Há uma razão muito especial para Mathieu Amalric ter vindo apresentar ao Estoril Film Festival "Tournée", filme que lhe valeu o prémio de Melhor Realizador em Cannes 2010 e que deverá estrear em Portugal no início de 2011.
É que esta história de um produtor caído em desgraça que regressa como empresário de um espectáculo de “new burlesque” americano em digressão por França foi escrita a pensar em... Paulo Branco.
Mathieu Amalric, que os espectadores recordam como o vilão do último James Bond, “007 Quantum of Solace”, como o jornalista paralisado Jean-Dominique Bauby em “O Escafandro e a Borboleta” ou como presença regular nos filmes de Arnaud Desplechin, conhece o produtor português há muito tempo.
Trabalhou com ele quer como assistente de realização quer como actor em várias produções, e foi Branco que produziu a segunda longa de Amalric enquanto realizador, “O Estádio de Wimbledon”.
Entre um café e vários cigarros num quarto do hotel Cascais Miragem, Amalric, entre nós para assistir à ante-estreia de “Tournée”, confirma que a personagem principal, Joachim Zand, foi inspirada por Paulo Branco e deveria, aliás, ser interpretada pelo produtor. “Originalmente, chamava-se Joaquim, à portuguesa – Joaquim Veloso, também por causa de Caetano Veloso e da ideia de velocidade...”
A génese de “Tournée” está num cruzamento de inspirações quase simultâneas: os textos da escritora francesa (e cortesã profissional) da Belle Époque Colette (autora de “Gigi” e “Chéri”); uma reportagem sobre o “new burlesque”, reinvenção contemporânea, feminina e feminista, dos espectáculos de vaudeville e music-hall; e o suicídio do produtor de cinema Humbert Balsan (recentemente ficcionado no filme de Mia Hansen-Løve “O Pai das Minhas Filhas”).
“Quando o Humbert Balsan, que eu não conhecia particularmente bem, se suicidou, tive muito medo pelo Paulo. Ele era alguém que tentava fazer filmes livres e independentes. Pensei logo na produtora que o Gilles Sandoz, o Humbert e o Paulo haviam criado, os Filmes Piratas [que nunca descolou realmente]...
“O Gilles tinha aberto falência, o Humbert suicidou-se e perguntei-me, como é que o Paulo vai continuar? Tinha fugido durante uns dias para trabalhar num hotel da Bretanha, telefonei ao Paulo para lhe dar um abraço e enquanto falávamos a história de “Tournée” nasceu num instante. Tudo iria correr bem, o Paulo ia parar, ia-se embora, mas voltava graças às mulheres do “new burlesque”, aos seus corpos, à sua generosidade, ao seu amor, alimentando-se da sua força.
“Eu já tinha toda a história da digressão, que vinha de Colette, e a partir desse momento a personagem do produtor alimentou-se não apenas do Humbert ou do Paulo como também de outros nomes grandes da produção de cinema, como Jean-Pierre Rassam, Robert Evans, Claude Berri, e sobretudo das lendas que os rodeavam. Como por exemplo Berri a hipotecar a sua casa, o Paulo a jogar no casino... Não importava que fosse verdade ou mentira, o que importava é que essa lenda existia e isso permitia-me dar espessura e densidade à personagem.”
Amalric adianta, aliás, que era particularmente apropriado entregar a personagem do produtor a um produtor verdadeiro, já que as artistas de “new burlesque” que participam em “Tournée” - com nomes artísticos como Dirty Martini, Mimi Le Meaux ou Kitten on the Keys – não são actrizes profissionais e interpretam no filme as suas próprias “personas” artísticas.
Branco aceitou o desafio e “ia muito bem durante os ensaios”, mas acabaria por desistir e Amalric assumiu o duplo papel de actor e realizador no seu próprio filme a três semanas da rodagem. Relutantemente, mas homenageando o produtor que quase foi actor através... do bigode que deixou crescer para interpretar a personagem de Joachim Zand.
“Tournée” passa hoje às 22h00 no Centro de Congressos do Estoril e deverá chegar às salas portuguesas no início de 2011.