O “site” de que o Pentágono tem medo
O australiano Julian Assange não é um espião, mas não tem um endereço fixo. Nem sequer uma zona horária determinada, como dizia o jornal australiano “Sydney Morning Herald”, numa tentativa de lhe traçar o perfil feita em Maio. O que ele faz é ser a alma – e o editor – de um “site” que acolhe documentos que os governos queiram manter secretos, e que os cidadãos devam conhecer. E poderá ter recebido documentos secretos de um soldado americano que tem o potencial de ser um dos maiores informadores internos de sempre.
Fugas de informação (“leaks”, em inglês), provenientes seja de onde for, garantindo o anonimato das fontes, é o que garante o “site” Wikileaks, que já foi definido como “uma revolta mediática”. Nele trabalham Assange e um núcleo de colabores próximos com uma rede de cúmplices defensores da liberdade de expressão a toda a prova espalhada pelo mundo – cientistas, “hackers”, activistas e académicos, matemáticos, especialistas em tecnologia.
A rede criada pelo Wikileaks tem sido imune tanto a processos judiciais que obriguem a que seja retirado material colocado “on-line”, como a ataques informáticos, usando os túneis virtuais do projecto Tor, que permitem a grupos e indivíduos comunicar na Internet ao abrigo das análises de tráfego que denunciam quem fala com quem numa rede pública. Sem sede física, os servidores usados pelo Wikileaks estão localizados na Suécia, país onde a identidade das fontes jornalísticas é protegida por lei, e num punhado de outros países. “Se um governo ou empresa quisesse retirar conteúdos do Wikileaks, teria praticamente de desmantelar a própria Internet”, disse Assange num artigo publicado a 7 de Junho na revista “New Yorker.”
A força motriz e o rosto do “site” que aloja tanta denúncia é o ex-hacker de Melbourne que se chamaria Mendax (ele não confirma nem desmente), de aspecto literalmente cinzento (os olhos são cinzentos, diz Raffi Khatchandourian, no perfil na “New Yorker”, em que se fica a saber mais do que alguma vez alguém conseguiu saber sobre este “homem internacional de mistério”, de quem não se conhece sequer qual a idade certa.
Assange, que se fala tranquilamente como um académico mas se entrega aos seus projectos com abandono – há relatos de que se esquece completamente de comer, dormir, e quanto mais mudar de roupa e fazer a barba... Tem seguidores, pessoas que se empenham nos seus princípios de exigir transparência aos governos e outras entidades com importância para a vida pública – “abrimos governos”, é assim que se descreve o Wikileaks na conta em seu nome no Twitter. E, necessariamente, detractores, que acusam a “revolta mediática” que desencadeou de se estar a transformar em “vandalismo da informação”.
Efeitos colateraisFoi à teia tecida por este subversivo da Internet que foram parar as imagens recolhidas por um helicóptero Apache norte-americano em Bagdad em 2007 que mostravam
os soldados a abaterem 12 pessoas – civis – a sangue-frio, incluindo dois jornalistas da Reuters, confundindo a teleobjectiva de um repórter de imagem com um lançador de granadas.
O vídeo foi divulgado em Abril, num “site” criado para o efeito (collateralmurder.com), em duas versões (uma mais longa) e com trabalho de reportagem em Bagdad, em que repórteres da televisão islandesa – o país onde o vídeo foi montado, esta Primavera – foram enviados ao Iraque para procurar familiares das pessoas mortas pelo helicóptero americano.
Ouve-se a conversa crua, as piadas dos soldados, dessensibilizados como se fosse um jogo de vídeo, apenas mais um “shoot’em’up”. “Collateral Murder” foi a fuga de informação que deu mais visibilidade ao Wikileaks – e a Julian Assange.
E foi também o que levou para a prisão um soldado norte-americano de 22 anos que estava colocado no Iraque – Bradley Manning, detido no Kuwait desde finais de Maio – que terá sido a fonte do vídeo do helicóptero Apache e, provavelmente, de outras informações secretas a que tinha acesso, incluindo 150 mil comunicações entre embaixadas dos EUA e o Departamento de Estado, 50 das quais poderá ter enviado ao Wikileaks.
