John Lennon subiu a escada da instalação que horas depois seria oficialmente inaugurada. Estávamos em Novembro de 1966 e ele era o primeiro visitante de "Unfinished Paintings And Objects", de Yoko Ono, que vinha gerando curiosidade no meio artístico da "swinging London". No centro de uma sala, a escada que Lennon subiu degrau a degrau. Acima dele, uma tela aparentemente branca da qual pendia uma lupa. Lennon pegou na lente, dirigiu-a à tela e sentiu-se aliviado. Em letra minúscula, distinguia-se uma palavra e essa palavra era "Yes".
John e Yoko como casal inseparável, John e Yoko como dupla irritante cuja relação destruiu os perfeitos Beatles, só surgiriam depois, mas Lennon recuava várias vezes àquele simples e enfático "sim". Foi o "yes" de Yoko que o conquistou.
44 anos depois da exposição em que John Lennon e Yoko Ono se conheceram, 30 anos depois da violenta morte dele, voltamos a olhá-lo. Não o Beatle, mas o Lennon que sobreviveu aos Beatles e que matou os Beatles para poder caminhar sozinho.
Em 2010, John faria 70 anos e há toda uma série de reedições a relembrá- lo. "The Hits" em CD single, uma edição de quatro CD, "Gimme Some Truth", com Lennon dividido em zonas temáticas ("Working Class Hero", "Woman", "Borrowed Time" e "Roots"), e, mais apetecível, a "Signature Box" que reúne toda a obra a solo desde "Plastic Ono Band". No topo da caixa, que é um cubo branco, lê-se "Lennon". Abrindo-a, revela-se novamente, e agora para todo o mundo, o mesmo "Yes" da Indica Gallery. É a porta de entrada no universo de Lennon, e "yes" faz todo o sentido observando-o pelo ângulo oficial, o de homem preservado no formol beatífico de lutador pela paz, cantor de "Imagine" e "Give peace a chance".
Mas, como nenhum outro músico da sua era (ou depois dela), Lennon transformou a sua vida em gesto artístico exposto perante todos - foi o seu acto mais radical - para, em seguida, se recolher ao famoso apartamento no Dakota Building, em Nova Iorque, onde se dedicou a ser "dono de casa".
"Yes"? Depois dos Beatles, com Yoko Ono como mulher, amante, musa, "mãe" ("mother", chamava-lhe) e parceira artística, os nãos de John Lennon foram pelo menos tão sonoros quanto os sins.
"E agora, mãe?"
Em 1970, não eram só os Beatles que tinham acabado. Na verdade, para Lennon, a banda que fundara no final dos anos 50 não tinha realmente terminado. Era uma ferida aberta, a fonte de todos os males que o atormentavam. A sua primeira entrevista após a conflituosa separação, à "Rolling Stone", foi um exercício de terapia e um verdadeiro assassinato. Lento, cruel e meticuloso: descreveu a existência da banda como "uma constante humilhação", pelo convívio forçado a que estavam obrigados com políticos, mulheres de políticos ou figuras do jet-set que desprezavam; abriu uma pequena janela sobre as digressões, uma orgia de drogas e sexo nos antípodas da imagem "angelical" projectada; falou com sinceridade desarmante de tudo aquilo que o ligava aos Beatles e daquilo (o desprezo por Yoko Ono) que nunca lhes perdoaria. Matando-os, poderia libertar-se (pelo menos, assim o julgava).
Cinco anos depois dessa entrevista, em 1975, editava "Rock'n'roll", modesto álbum de versões de clássicos da década de 50, e desaparecia de cena. Acordou com Yoko que ela se dedicaria a tratar dos negócios e da papelada do império Lennon, enquanto ele ficaria por casa a trocar as fraldas de Sean. O que ficava para trás, seis álbuns que se confundiam com aquilo que era a sua vida no preciso momento em que os gravou, representa na perfeição o percurso acidentado de alguém que só parecia estar verdadeiramente bem quando se atirava de cabeça para o turbilhão: turbilhão interior, turbilhão em seu redor.
