O homem que provocava sentidos
A morte do fundador e director do Teatro de Marionetas do Porto deixa um vazio insuperável. Mas o seu legado torna o país mais rico e faz-nos pensar que o melhor amigo do Gaspar continua a ver-nos. Com ele - e depois dele - o teatro em Portugal nunca mais foi o mesmo
Para quem tiver crescido nos anos 80 há uma memória comum: aprender quantas árvores há no mundo, mas saber que só uma podia ser a preferida, a dos patafúrdios, e ter a certeza de que havia um amigo que estaria sempre ali, o Gaspar. Era tão bom, e tão simples, saber que havia uma amizade assim, "ai, faz tão bem saber com quem contar/ Eu quero ir ver quem me quer assim/ É bom pra mim e é bom pra quem tão bem me quer". As letras e as músicas d"AÁrvore dos Patafúrdios ed"Os Amigos de Gaspar (dois dos programas que criou, os outros foram Mópi e No Tempo dos Afonsinhos) eram de Sérgio Godinho, mas os amigos e os pássaros que víamos na árvore, por mais reais que fossem, eram marionetas da responsabilidade de João Paulo Seara Cardoso, encenador, pedagogo e director do Teatro de Marionetas do Porto, que morreu há uma semana, aos 55 anos, com um cancro.
O amigo João Paulo partiu, o mais importante dos amigos do Gaspar. E, desta vez, até o guarda Serôdio deve ter deixado que a passarada chilreasse à vontade.
"Insubstituível, porque é essa a realidade", diz João Carneiro, crítico de teatro no Expresso, que descobriu, com Seara Cardoso, as marionetas em Portugal. "Há um vazio que fica, e uma falta, mesmo que exista uma herança. Mas as pessoas só podem ser substituídas, se o forem realmente, em vida."
João Paulo Seara Cardoso foi um dos mais importantes encenadores de teatro portugueses e, se não fosse ele, a par de Isabel Alves Costa, que também morreu há pouco mais de um ano, com o Festival Internacional de Marionetas do Porto, não poderíamos falar de marionetas em Portugal como hoje falamos.
Ele próprio herdeiro de uma tradição praticamente perdida, a do Teatro Dom Roberto, que aprendeu com o Mestre António Dias, e apostado em "encontrar princípios de modernidade e de contemporaneidade no teatro de marionetas", como disse em 2005 à revista Sinais de Cena, da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, João Paulo Seara Cardoso deixa uma companhia com 20 anos, o Teatro de Marionetas do Porto (TMP), um projecto de museu para a cidade, e a ideia de que o teatro "não é para fazer sentidos, mas para provocar sentidos".
Foi isso que escreveu a Sérgio Rolo, há 13 anos na companhia, na última carta que lhe enviou. "Quando cheguei ao Porto foi o TMP que me interessou, porque tinha uma visão do teatro no mundo muito interventiva", diz Rolo. Essa ideia já vinha de longe, desde o tempo de Vai no Batalha, uma revista política e de reacção criada em 1993, e que para João Carneiro lhe ensinou que o teatro "era capaz de transformar a nossa visão da cidade". Nessa entrevista, hoje tragicamente difícil de ler porque os seus autores, Paulo Eduardo Carvalho e Isabel Alves Costa, morreram em pouco mais de um ano, deixando não apenas a cidade do Porto, e não só o teatro, na sua vertente de criação (João Paulo Seara Cardoso), programação (Isabel Alves Costa) e recepção (Paulo Eduardo Carvalho) mas o país cultural, intelectual e social mais pobre, o encenador diz que foi a partir daí que começou "uma reflexão sobre o caminho a tomar que, até então, talvez ainda não tivesse feito..."
Os entrevistadores diziam que o trabalho do encenador e da companhia a partir de meados da década de 90 "ilustravam de forma eloquente aquilo que se veio a tornar uma evidência: que o que define a existência de uma marioneta depende mais do modo como cada objecto, à partida, inerte é manipulado e utilizado, do que do seu aspecto ou construção".
Primeiro a marioneta
João Carneiro salienta que eram espectáculos tão mais interessantes quanta a "primazia dada à marioneta". "O trabalho dele foi sempre muito mais feliz sempre que a sua atenção se concentrou na marioneta, explorando a relação deliberada entre ela e a pessoa que a manipulava." O crítico acrescenta ainda que o trabalho do encenador era muito interessante na sua relação estrita com a marioneta enquanto entidade autónoma, sublinhando em Seara Cardoso ainda "o bom gosto que não se encontra em mais ninguém" e uma "invenção, técnica e domínio dessa técnica extraordinários"."Para mim", disse o fundador do TMP na já referida entrevista, "a ilusão que se pretende criar de vida própria da marioneta passa a ser, com a presença do actor, um mistério muito maior. Porque já não vemos só a vida. Estamos perante a vida em confronto com a morte. A tal existência efémera da marioneta, é uma metáfora de nós próprios".
Talvez seja por isso que Luís Vieira, co-director, com Rute Ribeiro, da companhia Tarumba e do Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas de Lisboa, fala da relação de Seara Cardoso com as marionetas, "como se fossem seus filhos".
