que Fado Tradicional foi passado em revista na íntegra, sendo vitaminado por alguns dos temas mais conhecidos da carreira da intérprete, como Primavera, Chuva, Cavaleiro monge e Meu fado meu (seleccionados de acordo com as reacções que foi colhendo no Facebook, como revelou em pleno concerto). Aliás, parte do sucesso de Mariza deveu-se ao facto de ter intercalado de forma inteligente canções mais antigas com os novos temas, bem como fados mais festivos com outros melancólicos: a passagem de Dona Rosa (poema de Fernando Pessoa no Fado bailarico de Alfredo Marceneiro) para Ai, esta pena de mim (de Amália Rodrigues) é disso exemplo.
Quando dizíamos que Mariza se encontra em grande forma, referíamo-nos ao facto de nos parecer mais equilibrada, até um pouco mais contida - esteve tão à vontade nos fados mais expansivos e corridinhos, como nos mais introvertidos e tristes e tão desenvolta nos agudos como nos sussurros. Por exemplo, em Fado Primavera, pareceu pesar cada palavra, a sua voz teve a quantidade certa de grão, angústia e solenidade.
Num concerto em crescendo, o encore revelou-se apoteótico: primeiro, houve direito a fado sem amplificação, à boca do palco; depois, Mariza atirou-se a Ó gente da minha terra, provocando a comoção generalizada. Circulando pela plateia, cumprimentou dezenas de pessoas e terá deixado a maioria dos espectadores com um arrepio na espinha. Naquele refrão, é difícil não sentir a nostalgia da portugalidade.
João Pedro Barros
Mariza apresenta Fado Tradicional no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, na segunda e na terça-feira (21h30)