O músico que encabeçava manifestações contra a Guerra do Vietname, que berrava aos ouvidos de Paul McCartney, no álbum "Imagine", um acusador "How do you sleep?", que se reuniu aos activistas Black e White Panthers em Nova Iorque para depois lhes virar as costas e se entregar à bebedeira colectiva de Los Angeles com Ringo, Keith Moon ou Elton John era aquele que confessava: "Só sou uma estrela por causa das minhas repressões. Queria dizer 'E agora, mãe, amar-me-ás?"
O fim do sonho
Tudo no percurso de Lennon decorre da sua posição única no mundo. Não era simplesmente um "entertainer", uma das caras da banda mais famosa a pisar o planeta. Numa era em que a música não era simples reflexo do mundo - devia curar e transformar e revolucionar -, de Lennon esperavamse respostas. E tudo nele, as letras que cantava, as respostas que dava em entrevistas, a roupa que usava ou os filmes que via, era decifrado e amplificado até escapar ao seu controlo, como a famosa tirada "os Beatles são maiores do que Jesus Cristo" tão bem ilustrara.
Nesse sentido, a entrada de Yoko Ono na sua vida não significou apenas a descoberta de um refúgio seguro (o único) disfarçado de amor obsessivo. Artisticamente, ela e o universo que representava apontaram uma saída. Se a privacidade era impossível, se a música seria indistinguível do seu autor, que se fundissem os dois. O single "Ballad of John & Yoko", creditado aos Beatles e que era, basicamente, a notícia de um casamento em canção, tal como os "bed in" em Toronto e em Amesterdão ou os cartazes de boas festas espalhados por várias cidades em 1969, "The War Is Over (If You Want It)", são disso um primeiro reflexo.
Nos tempos finais dos Beatles, quando Lennon substituía o LSD de "Sgt Peppers" pela heroína que cantaria no single a solo "Cold turkey", confundiu todos entregando-se ao experimentalismo de vanguarda dos discos "Two Virgins", "Life With The Lions" e "Wedding Album". Estes, porém, tornar-se-iam mais célebres pela controvérsia que a capa do primeiro gerou, com nu integral de John e Yoko, do que pela música. Com o fim dos Fab Four, Lennon, livre como desejara, podia recomeçar - e ser provocador no seu próprio território. No "Primal Scream" de Arthur Janov, psicoterapeuta que defendia como origem de todas as neuroses a repressão de traumas da infância, Lennon encontrou o seu método. Saiu da terapia, inacabada, para Abbey Road e gravou "Plastic Ono Band", álbum impressionante pela crueza do grito, pela forma como Lennon se expunha de forma tão despudorada. A sensação de abandono, o trauma do órfão, abria e fechava o disco (Julia, mãe de Lennon, morrera quando ele tinha 16 anos; o pai, que o abandonara aos cinco, só reapareceu no auge da Beatlemania). Pelo meio, estavam canções de intervenção como "Working class hero", mas ouvia-se, acima de tudo, um profundo desencanto com os falhanços de tudo aquilo em que acreditara: "I was the Dreamweaver / But now I'm reborn / I was the walrus / But now I'm John / And so dear friends / You'll just have to carry on / The dream is over", despede- se em "God" - essa, a do crescendo de negações: "I don't believe in magic, in Hitler, Kennedy, Buddha, Elvis, Zimmerman, Beatles".
No ano seguinte, "Plastic Ono Band" ganha um álbum irmão, "Imagine" - depois de tudo destruir, Lennon a imaginar um recomeço. "Imagine" fora gravado no casulo bucólico e familiar da sua mansão de Tittenhurst, em Inglaterra. Quando em Setembro de 1971 aterra em Nova Iorque, excitado com aquilo que o "centro do mundo" tinha para lhe oferecer, a sua vida estava prestes a mudar para sempre. Não mais o ouviríamos tão próximo, tão hábil na transformação das suas fraquezas em forças, tão firme numa defesa, sempre questionadora, nunca maniqueísta, das suas convicções. Porque Lennon, chegado a Nova Iorque, voltou a acreditar - para, pouco depois, perder as ilusões definitivamente.
O fim-de-semana perdido
Revitalizados pela contracultura que encontrou em Greenwich Village, Lennon e Yoko tornaram-se apoiantes de todas as causas: Black Panthers, IRA, lutas estudantis, e os Yippies de Abbie Hoffman, ferozes opositores de Nixon e dos "powers that be".
