Tolstoi em Astapovo
A minha partida vai causar-te sofrimento, e tenho pena que isso aconteça; mas peço-te que compreendas e que acredites que eu tinha de fazer isto. A minha posição nesta casa está a tornar-se - já se tornou - intolerável. Além do mais, não posso continuar a viver no luxo que me tem rodeado, e estou a fazer aquilo que as pessoas da minha idade fazem muitas vezes: a desistir do mundo, para passar os meus últimos dias em solidão e em silêncio." Isto escreveu Leo Tolstoi à mulher, Sofia, na madrugada de 27 para 28 de Outubro de 1910, antes de fugir de casa, aos oitenta e dois anos.
A situação em Iasnaia Poliana, a casa de campo em que Tolstoi nasceu e onde ainda vivia, tinha-se degradado irreversivelmente. Em 1910, ele já não era apenas um escritor, mas um profeta: do anarquismo, do pacifismo, do cristianismo dissidente. Vivia rodeado de devotos, o mais fiel dos quais era um tal Tcherkov, que alguns biógrafos descrevem como uma verdadeira sanguessuga. Tudo estava agora em causa: para quem ficavam os direitos de autor, quem seria contemplado no testamento, quem tinha acesso aos manuscritos. Tolstoi era de certo modo um refém do seu séquito. Sofia reagiu mal a este estado de coisas. Estava casada com Leo há quarenta e oito anos, tinha transcrito todos os textos do marido, gerido a quinta e as finanças, tinha sido amante, enfermeira e mãe de treze filhos. E agora era tratada como uma inconveniente e uma histérica. O ambiente doméstico estava inquinado pela acrimónia e a discussão.
Mas Tolstoi também sabia que se tinha tornado um hipócrita. Pregava o desinteresse de si, a pobreza, a paz, mas vivia numa mansão aristocrática, rodeado de indefectíveis acríticos, num ambiente mesquinho e colérico. Decidiu então fugir. Fugir dos outros e de si mesmo. Quando acordou nessa madrugada de 28, às três da manhã, percebeu que Sofia estava a dormir, levantou-se, fez a mala, escreveu uma carta de despedida e foi chamar o seu médico e a filha mais nova. Abandonaram Iasnaia Poliana de carruagem às seis da manhã. Sofia, estranhamente, só acordaria às 11, há quem diga que lhe tinham posto um sedativo no chá.
O grupo fugitivo chega à estação de comboios de Chtchokino. Tolstoi e o médico compram bilhetes, em terceira classe, para Kozielsk, e a filha regressa a casa. Na viagem, os camponeses reconhecem Tolstoi, que aproveita para os catequizar e ser adulado. Na ficção de Tolstoi, os comboios são em geral símbolos lúgubres; mas o médico nota que desta vez o escritor vibra com o sentimento de liberdade oferecido pelo comboio. A certa altura, Tolstoi levanta-se e dirige-se à plataforma traseira da carruagem, onde fica a sentir o vento que passa rápido entre as árvores, a neve, a noite. Décadas mais tarde, um poeta escreverá um poema sobre essa fuga que diz: "Apenas restava de seu a Glória / Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas." E o vento num comboio em andamento.
Tolstoi pernoita num mosteiro e depois visita a irmã no Convento de Chamardino. É uma despedida confessional e cheia de lágrimas. Volta a apanhar um comboio, e não se sabe bem qual o seu destino final. Talvez a Roménia, onde foi soldado. Ou o Cáucaso, onde foi jovem. Tolstoi queria fugir da velhice em direcção à infância, em direcção ao sul. Mas entretanto todas as hipóteses de fuga discreta terminaram. O escritor é procurado por polícias e repórteres, pela mulher e os filhos. Sofia entrou em colapso, ameaçou matar-se, não fala, não come. O marido escreve-lhe e pede que ela aceite a decisão dele, que perceba que a vida conjugal se tornou intolerável, que voltar a viver com ela seria "renunciar à vida".
Os últimos anos da vida de Tolstoi, e a sua fuga, estão relatados em várias fontes. O romancista mantinha um diário, que escreveu até ao fim, Sofia também, e os filhos, os amigos, alguns empregados, toda a gente escrevia os seus diários. Nos últimos tempos, aliás, o ambiente em Iasnaia Poliana estava muito envenenado pela multiplicação de registos, sendo que muitos dos diaristas se liam uns aos outros, com consentimento mútuo, numa "política de verdade" que tornou as relações pessoais insustentáveis. Sofia, que leu tudo o que Tolstoi escreveu, confessou uma vez que nunca o conheceu.
Tolstoi está agora a caminho do sul, e já não é uma fuga, é uma espécie de volta de honra, de último desfile. Mas a sua saúde é frágil, contrai uma pneumonia, é preciso parar o comboio para os cuidados médicos adequados. Param numa estaçãozinha, Astapovo, e descem. As pessoas descobrem a cabeça ao ver o grande sábio passar por elas, amparado, e depois concentram-se do lado de fora da casa do chefe da estação, que acolhe Tolstoi. O médico injecta morfina ao paciente, para atenuar as dores. Tolstoi começa a delirar. "É preciso fugir", insiste, deitado numa cama de onde não mais se levanta.
Depois da fuga impossível, é o velório em vida. Tolstoi agoniza seis dias em Astapovo. Há muitas imagens dessa semana final, desenhos nos jornais, fotografias, e mesmo um filme. Pathé, avisado do caso, tratou de enviar um operador de câmara à estação, e graças a ele temos aquelas inquietantes imagens de Sofia, que chegou entretanto, e cuja entrada na casa é barrada pela comitiva. Ela anda de um lado para o outro, negoceia com a filha, espreita pela janela. Só a deixam entrar mesmo no fim, e Sofia está com a cabeça deitada no peito de Leo quando ele morre, na madrugada de 7 de Novembro de 1910.
Em vez de "desistir do mundo", Tolstoi viveu intensamente o mundo nos seus últimos dias, e não "em solidão e em silêncio", antes numa espécie de entusiasmo, angústia e agitação juvenis. Quem não quis alguma vez fugir de casa? O poeta que citei acima disse também que Tolstoi esperou até aos 82 anos para cumprir um sonho de infância. Uma fuga sem fim. Uma fuga ao encontro do seu fim.