Dia 24 é de Giacometti
No mesmo dia que os sindicatos escolheram para a greve geral, 24 de Novembro, por estranha coincidência assinala-se o vigésimo aniversário da morte de um homem que dedicou parte considerável da sua vida a estudar os sons das lides do trabalho. Não os das máquinas, mas sim os que homens e mulheres iam criando, a partir de uma sabedoria de gerações, para acompanhar a faina dos campos, as colheitas e plantações, os aboios, até a faina dos pescadores. Modas, canções, toadas, cantilenas, danças, que do trabalho passavam à vida de todos os dias, aos ritos sociais, sagrados ou profanos. Esse homem chamava-se Michel Giacometti e, nascido na Córsega, a 8 de Janeiro de 1929, acabou por fazer em Portugal o que Alan Lomax (1915-2002) fez nos Estados Unidos, andando de terra em terra, de gravador na mão (uma volumosa Nagra, que tão útil lhe foi), a registar o que ali se tocava, cantava ou dançava. Só que Lomax era texano e as 15.000 músicas que recolheu estão hoje na Biblioteca do Congresso do seu país, enquanto Giacometti era corso e o seu imenso trabalho de recolha teve de o ir vendendo em vida para sobreviver: à Secretaria de Estado da Cultura e à Câmara de Cascais.
Foi uma tuberculose que o trouxe, em 1959, à procura de melhores ares, trocando nessa altura Paris por Lisboa. Quando chegou pela primeira vez a Bragança, contou ele a Adelino Gomes em 1990, meses antes de morrer, "levava uma capa preta sobre os ombros, uma barba enorme, cabelos compridos". Um amigo contou-lhe mais tarde que a cidade saiu toda à rua e que ele, sem dar por nada, se tornara ali assunto de conversa durante semanas. Uns diziam que era um padre; outros um personagem mítico qualquer; outros ainda que era a alma penada de um conde que, de vez em quando, voltava à terra.
Antes dele, um outro estrangeiro por aqui passado o influenciou. Kurt Schindler, alemão radicado em Nova Iorque (1882-1935), que fez as primeiras recolhas etnomusicais de que há memória em Trás-os-Montes, principalmente romances e laços, e que registou essa experiência no livro Música e Poesia Popular de Espanha e Portugal, editado em Salamanca já depois da sua morte. Giacometti leu esse livro e entusiasmou-se. E o trabalho que daí saiu salvou para o futuro a memória ainda viva das tradições musicais populares portuguesas, que de outro modo se teriam perdido para sempre. Seja no Museu do Trabalho Michel Giacometti, em Setúbal, seja na Casa Verdades de Faria, no Monte Estoril, ou ainda no Museu Nacional de Etnologia, é possível perceber o grau de envolvimento e dedicação a que o seu trabalho chegou. Assim como nos discos dos Arquivos Sonoros Portugueses ou na monumental série televisiva O Povo Que Canta, que o PÚBLICO começa hoje a editar em DVD, em parceria com a Tradison e a RTP.
Como a trágica Blanche DuBois, do Eléctrico Chamado Desejo de Williams e Kazan, podíamos dizer que, sejam quem forem, sempre dependemos da bondade de estranhos. A verdade é que Giacometti, na sua infinita bondade, já era tudo menos um estranho quando morreu em solo português, em 1990. Foi e continuará a ser um de nós.
Jornalista