Século XVI, aqui vamos nós

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O Porto quinhentista é já aqui, ao virar da esquina. Inês Nadais (texto) e Paulo Pimenta (fotos) seguiram o judeu Imanuel Aboab e o arménio Manoel Balazão em direcção a essa aldeia global desconhecida. Suaram mais do que os participantes da meia-maratona, mas ganharam este prémio de consolação: uma viagem no tempo

Passaram-se mais de 500 anos e ainda há quem se lembre do arménio Manoel Balazão na Rua de São Pedro de Miragaia:

- Senhora, boa tarde, lembra de Manoel Balazão?

- Ui, já não o via há pelo menos 500 anos!

Também já não víamos o Porto como o estamos a ver agora (uma grande cidade da diáspora arménia, com o seu concorrido forno da Rua do Cidral, e uma grande cidade do judaísmo sefardita, com as suas sinagogas clandestinas) há pelo menos 500 anos. Enquanto comunidade organizada, os arménios dissiparam-se praticamente sem deixar rasto (a não ser na toponímia, mas quantos dedos no ar haverá quando se pergunta se alguém sabe onde é que a Rua da Arménia foi buscar o nome?) e os judeus tornaram-se primeiro cristãos-novos, depois cristãos, ponto, portuenses iguais aos outros, privando a cidade das alegrias da mistura, digamos, babilónica que terá chegado a caracterizá-la.

É uma manhã de domingo como as outras, só que há 500 anos, e ao lado do Manoel Balazão que as senhoras da Rua de São Pedro de Miragaia reconheceriam em qualquer parte do mundo pelas botas de biqueira revirada caminha, curvado, o enorme Imanuel Aboab, judeu que depois de nos virar costas há-de emigrar para Itália, ver as ilhas gregas e morrer em Veneza (e que nos deixará em herança um valioso tratado, a Nomologia, publicado postumamente pelos seus descendentes em Amesterdão). Juntos, Balazão e Aboab vão à nossa frente nesta viagem no tempo que reconstitui, em carne e osso, as idas e vindas de judeus e arménios no Porto dos séculos XV e XVI. Foi há todo um mundo atrás e é hoje outra vez: enquanto os ouvimos, o gigantesco volume granítico da Alfândega perde espessura até se tornar transparente, e então deixamos de ver a Alfândega, passamos a ver a praia de Miragaia e assistimos à chegada do barco que traz a família de Manoel Balazão, em fuga perante os avanços do Império Otomano (tal como depois passaremos a ver a sinagoga da Rua de São Miguel na casa onde até agora víamos um lar de idosos: a mesma sinagoga que Imanuel Aboab terá frequentado com o avô e que terá sido fundada pelos judeus castelhanos expulsos em 1492 por ordem dos Reis Católicos).

Vitória, vitória, acabou-se essa história? Não exactamente: o Visionarium volta agora a contá-la todos os últimos domingos do mês, numa das quatro caminhadas temáticas organizadas em parceria com a Material e com a companhia de teatro Radar 360º (ver ficha). Mas vamos depressa de mais. O século XVI começa agora, junto ao grande néon cor-de-laranja que anuncia "Francesinhas".

- Francas pequeninas? Ah, tabernas! Manoel Balazão gostar disso.

Coabitação e segregação

Estamos na Rua da Arménia, o exacto epicentro da comunidade arménia que chegou ao Porto em 1453, vinda de Nicomédia, e ali pôde finalmente fixar-se, depois de negociar com o bispo uma autorização de residência em troca das relíquias de São Pantaleão (que não será exactamente o Santo Graal, mas é outra das recompensas desta caminhada, e mais não dizemos). Manoel Balazão estranha o ambiente, agora que por ali, além de francesinhas, há cabines telefónicas e outras "coisas modernas", mas eis que aparece Imanuel Aboab, um seu contemporâneo.

- Meu pai tinha negócios com teu avô.

E o passeio começa, escadas acima, junto à muralha fernandina que delimitava a cidade, protegendo-a "dos diabos do Norte"

- Piratas normandos

e de outros eventuais invasores.

A subida é íngreme, mas Imanuel Aboab tem pressa: da Igreja de São João Novo para cima é território judeu, diz Balazão, precisando que foi por ali, na judiaria do Olival, que Aboab nasceu e foi criado pelo avô. Há gente à janela, e vem aí confirmação:

- É natural que ele nascesse aqui, porque nesta zona havia muitos "judaicos".

Até D. Manuel I os expulsar, pelo menos: quando Aboab nasce, o judaísmo já é um culto clandestino, e há muito que os grandes da comunidade, como Uriel Acosta, saíram do Olival. Isto que começa por ser uma história de coabitação transforma-se numa história de segregação, mas não por muito tempo. Descemos ao Jardim das Virtudes, ouvimos o rio Frio que ainda corre debaixo dos paralelos da cidade moderna

- Aboab, eu lembrar: mãe lavar roupa aqui

e daí vamos pela Rua dos Armazéns e pela Viela de Sant"Ana até à Rua Monte dos Judeus, onde o Porto do século XVI é o de sempre:

- O senhor come um pãozinho se eu lhe atirar daqui?

