Abel e Caim na era da electricidade

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Bárbara Villadelprat
Há aquilo que vemos de olhos fechados e depois há aquilo que não vemos nem de olhos abertos em S.Ó.S., a nova criação que o Teatro do Frio estreou ontem na Fábrica Social - Fundação José Rodrigues, no Porto. O que vemos de olhos fechados é um texto que faz luz, construído a partir de Direcção Única, de Almada Negreiros, e que se acende e se apaga na presença dos actores Catarina Lacerda e Rodrigo Malvar. O que não vemos nem de olhos abertos é o que se passa para além da electricidade, na escuridão da qual viemos e à qual voltaremos, depois deste big bang temporário.

S.Ó.S. começa assim, com a luz de cinco candeeiros a insinuar-se na escuridão, como se assistíssemos ao princípio dos tempos, e depois há géiseres, tsunamis, terramotos, cataclismos, a mão de Deus, Adão e Eva, Abel e Caim. Vamos da criação ao caos em 385 dias, porque a destruição é a verdadeira ordem natural das coisas: o mundo desmorona-se sozinho, sem grande alarido, como um baralho de cartas, dívida aqui, dívida acolá, Abel e Caim disputando já não os favores do pai mas "a mesma bolsa de emprego". 

Nunca estão demasiado perto, Abel e Caim, e nunca estão demasiado longe, como nós e os outros, aqui no mundo: foi também por aí que o Teatro do Frio entrou no texto de Almada Negreiros. "É um texto que me tem acompanhado sempre, transversalmente, como um mote: conheci-o através de um excerto, há muitos anos, e marcou-me muito na altura. Fui buscá-lo quando estava a terminar o curso de Teatro porque estávamos a fazer uma criação colectiva e o texto lida muito com a tensão entre o indivíduo e o grupo", explica Rosário Costa, que este ano assumiu a direcção artística da companhia (uma direcção artística rotativa, o que, diz Catarina Lacerda, "também tem muito de Abel e Caim", mas com a vantagem de colocar constantemente a companhia numa "zona de desconforto"). 

Como é habitual no Teatro do Frio, o texto foi-se dissipando ao longo do processo criativo: serviu como ponto de partida para uma série de ligações, imagens, palavras e símbolos que S.Ó.S. agita como lanternas na escuridão total. O jogo de contrários entre a luz e a caixa negra tornou-se, de resto, estruturante para o espectáculo, tanto a nível cenográfico como a nível dramatúrgico, por sugestão do texto e também por constrangimentos orçamentais: "Almada escreveu isto no princípio do século XX, que é também o princípio da electricidade: um tempo em que a claridade passou a ser tanta que parecia já não haver mais nada a descobrir, mas que, por outro lado, foi um tempo trágico", continua Rosário.

Em S.Ó.S. ainda há coisas a descobrir, mesmo depois de o espectáculo acabar. Na sala ao lado, o Teatro do Frio expõe-se, literalmente, num showcase que, declinando as iniciais do espectáculo (showing our show) junta vestígios do processo criativo (guiões, alinhamentos, listas de tarefas, despojos da pesquisa de adereços) a quatro originais de Almada Negreiros (um dos quais inédito) vindos da colecção particular do escultor José Rodrigues. É todo um espectáculo paralelo, e também um manual de instruções, diz Catarina Lacerda: "O trabalho por trás de cada espectáculo não cabe todo nestes 50 ou 60 minutos. Depois de lermos o texto do Almada começámos a encontrar ecos em tudo - nos jornais, no YouTube. Talvez isso não tenha um grande tempo de antena na peça, mas é importante que fique aqui."

S.Ó.S.

A partir de Almada Negreiros. Pelo Teatro do Frio. Encenação de Rosário Costa. Porto. Fábrica Social - Fundação José Rodrigues. 3.ª a dom., às 21h30. Até dia 21
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