A incontinência verbal de Jorge Jesus fê-lo dizer que o Benfica tinha estado, a par do Barcelona, no pódio das equipas cujo futebol mais empolgou na época passada, o que não foi muito simpático, por exemplo, para um técnico português como é José Mourinho, que acabara de dar ao Inter de Milão o título europeu perseguido há mais de 40 anos... Independentemente de algum exagero, percebe-se que Jesus tenha feito o elogio de um Benfica que tinha, de facto, chancela europeia. Mostrou-o frente ao Everton, ao Liverpool e ao Marselha, só não chegando mais longe talvez por ter dado excessiva prioridade à liga portuguesa. Mas a realidade mudou e se alguma coisa ficou provada na viagem a França é que este Benfica perdeu pedigree europeu. Caso contrário, teria provavelmente saído com resultados positivos de Gelsenkirchen e Lyon, onde (ao contrário do que disse Jesus) já estava em plano inferior mesmo antes da expulsão de Gaitán. Em França, houve demasiados erros tácticos e individuais, sendo que os segundos foram inflacionados pelos primeiros. Se o habitual 4x1x3x2 não tivesse sido trocado pela versão clássica do 4x4x2, Carlos Martins provavelmente não teria perdido a bola em terrenos que habitualmente não tem de pisar. Mas também é verdade que, antes do primeiro golo, já David Luiz, Luisão e o próprio Aimar (desterrado na direita) haviam tido pecados idênticos, sinal de que a mudança não foi bem afinada e que este Benfica ficou bem mais desequilibrado defensivamente quando foi obrigado a vender Ramires. E Jesus também tomou uma opção discutível na segunda parte, quando quis continuar a discutir o resultado com apenas três homens no miolo, percebendo talvez demasiado tarde que melhor teria sido abdicar imediatamente de um dos dois da frente.
Mourinho e o fermento alemão chamado Ozil
Esta faculdade que o técnico português tem de conseguir resultados rápidos em pouco tempo é, normalmente, relacionada com a sua argúcia táctica, com a capacidade de liderança e de gerir conflitos (sejam eles externos ou no próprio balneário) e com a sua personalidade e discurso belicistas, que acabam por resultar num “pára-raios” capaz de aliviar as tensões dentro das suas equipas. Sendo tudo isto irremediavelmente verdade, a sua valorização excessiva acaba por, injustamente, deitar para segundo plano aquelas que são, de facto, as principais virtudes do melhor treinador português de todos os tempos: o conhecimento do treino, a leitura rápida das situações (de jogo e não só) e uma capacidade de trabalho inesgotável.
Mourinho é o homem do detalhe, alguém que estuda à lupa os adversários e se preocupa tanto com os dados antropométricos e psicológicos dos seus jogadores como com a altura e o corte da relva. Boa parte da confiança ilimitada que transmite nas mais diversas situações resulta não só do seu carácter extrovertido e insolente, mas também da tomada de consciência de que nada foi deixado ao acaso pela sua equipa de trabalho, cujos membros são sujeitos a testes permanentes não só de solidariedade, mas também de profissionalismo, dedicação e modernidade. É este o principal segredo do seu sucesso, por muito que o espectáculo mediático que ele próprio fomenta lhe renda maior destaque.
Após a vitória sobre o Milan, falou-se de algumas individualidades (desde o regresso do Ronaldo, que já foi o melhor jogador do mundo, à exibição portentosa de Ricardo Carvalho) e da lição que Mourinho deu a Massimiliano Allegri, o jovem treinador que lhe tinha feito a ameaça (obviamente não cumprida) de jogar com seis avançados e que há duas épocas, quando treinava o Cagliari, lhe levou a melhor no prémio de melhor técnico do futebol italiano. Para segundo plano ficou a organização defensiva dos madrilenos (onde até Di María participa) e a pressão alta garantida por linhas muito subidas entre os muitos predicados de uma equipa que já funciona como tal.
