Renasceu a Lisboa antes do terramoto

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O Paço da Ribeira, com o torreão (à dta.), a torre da Igreja da Patriarcal (ao centro) e, um pouco mais alta do que os edifícios da Ribeira das Naus, a Ópera do Tejo (à esq.). Todos destruídos pelo sismo Museu da Cidade/SWD Agency

Uma nova recriação virtual mostra como era Lisboa antes do sismo de 1755. Ruas e edifícios que ruíram, como a Casa da Ópera ou a Rua Nova dos Ferros, ergueram-se agora da destruição. A viagem a essa Lisboa antiga pode fazer-se a partir de hoje no Museu da Cidade. Por Teresa Firmino

Recuemos até 31 de Outubro de 1755, véspera do sismo que arrasou Lisboa. Deambulemos pelo emaranhado de ruas sujas e nauseabundas, de traça medieval, e depois continuemos a pé até à beira do Tejo. Entre o labirinto de casas e ruelas desordenadas, abre-se o Terreiro do Paço, praça ampla com uma fonte no meio: de um dos lados, sobressai o torreão do Paço da Ribeira, onde vivem o rei e a corte. Não muito longe, encontramos a Igreja da Patriarcal, a recém-construída Ópera do Tejo ou a Ribeira das Naus, onde ficam estaleiros de construção naval.

No dia seguinte, 1 de Novembro, pelas nove e meia da manhã, a crosta terrestre rompeu-se no mar, ao largo de Portugal, e a terra tremeu com uma tal violência que grande parte da cidade ficou reduzida a escombros. Com magnitude de 8,5 graus, um dos maiores sismos de que há memória, o terramoto de 1755 é considerado a primeira grande catástrofe natural da história.

Uma hora e meia depois chegou o tsunami, gerado pela deformação no fundo do mar quando se deu o sismo, e inundou a zona ribeirinha da capital. Por último, os incêndios. Os fogões no casario denso, sempre acesos, atearam fogos que cobriram Lisboa de negro.

Terão morrido dez mil pessoas, nas estimativas recentes, entre as 200 mil que habitavam a cidade. Umas terão ficado debaixo dos escombros. Aquelas que fugiram para as margens do Tejo, sobretudo o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré, foram apanhadas pela onda, que chegou com cinco metros de altura e avançou 250 metros terra adentro.

Foi em cima destas ruínas que renasceu uma Lisboa de ruas largas e geométricas na Baixa, tal como conhecemos agora. A cidade erguida da catástrofe - cujos trabalhos de reconstrução foram dirigidos por Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal - sepultava assim muitos vestígios da antiga, descrita nos textos da época como caótica, cujas ruas e becos não obedeciam a qualquer plano prévio. Descreviam-na ainda como nojenta (as bacias com dejectos eram despejadas no Tejo) e contava-se queestava sempre a ser fustigada por incêndios.

Documentos, gravuras, litografias ou mapas perpetuaram a memória da cidade desaparecida, que foi sendo resgatada em projectos de investigação. Há cinco anos, na passagem dos 250 anos do terramoto, o Museu da Cidade quis ir mais longe e iniciou a recriação virtual a três dimensões da cidade pré-pombalina. Hoje, às 19h, faz-se a apresentação pública dessa reconstituição, com o presidente da câmara, António Costa, e a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto. Em quiosques multimédia, os visitantes podem agora reencontrar a Lisboa à beira do terramoto e cruzar-se com edifícios e algumas das zonas mais marcantes da cidade. Quem quiser pode visualizar as reconstituições rodando-as 360 graus. Ou ainda ver vídeos que reconstituem percursos - por exemplo, uma vista panorâmica da cidade, a frente ribeirinha,ou a Rua Nova dos Ferros.

Uma maqueta especial

Tudo partiu de uma das peças mais emblemáticas no museu - a maqueta que representa Lisboa antes do terramoto, construída pelo maquetista Ticiano Violante sob a orientação do olissipógrafo Gustavo de Matos Sequeira, na década de 1950. Com mais de dez metros de comprimento, por quatro de largura, a maqueta em gesso ficou pronta em 1958, para ser incluída no ano seguinte numa exposição sobre os 200 anos do terramoto. Através dela tem-se uma visão global da cidade naquela época. Podem identificar-se os edifícios de maior interesse, como palácios, igrejas, conventos, hospitais e fortificações, e as praças e ruas.

"É uma peça que capta a atenção de todo o tipo de público. Era intenção do museu explorar o manancial informativo que a maqueta contém, no sentido de tornar a leitura deste objecto e da cidade que ela representa mais clara", conta a directora do Museu da Cidade, Cristina Leite, que concebeu e dirigiu o projecto.

Uma equipa do museu partiu daquele conhecimento de há 50 anos sobre a cidade na véspera do sismo e vasculhou toda a documentação, desde fontes cartográficas, iconográficas, textos inéditos até plantas e dados arqueológicos. Com esta informação, construiu ainda modelos físicos de edifícios e ruas e forneceu os dados a uma empresa portuguesa de design, arquitectura e publicidade. A partir daí, a SWD Agency fez a reconstituição em 3D e a sua animação multimédia (o que custou 185 mil euros, segundo Cristina Leite).

