Luís Miguel Cintra: “Há uma agressão concreta às companhias”

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Cintra reage aos cortes anunciados e diz-se preocupado com os efeitos na programação Rui Gaudêncio
Estes cortes preocupam-no?

Preocupam-me muitíssimo. Para nós é um rombo gigantesco. Manter esta casa sai muito caro e resta muito pouco dinheiro para a produção. Só há duas soluções: ou somos ajudados pelos processos de co-produção, com entidades que possam pagar grande parte dos espectáculos, ou entramos no mercado e fabricamos produtos que se possam vender. E isso é muito difícil. O que é mais fácil de comprar, pelo menos na nossa terra, não são o género de coisas que fazemos, porque estas constituem um grande risco económico para as entidades. Ou, então, fazemos espectáculos de muito menor dimensão e que, de certa maneira, reduzem a expectativa em relação ao nosso trabalho. Isso é perverso, porque se pode chegar a uma situação onde nos perguntam: “porque vos estamos a subsidiar se o que produzem é só isto?”

É uma situação muito complicada da qual não sei como nos vamos conseguir safar.

Não é só grave para o Teatro da Cornucópia. É grave para muitas outras estruturas, porque é tudo proporcional. O problema será menor em grupos menores mas, quantitativamente, quando trabalham com orçamentos menores, acaba por ser tão pernicioso como o resto. A Ministra da Cultura pediu, no dia em que anunciou estas medidas, a cumplicidade dos agentes culturais, mas só podemos aceitar de bom grado estes cortes, se concordarmos com uma política que nos leve a aceitar sermos sacrificados em nome de qualquer coisa. Há uma agressão concreta à actividade das companhias subsidiadas, mas em nome de quê? Espero que a situação possa vir a ser revista, mas para já é uma agressão à actividade, e mais nada.

Uma agressão desatenta àquelas que são as responsabilidades de cada espaço?

Pois é, porque isso dá muito trabalho e exige um certo tempo e cuidado. Há pouco tempo veio uma notícia de um sector do Ministério onde se dizia que este queria ajudar a publicitar o trabalho subsidiado, fabricando um livro como fotografias e dados da companhia. Faziam um questionário e queriam que fizéssemos um currículo da companhia, tudo dados que existem nos relatórios do MC. Eu perguntei-me: mas então aqueles funcionários fazem o quê? Nada, só pedem que a gente faça mais um trabalho. Depois veio nova notícia, onde já não era um livro, porque não havia dinheiro, mas material para fazer um site. Mas o nosso site tem muito mais material sobre a Cornucópia do que aquele que vai ficar no site do Ministério. Portanto, o que é que vamos fazer, se nem sequer têm capacidade de ir buscar a informação ao nosso site? O que estamos é a justificar o salário que é dado aquelas pessoas que, talvez façam outras coisas para além disto, mas isto [que fazem] não é nada. É sintomático de como nos estão a exigir ainda mais trabalho a nós, para dar a aparência de que trabalham no Ministério.

Apesar de serem, desde há muito tempo, a companhia mais apoiada, disse sempre que queria a concurso para estar numa posição de igualdade com as outras companhias. Porquê?

Os concursos são muitos discutíveis, sobretudo, na altura em que vivemos. Não tenho a certeza de que seja a melhor forma de solucionar a questão, no momento e na situação em que o país está. Muitas vezes penso que seria preferível que o MC assumisse uma escolha, em vez de se estar a escudar atrás de júris que, no fundo, tem muita dificuldade me formar. Deve ser uma dificuldade imensa porque, as pessoas que estão envolvidas nas candidaturas não o podem ser, e as pessoas informadas e com capacidade de trabalho, análise e que conheçam os dossiers das companhias, são muito difíceis [de encontrar]. [Mesmo] os critérios são tão duvidosos quanto os do próprio ministro. Prefiro que seja o MC a dar a cara e a tomar decisões, sendo julgado pela sua acção cultural, [podendo] até ser muito apreciado ou recusado. E talvez aí as pessoas comecem a perceber como devem votar. [Se] eu estou a votar no Partido Socialista espero que ele corresponda à sua “marca”. Posso perceber que, afinal, o partido Socialista não era aquilo que eu pensava e, talvez da próxima vez, já não vote nele.

