Afectos e rupturas de um líder revolucionário

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Álvaro Cunhal durante o seu exílio na União Soviética IN

É o outro lado da vida de um ícone revolucionário do século XX. O afastamento da mãe e, depois, da filha. A cumplicidade com o pai. Os amores e as rupturas amorosas de Álvaro Cunhal. O retrato íntimo e pessoal do homem que viveu sempre projectando a imagem de que não o tinha é lançado hoje. Por São José Almeida

"Não te escrevo mais porque não admito que a carta de uma mãe para um filho seja lida por outras pessoas." Esta mensagem de ruptura de relação está inscrita na última carta que Mercedes Barreirinhas Cunhal escreveu, em 1950, para o seu filho, Álvaro Cunhal, preso na Penitenciária de Lisboa desde 1949, e revelada na obra Álvaro Cunhal - Retrato pessoal e íntimo, da autoria do jornalista Adelino Cunha, e hoje lançada pela editora A Esfera dos Livros.

A carta, que permanece na posse de Eugénia Cunhal, irmã de Álvaro, é o último contacto estabelecido com o seu filho por Mercedes Cunhal, que veio a falecer em 1971. Já numa anterior carta, Mercedes assumia: "Álvaro, eu já não tenho forças para te ir ver à prisão".

Era o desgaste de uma mãe que não aceitava a opção de vida do filho. "A minha mãe perdeu dois filhos e ver o Álvaro a viver na clandestinidade, a passar fome, a ser preso e torturado, significava perdê-lo também", diz Eugénia. Prossegue Adelino Cunha: "Mercedes não aceita que uma pessoa com as suas qualidades humanas e intelectuais esteja condenado ao contínuo sofrimento numa prisão interminável" (pp. 265/268).

Mesmo antes de mergulhar na clandestinidade, aos 22 anos, a mãe de Cunhal já se opunha às actividades políticas do filho e a relação fortíssima do ponto de vista afectivo existente entre ambos viveu essa permanente tensão. A caracterização desta relação é um dos aspectos bem conseguidos desta obra, que Adelino Cunha foi construindo ao longo dos últimos três anos e que aposta em trazer à luz do dia os afectos e as rupturas afectivas de um dos principais líderes políticos portugueses e um dos principais dirigentes comunistas a nível mundial no século XX, Álvaro Barreirinhas Cunhal (10/11/1913 -13/06/2005).

Contando com uma inédita colaboração da irmã de Cunhal, Eugénia, da filha do líder comunista, Ana Cunhal, da mãe desta, Isaura Moreira, e de dirigentes comunistas históricos, como Cândida Ventura, Carlos Costa, Jaime Serra, Joaquim Gomes, Margarida Tengarinha e Sofia Ferreira, Adelino Cunha consegue revelar, pela primeira vez, aspectos e facetas da intimidade e da afectividade do homem que insistiu em apenas revelar ao mundo o seu perfil de líder político e de ícone revolucionário.

Testemunhos orais

Álvaro Cunhal - Retrato pessoal e íntimo é um trabalho bem conseguido, que não esquece também o perfil e o percurso político do líder político, se bem que Adelino Cunha tenha a inteligência de não tentar sequer ser exaustivo neste aspecto, em que rivaliza com a obra de investigação que Pacheco Pereira tem publicado sobre Cunhal (Álvaro Cunhal, uma biografia política, da qual já foram publicados três volumes pela Temas & Debates). Mas este Retrato pessoal e íntimo não deixa de fazer também uma incursão narrativa na história política do século XX e não ignora aspectos fulcrais da vida do Partido Comunista Português (PCP). Sempre escrita de uma forma que atrai, de fácil leitura e num registo claramente jornalístico, como assumiu o autor ao P2.

Foi, aliás, a opção por um texto fácil de ler que levou Adelino Cunha à questionável decisão de não incluir notas ao longo do livro, indicando de onde retirou os factos e as afirmações que cita. "É uma decisão só minha, para não complicar a leitura. Com notas o livro ficava muito denso, muito grande. Foi uma opção prática. Admito que prejudica a credibilidade científica por ser um registo jornalístico. Se for reeditado, tentarei pôr notas", argumentou Adelino Cunha ao P2, clarificando também que foi escolharecorrer sobretudo a fontes orais, ou seja, aos depoimentos de dirigentes comunistas ainda vivos, o que o leva a desvalorizar e a quase ignorar a dimensão de figuras como Sérgio Villarigues e Octávio Pato na história do PCP.