O próprio Manning, atormentado por “problemas de ajustamento” no Campo Hammer, em Bagdad, terá contado o que fez a um outro “hacker” que não conhecia, através da Internet, Adrian Lamo – que o denunciou às autoridades.
O Wikileaks nunca assumiu que Manning foi a sua fonte, embora tenha tentado contratar advogados civis para o defender. Mas o que Manning terá dito a Lamo, e o que terá feito com o seu computador, poderá ser suficientemente incriminatório para provar a sua relação com o Wikileaks. Ou não – a acusação, formalizada no início de Julho, não menciona o “site”, mas acusa o soldado de ter passado informações a terceiros, nomeadamente o vídeo que deu origem a “Collateral Murder”.
Só que, se Manning é encarado com simpatia, o Wikileaks é visto pelos “media” norte-americanos, em geral, com uma certa animosidade, ou pelo menos antipatia – pelo menos a julgar pela cobertura que é dada ao caso por dois dos jornais com mais créditos firmados, o “Washington Post” e o “New York Times”.
O que se está a passar no país do Watergate e da mais famosa fonte anónima da história, o Garganta Funda?
A ameaça“É importante pensar no papel histórico do jornalismo de investigação nos ‘media’, pelo menos nos Estados Unidos”, diz Lisa Lynch, professora de jornalismo na Universidade de Concordia, em Montreal (Canadá). “A imprensa alternativa e ‘underground’ nos Estados Unidos conquistou muitos leitores nos EUA nas décadas de 1960 e 1970 porque havia a percepção de que ninguém desafiava a visão do Governo”, diz a investigadora. Portanto, o jornalismo de investigação duro da década de 1970 “tem de ser visto como algo que aconteceu num momento diferente daquele em que estamos agora a viver”, sublinha Lynch, que tem estudado o fenómeno Wikileaks desde que o “site” surgiu, em 2007.
“Não creio que o Wikileaks seja universalmente desprezado pelos ‘media’ norte-americanos. Existem é dois factores que estão a influenciar a cobertura dos ‘media’. O primeiro é a ideia de que o jornalismo deve ser ‘objectivo’ até ao ponto da neutralidade – que é mais forte aqui do que noutros países. O segundo factor é que o Wikileaks tem atacado a política dos EUA no Médio Oriente, e é de esperar que se faça uma cobertura defensiva”, explica Lisa Lynch.
A lista de documentos divulgados pelo Wikileaks desde 2007, quando começou actividade, é já grande – mais de um milhão. Só uns exemplos: relatórios sobre um alegado esquema de corrupção envolvendo a família do ex-governante do Quénia Daniel Arap Moi; uma cópia antiga do manual de operações da prisão militar da base norte-americana de Guantánamo, em Cuba, onde estão presos os suspeitos de terrorismo a quem os Estados Unidos não querem conceder o estatuto de prisioneiros de guerra e que mostra que era prática comum esconder alguns presos quando a Cruz Vermelha visitava a cadeia; documentos internos do banco Kaupthing, o maior da Islândia, que mostravam como estava exposto ao risco, imediatamente antes do colapso financeiro do país; manuais secretos da Igreja da Cientologia, à qual pertence o actor Tom Cruise; meio milhão de comunicações em “pagers” das pessoas que estavam nas torres do World Trade Center na altura dos ataques do 11 de Setembro; um perfil do embaixador da Islândia nos EUA feito pelo Departamento de Estado no qual o diplomata é elogiado por ter ajudado a silenciar os voos secretos da CIA; e até os “e-mails” trocados entre cientistas especialistas em alterações climáticas, roubados dos servidores da Universidade de East Anglia, o caso que ficou conhecido como Climategate.
