Luna Andermatt: "O que me reserva o futuro?"

Luna Andermatt, 86 anos, inventou-nos um país para a dança, criando uma escola e a Companhia Nacional de Bailado. Quando já não esperava, volta ao palco com Durações de um minuto, uma co-encenação da filha Clara e de Marco Martins.

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Miguel Manso

Devia ter 13 ou 14 anos, já não era criança nenhuma, e olhei para aquelas bailarinas no palco do São Carlos e pensei: "Está aqui a minha vida." Não abria a boca, claro. Em 1940 e tal, pensar nisso era um desastre. Pensava noutras coisas, mas nada me entusiasmava e fui inscrever-me no Conservatório às escondidas. Eu queria era dançar.

Vivia no Convento da Encarnação, em Lisboa, numas celas que tinham sido adaptadas para apartamentos para as viúvas dos condecorados com a Ordem de Aviz, porque o meu pai morreu quando eu era muito miúda.

Não havia muitas raparigas novas, uma ou duas, netas ou filhas dessas viúvas. Isso deu-me um conhecimento enorme sobre a vida, até para, mais tarde, perceber o envelhecimento.

Recebi uma bolsa do Instituto de Alta Cultura e fui para a Royal Ballet, em Londres, onde era muito difícil entrar. Tinha umas pontas muito boas e fortes, sempre fui muito "brava" em pontas. Estive lá um ano e adorei. Falava o inglês fundamental, mas vivia sôfrega de tudo quanto via. Bebia tudo quanto havia e podia, mesmo se a minha vida era escola-casa-cama. Depois das aulas, que começavam às oito da manhã, ainda tinha aulas particulares. Decidi regressar, apesar de ter tido convites, e até ter passado em audições em França, mas a minha mãe estava sozinha. Lá ia ser só mais uma.

Quando tentei inscrever-me como profissional, disseram-me que não existia a categoria de bailarina clássica. Tinha de escolher entre dançarina de circo ou corista. Haver bailarinas havia, mas não como profissão. Cheguei a dançar muitas vezes no São Carlos, e o meu tio, governador militar de Lisboa, que tinha um camarote permanente, via-me ali de soutien, como se fosse um biquíni da praia, e dizia à minha mãe que ela tinha de ser pai e mãe para mim, para não deixar que eu caísse no Parque Mayer.

Eu andei sempre com um pé mais à frente. Devo ter sido a primeira mulher a andar de lambreta em Lisboa. Os polícias sinaleiros mandavam-me avançar, quando me viam passar. Nunca tinham visto nada assim. Uma vez até me espalhei no Marquês de Pombal. Foi a maquilhagem toda pelo chão.

Sabia que a vida de bailarina seria curta. De vez em quando havia espectáculos, mas depois passavam-se meses... Mesmo assim dancei muito por vários teatros do país. A amargura que sentia em muita gente motivou-me e percebi que era importante dedicar-me a criar condições, primeiro, em 1961, com a escola de bailado do São Carlos e, mais tarde, em 1977, com a criação da Companhia Nacional de Bailado (CNB).

Mais valia criar e deixar raízes do que dançar mais três ou quatro anos. Hoje seria tudo fumo. Sacrifiquei esses anos, mas compensou-me para uns 20 ou 30. Fiquei com cortes na garganta de não poder dançar, mas deixei um rasto.

Ballet, assunto de Estado
Eu queria começar uma escola onde as crianças a partir dos seis anos pudessem aprender a dançar. A adesão dos pais foi imediata. Ainda não era a escola que eu imaginava, com outras aulas para além do ballet, mas era um início. Era importante que essa escola existisse, porque, apesar do Conservatório Nacional ter uma formação que não era má, eram só três anos e os corpos das crianças transformam-se muito depressa. Era preciso prepará-las fisicamente. Muitas puderam seguir a carreira e vieram, mais tarde, a integrar a CNB.

Para a criação da CNB foram anos e anos de gabinete em gabinete, de ministro em ministro, de discurso em discurso, de mentalidade em mentalidade.Às vezes parecia que estava a ter uma conversa entre um chinês e um português. Nem me sabiam explicar a recusa. Não percebiam que uma companhia não era aquilo que se via num palco. Era mais. Também não era folclore.

Com o 25 de Abril as coisas tornaram-se mais abertas, não digo mais fáceis. A substituição de quem estava no topo dos gabinetes não foi tão rápida como se imagina. Mas o David Mourão-Ferreira chegou a ministro e o ballet tornou-se assunto de Estado. Convidou-me para o Conselho Nacional de Cultura. Mas o que é que eu ia dizer no meio daquelas pessoas todas muito importantes? Era uma mesa muito longa e eu era ínfima, nem sabia o que havia de dizer para os tocar. Até me engasguei, quando chegou a minha vez de falar. Teve de ser o [pintor Nikias] Skapinakis a terminar a minha frase.