"Conheci-o quando ele veio ver um espectáculo ao Museu da Marioneta, ainda este era em Alfama, e houve uma das vezes em que as marionetas que ele tinha guardadas no carro tinham desaparecido. Andámos atrás delas, como se ele tivesse perdido a coisa mais importante da vida. Acabámos por encontrá-las, tinham sido levadas por miúdos da rua que esperavam os turistas para lhes roubar as carteiras", lembra Vieira.
O trabalho dele foi "uma pedrada no charco" em Portugal, diz o também encenador. "Inscreveu o teatro de marionetas na linguagem contemporânea num contexto e numa altura em que não era fácil. As marionetas exercem uma atracção no grande público e o João Paulo sabia levá-las para além disso, criando novas ideias e novos sentidos."
Foi assim com Miséria, de 1991, a partir de um conto popular, e peça com a qual percorreu o mundo. "Era conhecido de todos por causa dessa peça", diz Sérgio Rolo. "Tinha todo o tempo do mundo e ficava lá mais quatro ou cinco dias, via os outros espectáculos, conhecia os criadores, falava com eles, em ambiente de verdadeira tertúlia", recordou na Sinais de Cena.
Histórias fantásticas
Essa capacidade de que Luís Vieira fala, e que Sérgio Rolo apelida de "respeito pelo público", foi o resultado de uma formação que o levou a participar em inúmeros ateliers, seminários e festivais internacionais desde muito cedo, percorrendo o país. Em 1978, recorda na entrevista já citada, celebrava-se o Ano Internacional da Criança, e João Paulo era animador sócio-cultural (e antes disso já tinha deixado um curso de Engenharia pelo teatro) e, com mais uns amigos, entre eles Mário Moutinho (que viria a ser a voz mítica do guarda Serôdio), faziam espectáculos como cogumelos "em condições muito precárias" mas de onde "surgiram naturalmente as marionetas". "Tínhamos uma aparelhagem de som muito rudimentar, um pequeno pórtico que se montava no largo de uma aldeia ou no salão de bombeiros, e apresentávamos espectáculos que tinham uma grande interacção com o público, com os miúdos." Foi assim que conheceu o teatro popular, essas "celebrações comunitárias que, nesse sentido, se aproximam dos ideais do teatro grego". "Eu acho que o conhecimento dessas tradições é fundamental para se crie uma verdadeira consciência teatral numa perspectiva cultural", disse. "Um dos problemas do teatro e da dramaturgia portuguesa é precisamente a falta de uma identidade", disse um homem que fez dessa pesquisa um modo de pensar o teatro, e por consequência, as marionetas. Sérgio Rolo garante que o trabalho que desenvolvia "não tinha um fio condutor e vivia de estímulos". Seara Cardoso fala de uma reivindicação do lado de artesão, "do espírito do artista e do fazedor de teatro". "Há tantas formas de fazer teatro! Eu encaro-o numa perspectiva mais performativa e política."Ao longo de 20 anos o Teatro de Marionetas do Porto produziu os mesmos autores que poderíamos ver no "outro teatro": Shakespeare (Macbeth), António José da Silva (Vida de Esopo e Os encantos de Medeia), Beckett (Nada ou o silêncio de Beckett), Muller (Máquina-Hamlet), a par de clássicos infantis (Cinderella, Os Três Porquinhos, Polegarzinho) ou criações originais, respondendo a um primado de pesquisa: "Aquilo a que reajo mais é a sobrevivência de um certo naturalismo ou de um teatro apolítico e inócuo que não forma massas críticas. Um teatro "que não perturba os nossos sentidos" como dizia Artaud." E, por isso, dizia não conseguir fazer uma démarche tão experimental nos espectáculos infantis porque nunca [conseguia] fazer um espectáculo sem texto: "O que me parece interessante na arte contemporânea que se aventura numa onda não-figurativa, nos domínios do teatro, da performance, da dança, etc, [é que] a marioneta vive muito bem nesse mundo e recusaria sempre outro tipo de tratamento. E isto explica também porque nunca trabalhamos com marionetas de fios, porque são as que se aproxima mais do comportamento humano. A marioneta, na sua condição de duplo, está desde logo a afastar-se de qualquer ideia de imitação..."
E porque não era a repetição que lhe interessava, era um homem de projectos e são vários os que ficam por fazer. "Gostava de fazer uma tragédia clássica, talvez um Eurípides. Gostava de fazer mais Shakespeare, porque são textos que se adaptam muito bem ao universo da imagem, com histórias fantásticas, em torno do poder, do amor e da morte e com muitas acção interior e exterior e pouca psicologia", disse à Sinais de Cena. Queria ainda ter feito mais Beckett, e A Casa de Bernarda Alba, de Lorca. Deixa uma peça infantil por estrear, em Fevereiro, que ainda não tem título, e um projecto para a instalação de um Museu da Marioneta na Rua das Flores, no Porto. "Vamos continuar o seu trabalho", diz-nos Sofia Carvalho, produtora da companhia. Sérgio Rolo acrescenta que é "como se estivéssemos em digressão e ele não estivesse connosco mas soubéssemos o que temos que fazer". Como o sol que olhava para as árvores a crescer no início do genérico da Árvore dos Patafúrdios.