Mas o peso das guerras norte-americanas no Iraque e no Afeganistão tem sido forte nos casos divulgados. Por isso, não admira que o “site” fosse considerado uma ameaça pelo exército dos Estados Unidos – segundo um relatório de 2008 de um analista do Centro de Contra-Inteligência do Exército que foi divulgado pelo próprio Wikileaks em Março de 2010. A veracidade do relatório foi confirmada pelo tenente-coronel Lee Packnett, citado pelo “New York Times”. E não parece irrealista, já que o “site” tinha publicado informações sobre o equipamento, operações e unidades militares no Iraque e no Afeganistão.
Curiosamente, esse relatório sugeria um plano para “marginalizar” o Wikileaks, a ameaça identificada. Já que o “site” usa “a confiança como centro de gravidade, protegendo o anonimato e identidade dos informadores”, recomendava “a identificação, exposição, terminação dos contractos de emprego, processos judiciais contra actuais ou anteriores informadores que tenham o potencial de pôr em perigo ou destruir este centro de gravidade e impedir outros de considerar a hipótese de usar o ‘site’ Wikileaks”, sublinhava o próprio Julian Assange, num texto assinado em que fazia a descrição do documento do Centro de Contra-Inteligência do Exército.
Pode ser teoria da conspiração, mas o que se começou a passar três meses depois, ao ser preso Bradley Manning, numa história mal contada de confissões que terá feito a um outro “hacker” que nunca conheceu pessoalmente e que o denunciou já fez recordar este relatório. Sobretudo porque, na altura da detenção de Manning, em fins de Maio, o Departamento de Estado pôs a correr a notícia de que gostaria muito de entrar em contacto com Julian Assange – porque Manning lhe teria passado milhares de comunicações secretas entre Washington e embaixadas do Médio Oriente. Assange, o homem que normalmente faz da mochila e do computador portátil a sua casa, passou mesmo à clandestinidade, dizia-se, durante alguns dias.
Sob os olhos do mundoBradley Manning, o soldado de 22 anos especialista em tecnologia de informação colocado no Iraque, que lidava com bases de dados classificadas e tinha uma autorização de alta segurança para aceder a informação secreta, e se revoltou contra o sistema, será o princípio de uma nova era para o Wikileaks – um novo tipo de jornalismo, como gostaria Julian Assange – ou pode ser mesmo a machadada final no “centro de gravidade” da confiança, para usar a expressão do especialista da contra-inteligência do Pentágono?
“Francamente não sei se teremos suficiente informação sobre o caso Manning para especular sobre o efeito que poderá ter. Por exemplo, até agora, Assange negou conhecê-lo; Lamo tem sugerido que Manning lhe disse o contrário. Se for verdade que ele submeteu documentos secretos e depois confessou, imagino que a preocupação não será que o Wikileaks seja inseguro, mas que outros informadores possam igualmente pôr o ‘site’ em perigo através das suas confissões”, especula Lisa Lynch.
“O que já se pode dizer é o que o incidente Manning foi tremendamente polarizador, em termos políticos. Isso não é bom para o Wikileaks, que tem conseguido manter uma base de fãs notavelmente ampla [no Facebook têm mais de 45 mil amigos], muitas vezes atravessando fronteiras políticas”, sublinha a investigadora.
Isto pode ser problemático para a organização porque vive de doações, e neste momento está com graves dificuldades financeiras, apesar de ter anunciado ter mais material explosivo em mãos, que poderá ter-lhe sido fornecido por Manning: imagens do bombardeamento de um camião cisterna carregado de petróleo atacado por um avião não pilotado norte-americano na povoação de Garani, no Afeganistão, em que o Governo de Hamid Karzai diz terem morrido 140 civis, dos quais 92 crianças.
O Wikileaks não tem estado a funcionar bem – a página para submissão de documentos, as fugas de informação que são a razão da sua existência, não está operacional. Isso tem gerado grande especulação. É um bocado sensacionalista dizer que, como [um blogue da revista] ‘Wired’ e outras publicações têm feito, simplesmente por que o ‘site’ não está a funcionar bem de momento, está a cair aos bocados. Não quero minimizar os problemas financeiros e legais deles, mas o ‘site’ sempre funcionou em condições complicadas, embora sob um escrutínio muito menor”, realça Lisa Lynch.