Aos 47 anos, Mourinho é hoje, naturalmente, um treinador diferente daquele que era quando o Benfica o escolheu, em 2000, para substituir Jupp Heynckes ou do que, pouco tempo depois, tomou o lugar de Octávio Machado no FC Porto. De facto, o próprio Mourinho (e continuamos apenas a olhar para a sua faceta enquanto técnico) que entrou pela primeira vez no Estádio do Dragão não foi exactamente o que de lá saiu. Este último tinha já perdido algum do romantismo que lhe permitiu juntar a conquista da Taça UEFA a uma série de espectáculos inolvidáveis. Ao invés, acrescentou pragmatismo, fiabilidade e até algum cinismo à equipa (como quando adulterou o triângulo no miolo e colocou Deco a falso ala esquerda) que levantou a Champions em Gelsenkischen, única forma de tornar a luta mais leal frente a adversários com recursos incomparáveis.
Mas a fama de “resultadista” ganhou-a mais tarde. Não tanto no primeiro ano de sucesso no Chelsea, porque aí nenhum treinador deixaria de aproveitar essas forças da natureza que eram Makelélé e Geremi, mesmo que temperadas no meio-campo pela lucidez de Lampard e o talento de Joe Cole, cuja carreira quase se pode resumir a um antes e a um pós-Mourinho. Mas é verdade que, nos anos seguintes, foram chegando, sucessivamente, jogadores como Essien (o melhor jogador do mundo no seu género?), Lass (que agora reencontrou em Madrid), Obi Mikel e Ballack, todos jogadores que se distinguem pelo músculo do que pelo génio. E foi também a fama de ter tornado o futebol em algo demasiado burocrata e previsível que terá contribuído para a ruptura com Abramovich, que não demorou a perceber o quanto se enganou, quando apostou em treinadores mais “domesticados”.
Em Milão, Mourinho terá pensado para os seus botões que havia encontrado o seu verdadeiro meio ambiente. Porque a Itália privilegia o lado estético em tudo, menos nos relvados. Ali, ganhar, ganhar e ganhar são as três palavras mais importantes do dicionário de quem manda e vê futebol. O problema é que Cambiasso, Stankovic e Zanetti (e mais tarde também Thiago Motta) chegavam para consumo interno, mas não tinham o toque mágico das espécies raras. Tão ou mais grave, o presidente Moratti é ainda menos paciente do que Abramovich e estava ainda mais nervoso do que o russo com o sonho de ganhar finalmente a Champions.
Mas o futebol é, por vezes, muito parecido com o xadrez, onde mexer numa simples peça pode resolver tudo num ápice. Essa pedra chegou no segundo ano ao Inter e chamou-se Sneijder, o holandês que Jorge Valdano dispensara (contra a vontade do treinador) no Real Madrid. Com ele, Mourinho passou a ter o jocker que lhe faltava. E levantou novamente o caneco principal da UEFA.
No último defeso, poucos dias depois do termo do Mundial, num encontro fortuito com Cristiano Ronaldo, falámos um pouco das expectativas em torno da ida de Mourinho para Madrid. A meio da conversa, arrisquei dizer que, apesar das contratações certeiras, continuava a faltar algo de fundamental à equipa madrilena. E referi o nome de Ozil. Ronaldo, que é mais maduro do que muita gente pensa, pensou uns segundos e depois deu-me razão. Fiquei com a ideia de que Ronaldo percebeu que eu estava a medir as vantagens não só para a sua equipa, mas também para ele próprio. Quis o acaso que a transferência do jovem alemão para Madrid se tivesse acabado por concretizar pouco antes do fim do período de transferências.
Não demorou muito a confirmar-se que Mourinho tinha recebido um ingrediente raro. E que os principais beneficiados com a presença de Ozil são Ronaldo, Higuaín e Di María, o trio que surge à frente do duplo pivot (Xavi Alonso e Khedira) e no apoio a Higuaín, num desenho já capaz de garantir uma nota artística alta. Porque Ozil é um daqueles jogadores que funcionam como fermento em relação às restantes partes de uma equipa.
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