- Quer um bocadinho de regueifa?

Era aqui a segunda judiaria da cidade: tinha a sua própria sinagoga, o seu próprio cemitério. Hoje, no lugar onde os judeus enterravam os seus mortos, há um palácio com duas sereias à porta e uma freira com a chave de casa no bolso disposta a explicar ao grupo, Imanuel Aboab e Manoel Balazão incluídos, como vivem as religiosas da Casa Madalena Canossa e como em tempos um dos Portocarreros desta casa, suspeito de simpatias napoleónicas, foi arrastado até Miragaia e atirado ao rio.

Será muito depois do nosso tempo, no século XIX.

Kebabs com vinho verde

No nosso tempo, Imanuel Aboab e Manoel Balazão lutam com espadas de madeira nas Escadas do Monte dos Judeus, entre a Rua do Cidral de Cima e a Rua do Cidral de Baixo.

- Tu fazias de cristão, eu de turco

- Mas Arménia ganhar sempre

Se no século XXI de toda a tecnologia aquelas botas de biqueira revirada ainda são uma vantagem competitiva, imaginamos o brilharete que terão feito no século XVI.

- Ó Balazão, se dás um pontapé no rabo a alguém...

Mas isso ficará para outro dia. Já estamos outra vez na praia de Miragaia, futura Alfândega do Porto, e os barcos continuam a chegar. Um dia destes trarão turcos, e como já não haverá fronteiras, nem guerras religiosas (coisa medieval, que no futuro parecerá ficção científica), somos gajos para encontrar o judeu Imanuel Aboab e o cristão arménio Manoel Balazão a comer kebabs no sr. Ahmed, perto de Cedofeita.

E a brindar com Muralhas.

FICHA

O percurso teatralizado Arménios e Judeus na Miragaia dos Séculos XV e XVI é um dos três agora lançados pelo Visionarium, numa parceria com a Material e com a companhia de teatro Radar 360º. Tal como as outras opções - O Porto barroco de Nicolau Nasoni e Cenas da vida do Porto por Júlio Dinis -, o preço para um participante individual é de 15 euros e as marcações devem ser feitas pelo telefone 256370634 ou através do endereço de email info.visionarium@aeportugal.com. Os percursos duram duas a três horas e efectuam-se aos domingos, desde que se verifique a inscrição de um mínimo de 15 participantes. A médio prazo deverão surgir novos percursos nestes três eixos: Porto História, Porto Arquitectura e Porto Literatura.

Passaram-se mais de 500 anos e ainda há quem se lembre do arménio Manoel Balazão na Rua de São Pedro de Miragaia:

- Senhora, boa tarde, lembra de Manoel Balazão?

- Ui, já não o via há pelo menos 500 anos!

Também já não víamos o Porto como o estamos a ver agora (uma grande cidade da diáspora arménia, com o seu concorrido forno da Rua do Cidral, e uma grande cidade do judaísmo sefardita, com as suas sinagogas clandestinas) há pelo menos 500 anos. Enquanto comunidade organizada, os arménios dissiparam-se praticamente sem deixar rasto (a não ser na toponímia, mas quantos dedos no ar haverá quando se pergunta se alguém sabe onde é que a Rua da Arménia foi buscar o nome?) e os judeus tornaram-se primeiro cristãos-novos, depois cristãos, ponto, portuenses iguais aos outros, privando a cidade das alegrias da mistura, digamos, babilónica que terá chegado a caracterizá-la.

É uma manhã de domingo como as outras, só que há 500 anos, e ao lado do Manoel Balazão que as senhoras da Rua de São Pedro de Miragaia reconheceriam em qualquer parte do mundo pelas botas de biqueira revirada caminha, curvado, o enorme Imanuel Aboab, judeu que depois de nos virar costas há-de emigrar para Itália, ver as ilhas gregas e morrer em Veneza (e que nos deixará em herança um valioso tratado, a Nomologia, publicado postumamente pelos seus descendentes em Amesterdão). Juntos, Balazão e Aboab vão à nossa frente nesta viagem no tempo que reconstitui, em carne e osso, as idas e vindas de judeus e arménios no Porto dos séculos XV e XVI. Foi há todo um mundo atrás e é hoje outra vez: enquanto os ouvimos, o gigantesco volume granítico da Alfândega perde espessura até se tornar transparente, e então deixamos de ver a Alfândega, passamos a ver a praia de Miragaia e assistimos à chegada do barco que traz a família de Manoel Balazão, em fuga perante os avanços do Império Otomano (tal como depois passaremos a ver a sinagoga da Rua de São Miguel na casa onde até agora víamos um lar de idosos: a mesma sinagoga que Imanuel Aboab terá frequentado com o avô e que terá sido fundada pelos judeus castelhanos expulsos em 1492 por ordem dos Reis Católicos).