É de sublinhar, contudo, que, pelo facto de ter feito uma biografia de Cunhal bastante dependente dos testemunhos orais que recolheu de pessoas próximas do líder histórico, Adelino Cunha não cola a sua visão de Cunhal à imagem idolatrada. E é possível ver exposta a dureza das críticas que Cunhal fez ao seu principal adversário interno, Júlio Fogaça, que com ele rivalizou pela liderança. Bem como ver apontados erros a Cunhal, como quando tentou que fosse atribuída a uma falha organizativa de Militão Ribeiro a prisão de ambos e de Sofia Ferreira no Luso, em 1949.

Havia na prisão uns bichos

Numa obra cuja grande aposta e importância é a revelação de aspectos pessoais e íntimos, é assim possível perceber não só a relação tensa e profunda que ligava Cunhal à mãe, bem como a absoluta cumplicidade que manteve com o seu pai, Avelino Cunhal, que o defendeu sempre em tribunal. E também a fraterna e intensa ligação entre os dois irmãos, Eugénia e Álvaro.

Em 1953, recorda Adelino Cunha, durante o atroz período de 11 anos da sua terceira e última prisão (1949-60), na Penitenciária de Lisboa e em Peniche, Cunhal beneficia de um regime de visitas mais tolerante. "A alteração do regime de visitas permitiu finalmente ver o pai, a irmã, o sobrinho-afilhado. Avelino e Eugénia reencontram-no pela primeira vez sem barreiras de vidro entre ambos. "Já podíamos tocar-lhe as mãos, abraçá-lo, dar-lhe beijinhos. O Álvaro era muito terno e carinhoso. As pessoas quando gostam precisam de se tocar"", conta Eugénia Cunhal. (p. 271)

Uma relação que marcou Eugénia Cunhal, desde que muito nova vive a primeira prisão do irmão, em 1937. "Lembro-me do corredor por onde tínhamos de passar e da rede que havia entre nós. Ele estava do outro lado. Muito pálido, muito magro, com o cabelo todo cortado. Fiquei muito impressionada por ver o meu irmão assim. Ainda hoje tenho o cheiro do Álvaro, a memória daquele cheiro impressiona-me imenso e há coisas que ficam para sempre", revela Eugénia Cunhal a Adelino Cunha. Prossegue o autor: "Recorda-se de a mãe lavar em casa a roupa ensanguentada que levaram do Aljube. "Fiquei muito nervosa quando vi o sangue e a minha mãe tentou tranquilizar-me dizendo que havia na prisão uns bichos que mordiam o meu irmão. O sangue era da pancada que ele levava."" (p. 127)

A dureza do regime prisional e a noção exacta de que a PIDE não o libertaria levam Álvaro Cunhal a tentar negociar, em 1957, com o Governo de Salazar a sua libertação para o exílio no México, que foi, por sua vez, autorizado por Moscovo. "Cunhal negociou com o Estado Novo o regresso à liberdade após ter cumprido oito anos de prisão. A proposta de compromisso implicava o abandono de Portugal e o exílio no México. Os detalhes deste processo foram directamente comunicados ao responsáveis soviéticos para solicitar aprovação e ajuda do movimento comunista internacional. Moscovo aprovou a negociação da libertação condicionada ao exílio", escreve Adelino Cunha. E acrescenta: "A publicação de "escritos clandestinos" posteriores à prisão de 1949 e a ausência de garantias claras quanto ao seu comportamento em liberdade" foram os motivos alegados pelo regime para não o libertar. (p. 332)

Anos de clandestinidade e um regime prisional violento, mais as quebras afectivas mudam Cunhal: "Quando conheci o Álvaro, era uma pessoa de uma enorme modéstia e de respeito no trato com os outros e criticava os que se comportavam de forma altiva dentro do partido (...). Depois da fuga de Peniche, mudou", afirma Cândida Ventura a Adelino Cunha. (p. 417)

A tensão no relacionamento afectivo com a mãe reproduz-se anos depois com a sua filha, Ana Cunhal, que optará por não viver na sombra da imagem de líder e de ícone do pai. "Os que queriam fazer de mim um exemplo acabaram por desistir", diz Ana Cunhal, que cedo deixou Portugal, vivendo na Bélgica, primeiro, e actualmente nos Estados Unidos. (p. 521)

Embora recuse conviver e depender da vida política do pai, tal como a sua avó Mercedes fizera décadas antes, Ana Cunhal tinha uma ligação afectiva profundíssima e uma relação forte de cumplicidade com o pai, que transparece com elegância no livro de Adelino Cunha.

