Continuam a querer-nos Marianas

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O que é novo é a forma como o modelo de relações sociais é perpetuado, através da comunicação social e da publicidade

A Paz// Compraz-se Mariana com o seu corpo. (...)// Mariana deixa que os dedos retornem da vagina e procurem mais alto o fim do espasmo que lhe trepa de manso pelo corpo. (...)// E a noite devora, vigilante, o quarto onde Mariana está estendida. O suor acamado, colado à pele lisa, os dedos esquecidos no clitóris, entorpecido, dormente.// A paz voltou-lhe ao corpo distendido, todavia, como sempre, pronto a reacender-se, caso queira, com o corpo, Mariana se comprazer ainda. 21/3/71. Mª Isabel Barreno, Mª Teresa Horta e Mª Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas, Estúdios Cor, 1972, pp. 48 a 50.

Esta passagem das Novas Cartas Portuguesas (NCP), em que o prazer sexual da mulher é assumido, de forma individual e autónoma, foi certamente uma das razões que levou a que a ditadura marcellista, apesar das suas radiosas e modernas primaveras, proibisse a obra e acusasse de atentado ao pudor e pornografia Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, as primeiras autoras a abdicarem da individualidade autoral e a assumirem em conjunto a autoria das cartas que foram, contudo, escritas individualmente. Quatro décadas passadas, quando é feita uma reedição anotada por Ana Luísa Amaral, só as três sabem quem escreveu o quê, num acto colectivo de desafio ao poder e à ordem social vigente, que permanece até hoje, como sublinha Ana Luísa Amaral ao Ípsilon (12/11/2010).

O escândalo da masturbação por parte de uma mulher era então absoluto na sociedade portuguesa, aliás, era-o a admissibilidade de vontade e autonomia sexual da mulher. Há mesmo uma frase relatada por Isabel Barreno, no Ípsilon, que foi dita por Raul Rêgo e que é paradigmática da reacção à época: "Há coisas que as senhoras não deviam sequer pensar, muito menos escrever." Mas se hoje a sexualidade feminina autónoma e livre causa menos escândalo do que no passado recente - desde que permaneça dentro da heteronormatividade, já que o lesbianismo permanece estigmatizado no gueto da invisibilidade -, o que é facto é que as NCP continuam a ser excluídas pelo mainstream académico e a sofrer o estigma de ser um documento que fala sobre a subjugação da mulher ao homem nas sociedades burguesas. E isso acontece porque as NCP são um documento radical e moderno de crítica social profunda que questiona de tal forma a sociedade burguesa que permanece actualíssimo e, por isso, incomoda.

E se hoje há uma maior autonomização de papéis sociais - própria do individualismo burguês - e essa autonomização leva ao reconhecimento na lei de uma igualdade entre indivíduos, logo entre homens e mulheres, o que é facto é que a sociedade não acompanha a lei que a tenta moldar. E a forma como as relações sociais são vista nas sociedades burguesas mantém um modelo baseado no binómio homem/mulher, com o homem primeiro, claro, e que se estrutura através da família nuclear, heterossexual, heteronormativa, procriativa e patriarcal.

O que é novo é a forma como o modelo é perpetuado. Sem espaço para ser questionado. Massificado, através da nova tecnologia da informação e dos seus dois principais braços: a comunicação social e a publicidade. Mesmo quando assimila a conceptualização dos que o criticam, mesmo quando, por exemplo, usa conceitos como o de género, o poder patriarcal burguês mantém como referência o binómio biológico e sexual homem/mulher, que é, aliás, uma constante histórica.

Mesmo quando aceita e proclama uma imagem de mulher autónoma e moderna. Mesmo quando cria o mito da entrada da mulher no mundo do trabalho. É bom que se sublinhe que o conceito de trabalho, como o conhecemos, é um conceito burguês, nascido com o capitalismo. Na sociedade medieval europeia, por exemplo, as elites (nobreza e parte do clero) não faziam trabalho braçal, ao nível do povo a mulher sempre trabalhou, no campo ou até na guerra, já que as comitivas militares incluíam mulheres. É a família nuclear burguesa que lhe atribui o papel de mãe e cuidadora e a fecha em casa.

Num almoço com Isabel Barreno, no âmbito da preparação do dossier do Ipsilon, falámos sobre os atavismos que permanecem sob novas formas. Como é difícil conseguir que as mulheres olhem para si como indivíduos. Mesmo quando se tenta essa abordagem junto de mulheres cultas e informadas e que se destacam com um discurso de defesa de direitos das mulheres, que fazem sempre em função e não contrariando o binómio do poder patriarcal burguês de homem/mulher.

A conversar sobre a perpetuação ideológica desse modelo, o desespero da situação e da impossibilidade de fazer frente ao poder da comunicação levou-nos ao riso, tanto é o ridículo que está explícito nos arquétipos comunicacionais e publicitários. E foi-me possível ver Isabel Barreno a desfilar uma série de personagens que nos preenchem o espaço televisivo. É a invariável situação da mulher que leva os filhos à escola e que apanha a água do chão, quando a máquina avaria, já que, no que toca a máquinas avariadas, o homem aparece de bata branca: o cientista que percebe de motores e que assegura a qualidade de um produto. Ou ver o mordomo que diligentemente, de algodão na mão, verifica e assegura a qualidade de um produto de limpeza - é claro que uma mulher a dias normal daria menos garantias, um mordomo é outra coisa.

Passado o riso, foi fácil concluir da imensa actualidade das NCP, numa sociedade que perpetua o modelo patriarcal burguês, ainda que sob uma aparente maior liberdade individual. E de como permanece uma cultura e uma mentalidade sociais que continuam a querer-nos Marianas. Jornalista (sao.jose.almeida@publico.pt)

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