Vitória, vitória, acabou-se essa história? Não exactamente: o Visionarium volta agora a contá-la todos os últimos domingos do mês, numa das quatro caminhadas temáticas organizadas em parceria com a Material e com a companhia de teatro Radar 360º (ver ficha). Mas vamos depressa de mais. O século XVI começa agora, junto ao grande néon cor-de-laranja que anuncia "Francesinhas".

- Francas pequeninas? Ah, tabernas! Manoel Balazão gostar disso.

Coabitação e segregação

Estamos na Rua da Arménia, o exacto epicentro da comunidade arménia que chegou ao Porto em 1453, vinda de Nicomédia, e ali pôde finalmente fixar-se, depois de negociar com o bispo uma autorização de residência em troca das relíquias de São Pantaleão (que não será exactamente o Santo Graal, mas é outra das recompensas desta caminhada, e mais não dizemos). Manoel Balazão estranha o ambiente, agora que por ali, além de francesinhas, há cabines telefónicas e outras ? coisas modernas", mas eis que aparece Imanuel Aboab, um seu contemporâneo.

- Meu pai tinha negócios com teu avô.

E o passeio começa, escadas acima, junto à muralha fernandina que delimitava a cidade, protegendo-a "dos diabos do Norte"

- Piratas normandos

e de outros eventuais invasores.

A subida é íngreme, mas Imanuel Aboab tem pressa: da Igreja de São João Novo para cima é território judeu, diz Balazão, precisando que foi por ali, na judiaria do Olival, que Aboab nasceu e foi criado pelo avô. Há gente à janela, e vem aí confirmação:

- É natural que ele nascesse aqui, porque nesta zona havia muitos "judaicos".

Até D. Manuel I os expulsar, pelo menos: quando Aboab nasce, o judaísmo já é um culto clandestino, e há muito que os grandes da comunidade, como Uriel Acosta, saíram do Olival. Isto que começa por ser uma história de coabitação transforma-se numa história de segregação, mas não por muito tempo. Descemos ao Jardim das Virtudes, ouvimos o rio Frio que ainda corre debaixo dos paralelos da cidade moderna

- Aboab, eu lembrar: mãe lavar roupa aqui

e daí vamos pela Rua dos Armazéns e pela Viela de Sant"Ana até à Rua Monte dos Judeus, onde o Porto do século XVI é o de sempre:

- O senhor come um pãozinho se eu lhe atirar daqui?

- Quer um bocadinho de regueifa?

Era aqui a segunda judiaria da cidade: tinha a sua própria sinagoga, o seu próprio cemitério. Hoje, no lugar onde os judeus enterravam os seus mortos, há um palácio com duas sereias à porta e uma freira com a chave de casa no bolso disposta a explicar ao grupo, Imanuel Aboab e Manoel Balazão incluídos, como vivem as religiosas da Casa Madalena Canossa e como em tempos um dos Portocarreros desta casa, suspeito de simpatias napoleónicas, foi arrastado até Miragaia e atirado ao rio.

Será muito depois do nosso tempo, no século XIX.

Kebabs com vinho verde

No nosso tempo, Imanuel Aboab e Manoel Balazão lutam com espadas de madeira nas Escadas do Monte dos Judeus, entre a Rua do Cidral de Cima e a Rua do Cidral de Baixo.

- Tu fazias de cristão, eu de turco

- Mas Arménia ganhar sempre

Se no século XXI de toda a tecnologia aquelas botas de biqueira revirada ainda são uma vantagem competitiva, imaginamos o brilharete que terão feito no século XVI.

- Ó Balazão, se dás um pontapé no rabo a alguém...

Mas isso ficará para outro dia. Já estamos outra vez na praia de Miragaia, futura Alfândega do Porto, e os barcos continuam a chegar. Um dia destes trarão turcos, e como já não haverá fronteiras, nem guerras religiosas (coisa medieval, que no futuro parecerá ficção científica), somos gajos para encontrar o judeu Imanuel Aboab e o cristão arménio Manoel Balazão a comer kebabs no sr. Ahmed, perto de Cedofeita.

E a brindar com Muralhas.Os percursos

O percurso teatralizado Arménios e Judeus na Miragaia dos Séculos XV e XVI é um dos três agora lançados pelo Visionarium, numa parceria com a Material e com a companhia de teatro Radar 360º. Tal como as outras opções - O Porto barroco de Nicolau Nasoni e Cenas da vida do Porto por Júlio Dinis -, o preço para um participante individual é de 15 euros e as marcações devem ser feitas pelo telefone 256370634 ou através do endereço de email info.visionarium@aeportugal.com. Os percursos duram duas a três horas e efectuam-se aos domingos, desde que se verifique a inscrição de um mínimo de 15 participantes. A médio prazo deverão surgir novos percursos nestes três eixos: Porto História, Porto Arquitectura e Porto Literatura. O percurso Arménios e Judeus na Miragaia dos Séculos XV e XVI repete no próximo dia 28.

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