A CNB nasceu em Julho de 1977 e perto do Natal fizemos o primeiro espectáculo no Rivoli, no Porto. O teatro estava cheio, veio o Presidente da República, fomos aplaudidíssimos. O programa incluía o segundo acto do Lago dos Cisnes e uma peça do Rui Coelho, creio. Foram tempos de uma vibração... Quando fui nomeada directora da CNB, achei que era melhor rodear-me de pessoas, em vez de poder falar num ângulo ou noutro. Mas foram várias as curvas no caminho. É verdade que soube ultrapassar as dificuldades, mas não sem angústia. Faz parte da vida.

Passados oito anos desisti e continuei com a minha escola particular. Há alunas que ainda se lembram das minhas aulas. Tenho muito orgulho em lhes ouvir dizer que não aprenderam só a técnica do bailado, mas a expressão do próprio corpo. É preciso ser-se atento a muitas coisas ligadas à pessoa, à espiritualidade, é preciso trabalhar todos os dias, e as coisas não são feitas ao som do relógio.

Fui sempre muito leal e aberta fosse com quem fosse. Até com as minhas filhas. Não acho que fosse mais dura com elas, porque sentia que não lhes podia aconselhar a seguir uma carreira onde pudessem não vingar. Hoje teria sido diferente: a dança exige outras coisas.

Isto agora são rebuçados
A Maria [de Assis] é a mais intelectual. Trabalha na Gulbenkian e tem uma visão mais geral do sector. Quando tinha uns 14 ou 15 anos, queria dançar, disse-lhe para desistir. Tinha um corpo muito bem feitinho, mas roliço, que não correspondia ao perfil da bailarina clássica. Quando a Clara [Andermatt]começou a coreografar, eu tentei acompanhar o que fazia. Ia vendo, encantada e surpreendida, a sua geração a vingar. [A Nova Dança Portuguesa, em finais da década de 1980] foi a primeira grande explosão da dança em Portugal. Todos nós devemos um bocadinho ao passado e gosto de pensar que ajudei a que eles fossem mais aceites e a que a dança pudesse ter um espaço maior em Portugal. Também tenho um rapaz, o Francisco [de Assis], teria sido um grande pianista, mas não seguiu a carreira, é economista.

Hoje penso que foi muito importante ter uma vida cá fora. Mesmo as grandes divas do bailado começam aos 20 e, se chegarem aos 40, é muito bom. A dança tira-nos tudo. Primeiro leva-nos o corpo, depois o resto. Não tenho a memória de todos os passos. Há excertos de peças que nunca se esquecem, sobretudo os que mais nos emocionam. OLes Sylphides ou O Festim da Aranha são, de facto, especiais.

Às vezes, em casa, quando estou sozinha, ainda tento umas coisas. Mas por brincadeira. O corpo já não corresponde. Quem me dera. Mas prefiro não me entristecer a fazer uma coisa que eu sei que está errada. É preciso encarar a realidade. Uma coisa é aceitar e a outra é resignar-se. O aceitar é o mais fácil, porque é uma escolha. Não é um disfarce. Ninguém pense que ao disfarçar-se se consegue iludir. É só pobreza de espírito.

Nunca pensei tornar a pôr os pés no palco e já não me lembro da última vez em que o fiz. Quando o Marco [Martins] me convidou, certifiquei-me de que tinha sido ideia dele e não da Clara. Não vinha para ser protegida. Mães e filhas têm uma relação especial e eu não queria ver a mãezinha em palco. Mas o palco atrai-me e faz-me sentir maior, apesar da minha deficiência na coluna e da perna esquerda traidora. Parece que respiro outro ar.

No dia da estreia, o Ivo Canelas perguntou-me o que sentia quando me olhava ao espelho. Apeteceu-me bater-lhe. Ali em frente ao público... Lá lhe respondi. Temos de aceitar a vida conforme a idade, a mentalidade e a espiritualidade. Temos de aceitar aquilo que somos. Imitar ou disfarçar não chega. Quando não posso fazer mais, não faço. E aceito.

Eu acho que cumpri tudo a que me tinha proposto e que a vida me podia dar. Isto agora são rebuçados. Podia lá imaginar que ainda ia regressar a um palco. Não posso aspirar a mais coisas semelhantes, não vou entrar outra vez em palco, mas quem sabe o que o futuro me reserva.

Artigo escrito na primeira pessoa, a partir de uma entrevista com Luna Andermatt

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