Ana Cunhal, nascida em Dezembro de 1960, só viveu com o pai os primeiros anos da sua vida, em Moscovo (os pais separaram-se em 1965, e Ana e a sua mãe, Isaura Moreira, foram para Bucareste). É, aliás, Isaura Moreira que relata a Cunha: "Deu -lhe sempre muita atenção. (...) Fazia tudo para que ela fosse feliz." (p. 432)

Mas a vida afectiva, pessoal e íntima de Álvaro Cunhal que Adelino Cunha consegue fazer transparecer abrange também as suas relações amorosas, isto é, as suas mulheres. Adelino Cunha humaniza o ícone e o líder revolucionário que gostava de se apresentar ao mundo esculpido na pedra. Afinal, Cunhal era feito de carne e osso e de prosaicos pecados, como todos os homens e todas as mulheres.

As suas relações são conhecidas, pelo menos algumas, mas surgem neste livro na sua quase plenitude. Desde Fernanda Barroso, a última mulher, de quem Adelino Cunha diz: "Ana Cunhal guarda a memória dessa relação como um "tesouro"." (p. 616) Até Isaura Moreira, com quem o líder teve a única filha. E que conheceu depois da fuga de Peniche, ao recolher-se na casa clandestina preparada pelos pais de Isaura.

"Os pais de Isaura Moreira receberam instruções para abandonarem a casa de Runa e foram instalar um novo ponto de apoio no Penedo para receber o líder do PCP. A serra de Sintra devia servir apenas como mais um ponto de apoio para os preparativos do exílio de Cunhal em Moscovo, mas acabou por se transformar no cenário de uma relação amorosa com Isaura Moreira. A paixão, ao fim de uma década de prisão, gerou rapidamente a única filha do líder comunista. Conheceram-se em Março e foram pais em Dezembro. O carisma do chefe supremo estava a solidificar-se, quando conheceu esta jovem idealista de 19 anos." (p. 365)

Cunhal e Isaura foram para Moscovo em 1961, depois de Cunhal ser formalmente eleito secretário-geral do PCP, e aí viveram até 1965. É o período em que Cunhal volta a ter uma vida familiar estável. Em apartamentos próximos ao seu viviam Francisco Miguel, dirigente histórico do PCP que mais fugas de prisão teve e que foi o último prisioneiro a sair do Tarrafal, por um lado, e, por outro, Margarida Tengarinha e a filha Margarida Tengarinha Dias Coelho, que tem mais um ano do que Ana Cunhal - as duas crianças, a "Anita" e a "Guidinha", foram criadas juntas. E diz Isaura Moreira: "Tínhamos uma vida normal. Passeávamos, íamos às compras, aproveitávamos para ir ao teatro, ao ballet e ao cinema." (p. 424)

Quando se separa de Isaura Moreira e esta vai com a filha para Bucareste, onde já está Margarida Tengarinha, Cunhal fica em Moscovo a viver com a irmã mais nova de Isaura, Dorília, e é com ela que viverá nos arredores de Paris, a partir de 1965, até virem para Portugal após o 25 de Abril (p. 499). Uma revelação sobre a vida de Cunhal que pela primeira vez aparece escrita.

Ao P2 Adelino Cunha explicou que não escreve preto no branco que ela foi sua companheira, porque não conseguiu falar com Dorília. "Assim, não posso garantir em absoluto que ficou com a cunhada como companheira, mas ela acompanha-o. Não fui capaz de esclarecer, não consegui falar com ela e Isaura Moreira não foi mais longe. Mas quando ele mandou a mulher e a filha para Bucareste, fica com a cunhada. E vão juntos para Paris. E vivem juntos ainda quando vêm para Portugal. A minha percepção é que sim, que foi companheira. E houve quem mo dissesse. Mas como não consegui falar com a própria, ficou assim implícito."