Em 1971, Yoko passeava com um cinturão de balas à cintura. John, a estrela pop mais famosa e influente no mundo, falava diariamente contra o Governo americano como um "marxista revolucionário", segundo o FBI, que o pôs imediatamente debaixo de mira. Na ebulição activista de Nova Iorque, Lennon e Yoko levaram o mais longe possível a ideia de usar a sua música como acção directa. "Éramos dois rebeldes muito orgulhosos de o sermos", escreve Yoko na reedição de "Some Time In New York City", álbum corajoso que seria também o maior falhanço da carreira discográfica de Lennon. "Nesse disco éramos o Kurt Weill e o Brecht dos anos 1970, na nossa cabeça éramos isso", continua Yoko Ono.
Tentaram fazer de um disco rock um jornal diário, um panfleto debruçado sobre as notícias do dia, mas acabaram com algo que não os representava verdadeiramente. Ao ouvir canções como "Woman is the nigger of the world" ou "The luck of the irish" e as suas letras básicas, sentimos que John estava a servir de megafone para as palavras de outros. Naturalmente, não se demoraria muito nesse papel - até podia ser um fantoche por causas justas, mas nada mais do que a sua própria voz lhe interessava.
Desiludido com os companheiros de luta, que o viam mais como fonte de financiamento do que como "guerrilheiro" com causas comuns, e com o "dream is over" a regressar ao seu espírito, despediu-se novamente. Mudou-se de Greenwich Village para o prédio que habitaria até ao final da vida, o Dakota, e, ainda que surgisse, aqui e ali, algo do velho idealista dado a grandes proclamações - declarou a fundação de um novo país, "Nutopia", em "Mind Games", álbum de ainda que a sua vida tenha continuado a ser a sua música, aquilo que tinha a dizer ao mundo eram relatos de amadurecimento, de euforias momentâneas ou crises conjugais - a voz para a vida normal dos seus companheiros de geração. Acontece, claro, que Lennon não tinha uma vida normal.
E então, encontrámo-lo em Los Angeles em 1974, separado de Yoko Ono, a viver com a secretária May Pang, e a fazer as delícias dos tablóides com os escândalos da sua bebedeira permanente. Deambulava de festa em festa, destruindo salas, caindo pelas ruas, comportando- se como um turista descontrolado com dinheiro, drogas e álcool a mais.
Impedido de sair dos EUA, por estar envolvido numa luta interminável com as autoridades americanas - Nixon tinha ordenado directamente o início do seu processo de deportação, com base num processo por posse de marijuana -, Lennon tropeçava sem rumo. Lennon tropeçava, diria depois, porque lhe faltava o equilíbrio que Yoko Ono proporcionava - viveu assim o seu famoso "fim-de-semana perdido". Nesse período, gravou "Walls and Bridges" e, para resolver amigavelmente uma acusação de plágio que pendia há anos sobre "Come together", acordou com a detentora dos direitos da canção alegadamente plagiada ("You can't catch me", de Chuck Berry), gravar um álbum de versões de clássicos rock'n'roll. Com Phil Spector como produtor, com sessões de gravação regadas a champanhe, num festim interminável que incluía visitas de Warren Beatty e Joni Mitchell ou Spector, tresloucado, a disparar tiros para o ar, terminou o "fim-de-semana perdido". O álbum seria finalizado sem o produtor e chegaria às lojas pouco antes de tudo mudar novamente. Na capa de "Rock'N'Roll" estava o jovem John Lennon, rock'n'roller em casaco de cabedal nas ruas de Hamburgo. Regressando ao início, fechava-se o círculo.
Meses depois, era-lhe finalmente atribuído o visto de residência. E a seguir nascia Sean, o seu único filho com Yoko. John Lennon, o homem de família, o dono de casa, fazia a sua aparição.
Tinha um disco preparado para edição, o primeiro depois de um silêncio de cinco anos. Chamava-se "Double Fantasy" e era o álbum de um homem de 40 anos a falar das ansiedades e da felicidade de um homem de 40 anos. Numa das suas últimas entrevistas, comentava: "Os anos 70 foram uma seca. Vamos tentar que os anos 80 sejam melhores". Não pudemos saber o que acharia deles.
A 8 de Dezembro de 1980, Mark David Chapman disparou sobre John Lennon.