Gordon Ramsay, o chef que veio do Inferno

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Gordon Ramsay já recebeu oito estrelas Michelin e tem um império de restauração que se estende aos Emirados Árabes Unidos Corbis

Há a verdade nua e crua e depois há a verdade saída da boca de Gordon Ramsay. É crua e temperada a vinagre. É um dos mais temidos chefs do mundo e apresentador de reality shows culinários. Num deles, senta-se nos restaurantes, experimenta a comida e depois confronta quem está ao comando dos tachos. Não é um espectáculo bonito. Dois chefs norte-americanos já se suicidaram depois de terem aparecido nos seus programas Hell"s Kitchen e Kitchen Nightmares. Bem-vindos à cozinha do Inferno

Gordon Ramsay é tão famoso pelos seus excelentes cozinhados, como pelo seu mau feitio. Já deu fiambre a comer a um vegetariano desavisado. Já expulsou a actriz Joan Collins do seu restaurante londrino. Insulta os seus colaboradores a toda a hora. Uma vez disse que as mulheres não sabem cozinhar, nem que seja com o intuito de "salvar as próprias vidas". Ramsay é assim: polémico, colérico, asneirento e intempestivo.

Apesar disso (ou por causa disso) é famoso em todo o mundo. Foi o primeiro chef escocês a ostentar três estrelas Michelin no seu restaurante londrino de Royal Hospital Road. Isso em 1993. De lá para cá coleccionou oito estrelas Michelin e construiu um império da restauração que se estende até aos Emirados Árabes Unidos e rende milhões todos os anos.

Paralelamente, transformou-se numa celebridade da reality TV. Apresentou os programas Hell"s Kitchen e Kitchen Nightmares - inicialmente em Inglaterra e depois nos EUA. No primeiro formato, Ramsay era o árbitro soberano de desafios culinários apresentados a duas equipas de concorrentes. Exasperava-se frequentemente e levou muitos participantes às lágrimas. No segundo formato, o temido cozinheiro visita restaurantes cujo negócio não vai bem e explica, sem rodeios, o que acha que está mal. Depois de expor os defeitos e gritar com os cozinheiros, Ramsay oferece conselhos para os proprietários darem a volta por cima. Descrições como "parece um grande amontoado de pêlos púbicos" são recorrentes na versão americana do Kitchen Nightmares, quando Ramsay se refere a alguns cozinhados.

Desde 2006, dois chefs cometeram suicídio depois de terem sido enxovalhados nestes dois reality shows. O primeiro caso aconteceu no Texas. Rachel Brown disparou um tiro sobre si própria, aos 41 anos, na casa da família (Dallas), após ter aparecido no Hell"s Kitchen. O segundo caso aconteceu em Setembro último. O cozinheiro Joseph Cerniglia, de 39 anos, lançou-se ao rio Hudson depois de Gordon Ramsay ter passado pela sua cozinha, em 2007, no programa Kitchen Nightmares.

Cerniglia era o dono do restaurante Campania, em Fair Lawn (New Jersey) e, aquando da sua visita, Ramsay tinha vaticinado que o negócio estava precisamente "a ir pelo Hudson abaixo". "Porque é que te transformaste no dono de um restaurante, se não fazes a mais pequena ideia de como se gere um negócio?", perguntou-lhe o mais temido chef do mundo e que já ocupou o primeiro lugar na lista das celebridades mais assustadoras da televisão, numa sondagem elaborada pela revista britânica Radio Times.

Comportamento suicida

Dito desta forma, o suicídio de Joseph Cerniglia parece ser uma consequência directa das críticas de Gordon Ramsay, mas uma irmã do falecido já veio dizer que as coisas não são tão simplistas, confirmando que os dois cozinheiros chegaram a ficar amigos. Ramsay até voltou ao Campania para ver se o seu tough love teria dado frutos. "O programa foi óptimo para os negócios. Ajudou tremendamente. Não guardamos ressentimentos em relação a Gordon Ramsay, que é um óptimo homem. O seu comportamento durante o programa foi empolado por causa das câmaras", disse a irmã do cozinheiro falecido, Danielle Wynn, à US TV.

Ao que parece, Gordon Ramsay era o menor dos problemas de Cerniglia. O proprietário do Campania estava imerso em dívidas e, de acordo com algumas notícias, mantinha uma relação extraconjugal com uma colega de trabalho.

A propósito destes dois suicídios, a CNN fez recentemente um apanhado dos casos que resultaram em suicídios após a participação em reality shows. Nos EUA já se registaram alguns casos. Em 2005, o boxeur Najai Turpin matou-se depois de ter participado em The Contender, apresentado por Sylvester Stallone e Sugar Ray Leonard. Ainda em 2005, a irmã de uma aspirante ao programa Extreme Makeover suicidou-se após ter tecido comentários cruéis, diante das câmaras, acerca do aspecto da irmã antes das tão desejadas cirurgias estéticas, que acabaram por nunca acontecer, porque a produção não a escolheu para participar no programa. Cheia de remorsos, a suicida não resistiu à pressão.

Em 2008, uma concorrente do American Idol foi encontrada morta, com uma overdose, junto à casa de Paula Abdul, que na altura fazia parte do júri do programa. Abdul veio mais tarde esclarecer que a concorrente estava obcecada por si e que até chegou a pedir aos produtores que não a deixassem participar no programa.

Em Portugal toda a gente se recorda da tentativa de suicídio de Zé Maria, o grande vencedor da primeira edição do Big Brother, na Ponte 25 de Abril. Depois deste incidente, o concorrente de um dos mais marcantes reality shows portugueses esteve internado em instituições psiquiátricas, diagnosticado com uma depressão profunda. Actualmente a viver na sua terra natal, Barrancos, Zé Maria voltou à condição de anónimo, após ter saído da "casa mais famosa do país", no dia 31 de Dezembro de 2000, com uma mala cheia de dinheiro.

Questionado pelo P2, Carlos Braz Saraiva, professor de Psiquiatria e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia, esclareceu que as pessoas que participam em reality shows têm, no geral, uma personalidade histriónica, "e isso pode despertar certas vulnerabilidades, quando lhes falta o teatro da vida", ou seja, quando deixam de ter as câmaras apontadas para as suas acções quotidianas.

Confrontadas com estas situações de "celebridade instantânea" seguidas de um rápido esquecimento, as pessoas com este tipo de personalidade podem mais facilmente ceder à "depressão" e mesmo a estados suicidas. "As pessoas com uma personalidade histriónica sofrem maior risco [de depressão e de suicídio] do que a população em geral, mas claro que isso depende de vários factores de personalidade", indicou ainda o psiquiatra.

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