Adelino Cunha desenvolve também a história do namoro de Cunhal, nos anos 40, com Aura Vieira, com quem tem um romance em Bucelas, onde estava clandestino. Uma história já abordada por Pacheco Pereira, mas que agora é relatada com todos os pormenores. Ela muda-se para Lisboa. Cunhal estava enamorado. Para não perder o contacto com a jovem, que conheceu numa aldeia da zona de Bucelas, onde vivia clandestino com Sérgio Villlarigues, pede-lhe para ela deixar um papel com a morada no escritório do seu pai. Ela assim faz. E quando a PIDE, em 1945, invade o escritório de Avelino Cunhal, encontra a morada e chega à zona de Bucelas como reduto do PCP. A sorte para os clandestinos é que já não havia casas lá e a falha de Cunhal não teve maiores consequências.

E é Cândida Ventura - que com ele namorou em jovem e no início da vida política e da militância de ambos e com quem Cunhal manteve uma amizade forte e cúmplice para sempre, apesar das insanáveis divergências políticas - quem afirma a Adelino Cunha: "O Álvaro foi um homem como outro qualquer na sua vida sexual. Apesar de querer passar pelo homem que não se interessava por essas coisas e que não prevaricava, prevaricou. Prevaricou como as outras pessoas, homens e mulheres, prevaricam." (p. 160)

Ajuda a Dubcek

Cândida Ventura é a primeira mulher a ascender ao secretariado do PCP, em 1944, e nos anos 50 opõe-se às orientações de Júlio Fogaça. Foi acusada pela direcção de "trabalho fracionário" e, pouco depois, estava presa pela PIDE. ""Houve denúncia de alguém da direcção do PCP. Desconfio de quem possa ter sido", afirma a própria Cândida Ventura a Adelino Cunha. (p. 301)

Doente, consegue ser libertada e ir tratar-se a Londres, em 1964. Daí segue para Moscovo. "No ano seguinte, Cunhal escolheu Cândida Ventura para representante do PCP na Checoslováquia", conta Adelino Cunha. "Aceitou, apesar da ruptura interior com o comunismo. Tornou-se agente dupla na Checoslováquia e uma apoiante incondicional da resistência checoslovaca após a invasão dos tanques soviéticos. Abandonou o PCP após o 25 de Abril." (p. 301)

E é na Checoslováquia que Cândida Ventura protagonizará uma história inacreditável em que serve de veículo consciente de Cunhal para proteger Alexander Dubcek. Cândida Ventura conhecia bem a resistência checa e "travara conhecimento com Alexandre Dubcek em 1965, tendo sido apresentada por Michael Sabolcik, membro da direcção do PCC. É uma fase decisiva da relação entre Cunhal e Cândida." E esta conta um encontro entre os dois: "Queria saber da minha boca o que eu achava sobre o que se tinha passado e sobre o que se podia estar a passar." (p. 482)

Cunhal admite então que a contenção da revolta e do clima anti-soviético na Checoslováquia pode passar pela eliminação física de Dubcek. Uma "inconfidência" que Adelino Cunha garante ao P2 que não é um deslize inconsciente de Cunhal, mas sim um aviso que fez, porque quis e porque sabia que Cândida Ventura o iria fazer chegar ao destino.

No livro, Adelino Cunha escreve: "Cândida Ventura encontra-se pouco depois com os líderes da resistência nesta estância termal perto de Praga e revela a inconfidência de Cunhal. O facto de a informação partir de um dirigente internacional com contactos permanentes com os soviéticos justifica que sejam tomadas medidas imediatas. A informação chega até Dubcek, na altura a viver em Bratislava, e este começa a ser protegido por seguranças pessoais em permanência." (p. 483) E Cândida Ventura afirma: "A verdade é que, depois deste aviso de Cunhal, ele começou a andar com segurança pessoal e morreu precisamente numa viagem quando estava somente com o motorista." (p. 482) Mais uma vez foi o afecto de Cunhal que determinou o laço e a mensagem. Desta vez, o afecto entre ele e Cândida Ventura que, apesar das divergências profundas entre ambos, a política não quebrou.

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