O resultado é a recriação de 25 pontos, situados principalmente entre o Castelo de São Jorge e o Chiado. Renasceram edifícios que se tinham perdido, como a Casa da Ópera, outros que sobreviveram apesar dos danos, de que é exemplo o Convento do Carmo, conservado como ruína e ícone do terramoto. "Os 25 pontos foram todos desenvolvidos com qualidade fotorrealista, com bastante rigor ao nível do detalhe, de acordo com a informação que nos foi dada", conta João Sarmento, director-geral da SWD Agency.

A textura dos materiais, as rugosidades ou até a sujidade não ficaram esquecidas e foram acrescentadas aos modelos construídos no computador - "quase como se estivéssemos a pintar um edifício". É a atenção aos pormenores ou às texturasque torna diferente esta recriação virtual, frisa Sarmento.

Cristina Leite diz igualmente que o "pormenor" e o "realismo" são as marcas distintivas da reconstituição virtual do Museu da Cidade. "Além do rigor científico, é muito realista, para que as pessoas sintam que estão quase a olhar para uma imagem fotográfica", refere. "Quando olhamos para os modelos tridimensionais, conseguimos perceber o tipo de pedra usado na construção, a cor dos caixilhos das janelas..."

Na Rua Nova dos Ferros

Imaginemos então que acabámos de aterrar na Rua Nova dos Ferros,também conhecida por Rua Nova dos Mercadores, aproximadamente onde agora é a Rua do Comércio. Fervilha de actividade, ou não fosse das principais artérias comerciais da Lisboa pré-pombalina. Nas suas arcadas e por detrás de prédios de três, quatro, cinco andares, de janelas encarnadas, paredes amarelas e varandas, encontramos uma sucessão de lojas. Vendem-se panos, sedas, especiarias ou livros. Aqui há também serviços ligados ao mundo dos negócios e das finanças. Paralela ao rio, por detrás do Terreiro do Paço, tal como a sua sucessora, a Rua Nova dos Ferros é das mais amplas entre casario apertado. "Era uma artéria já referenciada desde o século XIII e cresceu com os Descobrimentos", diz Cristina Leite.

Também é palco de festas religiosas, como procissões, e castigos públicos, como açoites. À noite, talvez encontremos pregoeiros que percorrem a cidade a lembrar a população dos cuidados a ter com o fogo doméstico. Só nesta rua estão documentados quatro grandes incêndios.

Mesmo junto ao rio, o Terreiro do Paço é a praça do aparato político. É nela que estão o palácio do rei, no complexo do Paço da Ribeira, e edifícios ligados ao comércio marítimo, como a Alfândega. "É palco habitual de grandes acontecimentos públicos, como aclamações reais, touradas, festas e cortejos", lê-se num folheto do Museu da Cidade para a exposição.

A memória do Paço da Ribeira e do seu torreão pode ver-se hoje nos dois torreões construídos na praça depois do sismo. Do complexo também não sobreviveu a Igreja da Patriarcal, com uma vistosa torre sineira. Nem a mítica Ópera do Tejo, inaugurada sete meses antes do terramoto e onde só foram apresentadas duas obras.

A segunda praça mais importante da cidade é o Rossio. Zona de confluência entre o espaço urbano e o rural, nela realizam-se feiras e mercados, autos-de-fé ou touradas. É aqui que estão o Palácio dos Estaus (transformado em Palácio da Inquisição) ou o Convento de São Domingos e o Hospital Real de Todos-os-Santos, que era dos equipamentos públicos mais importantes.

A viagem virtual à capital antes do sismo não vai ficar por aqui. A próxima etapa, diz Cristina Leite, é alargar a reconstituição a outros edifícios e áreas urbanas, como o Aqueduto das Águas Livres. Também vão recriar-se cenas históricas, como uma procissão, uma tourada, um auto-de-fé ou uma ópera. Tudo para trazer de volta a capital de um império, cuja destruição impressionou tanto Voltaire (e o resto da Europa) que o escritor pôs o seu Cândido (1759), acompanhado nas suas andanças pelo mestre Pangloss, a chegar a Lisboa minutos antes de a terra tremer: "Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para impedir a ruína total da cidade do que dar ao povo um auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espectáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande cerimonial, era um meio infalível de impedir a terra de tremer", diz-nos ironicamente. "Apoderaram-se de um biscainho acusado de ter casado com uma comadre e de dois portugueses que tinham comido um frango tirando-lhe a enxúndia [banha]." Pangloss acabou também preso, por ter falado demais, e a ironia continua: "O biscainho e os dois homens que se tinham recusado a comer a enxúndia foram queimados e Pangloss, contrariamente ao uso, foi enforcado. No mesmo dia, a terra tremeu de novo com um ruído espantoso."

Agora já é mais fácil imaginar Voltaire, através do seu Cândido, nas ruas e praças dessa Lisboa.

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