Passados mais de 30 anos sobre a criação da companhia acha que as condições já deviam ser outras?

Completamente. Já devia ser mais do que reconhecido que prestamos mais do que um serviço, e que é útil ao público que existamos. Mesmo na própria classe este ponto de vista tem sido muito esquecido. As pessoas dentro do próprio teatro não ajudam a colocar a questão nos termos certos, fazendo crer na opinião pública que os subsídios são formas de garantir a subsistência das pessoas que estão metidas no teatro. Os apoios do MC não têm que ter esse critério, mas critérios de natureza cultural e de utilidade pública.

O que devia acontecer, do ponto de vista do MC, era a definição do que é que este considera útil para o usufruto do próprio cidadão. E aí, julgo que será consensual, mas teria de haver alguém que o assumisse, que o trabalho que temos feito, e a existência do Teatro da Cornucópia, é útil para a vida cultural do país.

Se estão a medir, como já têm aparecido algumas pessoas com responsabilidade política, o número de cidadãos tocado pela cultura, vão chegar à conclusão que a melhor coisa de utilidade cultural é, provavelmente, a música rock, os jogos de futebol e outras coisas do género, porque são as que têm mais público. Ora, não pode ser.

Tem que haver a noção de que a actividade cultural é uma coisa que demora muito tempo a ter efeito e que, de certa maneira é útil tal como a educação é útil.

Eu tenho noção de que a continuidade da Cornucópia influenciou o teatro português e a maneira de pensar de muitas pessoas, mesmo que não tenham visto os espectáculos. A influência funciona indirectamente. Mas para isso acontecer é preciso haver uma visão, e um desejo político verdadeiro, de que os cidadãos sejam pessoas de maior cultura, com maior capacidade de decisão, com maior sentido crítico, maior criatividade, etc. Isto são tudo critérios, este é um bem que muito poucos cidadãos reconhecem. O sistema está todo perverso. O que as pessoas pensam é em ter comida para comer, um automóvel bom, não terem que viver à custa de dívidas e outras coisas do género. Quando se vive numa sociedade em que muitas das coisas imediatas e essenciais escasseiam, é muito difícil fazer crer que as pessoas têm que ser mais inteligentes, têm que ter mais imaginação, mais prazer na vida, mais alegria, e por aí adiante.

Daí o perigo do argumento dos direitos adquiridos?

É por ser contra essa lógica que, justamente, gostaria de ser posto em situação de igualdade com os outros. Sou contra os direitos adquiridos porque esses conduzem à inércia. É a capacidade da actividade que mostra o que as pessoas se propõem fazer. Há pessoas que já deram tantas provas, e continuam a fazê-lo, que de certa maneira, podia-se incentivar isso.

Tenho tentado dizer isto a tantos ministros e eles não entendem: quem é que existe em actividade que possa ser útil ao fomento da criatividade púbica ou da cultura de toda a sociedade de que somos responsáveis? Deviam escolher e dar o máximo de condições a essas estruturas, para que o público usufruísse o máximo possível disso.

A situação é sempre posta ao contrário. São sempre as pessoas [os agentes culturais] a ir pedir. Nós não devíamos pedir. Eles [o MC] é que nos deviam pedir a nós. Com certeza que [eles] se dão conta disso quando, de repente, têm que mudar os directores dos teatros nacionais e começam a ter que escolher quem é lá querem. Nessa altura eles usam o critério da escolha, já têm esse ponto de vista. Porque é que não o têm em relação a toda a actividade teatral? Há qualquer coisa aqui que não faz sentido.

No vosso caso o que é que estes cortes representam?

