Fundador do WikiLeaks acusa EUA de crimes de guerra
Relator da ONU pede a Obama que investigue tortura nas prisões iraquianas, que os soldados dos EUA conheciam mas não impediram
Julian Assange emergiu ontem da quase clandestinidade em que vive para defender a divulgação de milhares de ficheiros do Exército americano sobre a guerra no Iraque. Na cave de um hotel em Londres, o local de uma conferência de imprensa mantido até ao último minuto em segredo, o fundador do WikiLeaks disse querer "repor a verdade" sobre um conflito que terá matado mais de 66 mil civis.
Os documentos, ontem escrutinados pela imprensa, revelam que os militares americanos tinham instruções para ignorar os abusos cometidos pelas forças iraquianas, o que os pode tornar cúmplices da tortura sistemática cometida nas prisões do país.
Citando a famosa frase de que "a verdade é a primeira vítima da guerra", o ex-hacker australiano acrescentou: "Esperamos corrigir os ataques que lhe foram feitos antes e durante esta guerra e que continuam mesmo depois de ela ter terminado".
A essa hora, já o Pentágono dissera que os quase 392 mil ficheiros disponibilizados pelo site não passavam de "observações em bruto". Ainda assim, a sua divulgação constitui "uma tragédia que ajudará os inimigos" dos EUA, disse um porta-voz militar, citado pela BBC. Também o Ministério da Defesa britânico condenou a fuga de informação, que diz "tornar mais difícil e perigoso o trabalho" dos militares.
Numa entrevista à CNN, Assange afirmou que os documentos agora expostos apresentam "provas convincentes de crimes de guerra" cometidos pelas forças iraquianas e da coligação, uma alegação que o Departamento de Defesa repudia: "Revimos, palavra a palavra, cada um desses documentos. Não há nada que possa indicar a existência de crimes de guerra. Se houvesse, já teríamos investigado", disse à estação o assessor Geoff Morrell.
A afirmação será difícil de sustentar face às centenas de abusos reportados pelos militares americanos nos documentos agora divulgados. Há descrições de detidos espancados, chicoteados, sodomizados, queimados com ácido ou pontas de cigarro pelos militares iraquianos. Seis deles acabariam por morrer na prisão. Mas quase invariavelmente os casos eram encerrados, sem mais investigação, e a informação passada ao Exército iraquiano, muitas vezes às mesmas unidades responsáveis pelos abusos.
O Guardian, um dos jornais a quem o WikiLeaks passou a informação em primeira mão, adianta que isto era consequência de uma ordem - emitida em Junho de 2004 e conhecida por Frago 242 -, estipulando que apenas os casos envolvendo militares da coligação seriam investigados. Abusos de iraquianos sobre iraquianos deveriam ser alvo de um "relatório inicial". "Nenhuma outra investigação será necessária, a menos que seja pedida pelo quartel-general", estipulava.
ONU faz apelo a Obama
As revelações levaram de imediato o relator especial da ONU sobre tortura a pedir ao Presidente norte-americano, Barack Obama, que ordene uma investigação ao envolvimento dos seus militares nestes abusos. Manfred Nowak sublinha que, além da aparente cumplicidade, os EUA podem ter violado a Convenção contra a Tortura se transferiram detidos para controlo iraquiano sem a garantia de que eles não seriam sujeitos a sevícias.
"Quando foi eleito, o Presidente Obama disse não querer que os EUA fossem vistos como uma nação responsável por violações dos direitos humanos [...] Tem, por isso, a obrigação de investigar estes casos", disse Nowak.
As revelações do WikiLeaks surgem numa altura em que a Administração americana, a braços com o sangrento conflito no Afeganistão, desejava colocar uma pedra sobre a ofensiva iniciada em 2003. Ameaçam também agravar a crise política no Iraque, quando Nouri al-Maliki tenta reunir os últimos apoios para formar novo Governo, sete meses depois das legislativas. O primeiro-ministro, a quem a Constituição atribui o controlo das forças de segurança, denunciou ontem "objectivos políticos" por trás da fuga de informação, ao mesmo tempo que prometia "não ter qualquer misericórdia" com os abusadores.
À semelhança do que acontera em Julho, na divulgação de informações sobre a guerra do Afeganistão, há nestes novos documentos relatos de incidentes nunca reportados pelos soldados dos EUA que vitimaram civis - em checkpoints ou abatidos por helicópteros militares. Incidentes que, durante meses, marcaram o quotidiano dos iraquianos, a par das bombas, das batalhas nas ruas, das execuções e que se traduzem num número negro: 66.081 civis mortos entre Janeiro de 2004 e Dezembro do ano passado, num total de mais de cem mil baixas.
São números que o Pentágono sempre se recusou a divulgar - "eles serviam como uma espécie de pulso do sucesso ou do fracasso do esforço de guerra", escreveu o New York Times -, mas que, segundo John Sloboda, do Iraq Body Count, representam mais 15 mil mortos do que até agora se calculava. "Assassinatos, disparos feitos a partir de carros em andamento, execuções, mortes em checkpoints; estas são as pequenas mas incansáveis tragédias desta guerra que estes ficheiros mostram com um detalhe até agora sem precedentes", sublinhou ontem Sloboda, professor de Psicologia envolvido desde 2003 na compilação da sangrenta estatística.