Agora os olhos do mundo estão a virar-se mesmo para o Wikileaks. E para Julian Assange – que não será, de todo, uma figura conhecida, mas já não é apenas uma figura de culto para meia dúzia de “geeks” em todo o mundo. Ele tem ideias definidas sobre o que deve ser o jornalismo e a transparência das instituições – e não hesita em transmiti-las, embora seja notório que se sente frustrado.
Jornalismo científicoNo artigo da “New Yorker”, ele fala em criar um novo padrão: “jornalismo científico.” O matemático que se desencantou com a universidade e que estudou largamente por si próprio, devorou livros na infância e se tornou um “hacker” que entrou em várias empresas australianas – e na NASA e no Pentágono, aparentemente – quer fazer do acesso às fontes o primado da informação.
“Se publicar um artigo científico sobre ADN, todas as revistas científicas de biologia exigem que apresente os dados em que baseei o meu trabalho – a ideia é que outras pessoas possam replicar as experiências, verificá-las. Isto tem de ser feito com o jornalismo também. Há um desequilíbrio de poder imediato, porque os leitores não podem verificar o que lhes dizem, e isso leva a que haja abusos”, disse Assange à “New Yorker”.
Mas, como publica as suas fontes, Assange considera que pode dar a sua análise, ainda que seja especulativa e alvo de críticas – como aconteceu com o vídeo “Collateral Murder”, que apesar de receber muita atenção nos “media”, acabou por ter algumas reacções críticas, pelo menos nos “media” norte-americanos. Concentraram-se nos soldados, no stress de guerra, por que falavam daquela maneira desprendida e agressiva, por exemplo. E na agenda do Wikileaks, no título do escolhido – “homicídio colateral” – que é toda uma crítica, em si, contra os militares.
Mas não houve um inquérito ao incidente, nem sequer ao comportamento dos militares. Comentário do Wikileaks no Twitter, no dia em que foi conhecida a acusação contra Manning: “Soldado Manning acusado por ter divulgado vídeo do massacre no Iraque. Tripulação de dedo rápido no gatilho do Apache continua sem sem ser acusada. Mais em breve.”
“O Wikileaks está a lutar por uma forma de jornalismo de investigação que não é prática comum em muitas organizações de ‘media’ hoje em dia, por muitos motivos – legais, culturais, políticos, económicos. E por isso sentem-se frustrados com os factores sistemáticos e estruturais que impedem os ‘media’ de trabalhar da forma que julgam que deviam trabalhar”, comenta Lisa Lynch.
No entanto, o ex-hacker que transformou a Internet numa arma de transparência conseguiu já cravar uma lança em África – ou na Islândia, para ser mais preciso. Na ilha gelada que passou por um complicado processo de convulsão social ao entrar em colapso financeiro, levando os cidadãos a questionar tudo no seu pequeno país de pouco mais de 300 mil habitantes, Assange e o núcleo duro do Wikileaks serviram de consultores para a proposta da autorização legislativa aprovada pelo Parlamento em Junho, por unanimidade, que deverá permitir transformar o país num refúgio da liberdade de expressão. A ideia é que a Islândia se torne numa espécie de ilhas Caimão da liberdade de imprensa, um local onde as empresas de comunicação tenham a sua sede — ou alojem os seus servidores — para ficarem ao abrigo da censura. Cabe agora ao Governo legislar.
“Acho que muitos jornalistas estão a torcer pelo Wikileaks, mesmo que este critique muitas vezes os ‘media’. Muitos vêm para a profissão com a aspiração de fazer o tipo de investigação que faça cair governos corruptos e acabe com guerras inúteis”, comenta Lisa Lynch. “O Wikileaks fá-los ter esperança de que seja possível regressar aos tempos em que se podiam escrever e publicar estas coisas, que eram consumidas por uma audiência motivada para fazer acontecer a mudança.”
Texto publicado na edição da Pública de 18 de Julho de 2010