Não tive tempo para ver exactamente o que vai acontecer, porque estamos em estreia, as também porque não quero dar como dado assente que vai ser mesmo assim porque nem quero acreditar nisso. Imediatamente a seguir há uma co-produção com o TNDMII [“A Catatua Verde”, de Arthur Schnitzler, estreia a 17 de Fevereiro 2011] que, em princípio, se confirma. A programação daí para a frente, confirmando-se os cortes, terá que ser revista, porque sobra muito pouco dinheiro para produção. Este espectáculo [“Fim de Citação”, estreado ontem] funcionava como prólogo dessa programação. E, o que estava previsto era, de seguida, fazermos “A Varanda”, do Genet [estreia a 9 de Junho 2011], mas esta está ameaçada porque tem muita gente. Pensámos que estávamos amparados com “A Catatua Verde”, porque [eram, em parte] os gastos de produção do Nacional. Isso permitia fazermos a “Varanda”, sozinhos. Mas agora vai ser mais complicado porque o resto do dinheiro [que sobra] não existe. Já para não falar [no arranque da temporada] do Outono. No fundo temos que repensar tudo e medir até que ponto encontramos outras fontes de financiamento que possam completar e nos permitam fazer uma programação mais ambiciosa ou então reduzir completamente os objectivos.

Pondo em causa a razão pela qual tiveram o apoio que tiveram, que é o reconhecimento dessa qualidade.

A própria Direcção-Geral das Artes reconhece o problema. Na carta que nos mandam avisam: “atenção não baixem a fasquia”. Mas como é que podem querer que o façamos se existe menos dinheiro? É muito difícil. Mesmo a estrutura na qual funcionamos é muito precária, com poucas pessoas. Não tem comparação o nível de trabalho de secretaria que é exigido com o número de funcionários que existem para o fazer. Cada vez que vem mais um inquérito eu fico a pensar quem é que vai responder. Sobretudo se queremos fazer com um determinado critério, que é pessoal e pensado, mesmo nas mais ínfimas tarefas. Numa companhia como a nossa não há distinção entre o que é uma tarefa de um inteligente e de um burro. Todas são inteligentes. Se trata de se escolher fotografias, é uma tarefa de grande responsabilidade, não são umas fotografias quaisquer. Se se trata de redigir um press release a sua redacção é uma coisa muito importante. Não pode ser uma pessoa com formação pré-formatada para servir de relações públicas em qualquer sítio que pode fazer um press release da Cornucópia, porque se trata da relação com o público. Temos que fazer muitas coisas e com muito poucos funcionários que, para fazerem o que é necessário, teriam que ter uma formação muito especial. E isto ninguém entende.

Leu o comunicado da Plataforma das Artes?

Li. Basicamente estou de acordo com tudo aquilo que lá está. Mas é preciso ir mais longe. É demasiado reactivo e muito pouco afirmativo do que é que se quer verdadeiramente. O que deveria haver – mas é muito difícil quando é tanta gente haver pontos de vista comuns –, era uma espécie de projecto, de desejo, de nova relação do Estado com o teatro e as artes do espectáculo. Quem conseguiu isso foram os cineastas. No nosso caso ainda não o conseguimos e era muito importante consegui-lo, porque senão a atitude será sempre a de protestar contra umas coisas que “eles” fazem. Creio que devia ser: “nós queremos isto”. Mas isso é muito difícil fazer, até porque as condições nas quais as pessoas trabalham as obrigam a uma vida muito difícil. Eu tenho muito pouco tempo para ir a reuniões e estar a discutir uma tarde inteira. Não posso. É tudo muito complicado.

Vão fazer greve?

Eu sou patrão, é muito esquisito eu fazer greve. O que nós vamos fazer, com certeza, é, por causa da greve não fazer espectáculo. Estamos [a direcção da companhia] a dar a possibilidade às outras pessoas [com contrato com a Cornucópia] que façam.

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