Tudo é fumo de tabaco neste genérico. O fumo da personagem longilínea, de nariz adunco e orelhas proeminentes que percorre as ruas de Paris. Paris da noite e da luz dos candeeiros nas margens do Sena, Paris ocupada, coberta de suásticas. A personagem continua a fumar, planando. Não é só ele que fuma. O fumo de cinco maços de Gitanes por dia cobre tudo - e todos estão como ele, de cigarro na boca, fumando pela vida fora. Ei-lo por fim em pose elegante, sentado sobre o globo terrestre. Fumando ainda.
Joann Sfar introduz-nos assim em "Gainsbourg-vida heróica". É a primeira experiência do cartoonista Sfar enquanto realizador [ver entrevista nas páginas seguintes], e o seu "métier" original está inscrito num filme onde a vida do autor de "La Javanaise", magnificamente interpretado por Eric Elmosnino, é palco para uma constante erupção de fantasia - existe um alter-ego animado, gatos que falam, personagens que julgamos saídos da imaginação de um Lewis Carrol até percebermos que são, afinal, reais. Talvez que só assim pudesse ser representado condignamente o músico, o dandy, o amante de Brigitte Bardot e Jane Birkin, o provocador que a França idolatrava. "Gainsbourg-vida heróica" chegou ontem às salas portuguesas.
Serge Gainsbourg sabia que não morreria de cancro ou crise cardíaca, "como outros". Morreria de uma doença simples, "a exausta retirada da vida". Os relatórios médicos podem ter acusado o coração como responsável pela sua morte, aos 62 anos, em 1991, mas isso é a ciência a falar - e Gainsbourg não era personagem da ciência, não era dado a verdades exactas. A sua dimensão era outra. Figura maior que a vida, polémico por convicção e temperamento artístico, músico genial, eterno sedutor. Um homem que entre o nascimento, em 1928, e a morte, em 1991, atravessou a vida a olhar de fora, como se não encaixasse em lado nenhum.
Dr Jekyll et Mr Hyde
Foi um músico versado no jazz e foi mestre na "chanson". Abraçou o rock, escreveu para a Eurovisão, gravou bandas-sonoras e foi criador de ambientes orquestrais únicos e de álbuns conceptuais como o genial "Histoire de Melody Nelson" (1971). Foi tudo isso serpenteando entre géneros, como um manipulador genial - e não falámos do reggae ou do funk na fase final da carreira, não referimos o seu trabalho sobre percussões caribenhas e africanas em "Gainsbourg Percussions", de 1964. Talvez essa capacidade múltipla seja consequência da sua inadequação. Porque ele era o "estrangeiro" que moldou uma ideia de França, acabando, apesar de todas as polémicas e de toda a iconoclastia, por fascinar o povo e o poder político - nesse sentido, nesta França em que Sarkozy fere diariamente os ideais da República, este é um filme sobre o presente. Gainsbourg era também, por fim, praticante daquela que considerava uma "arte menor", a escrita de canções a que se entregou por desgraça pessoal: "a minha maior mágoa é não ter vivido o período surrealista e dadaísta", confessou o pintor frustrado - "para mim, era tarde demais".
Como pegar em alguém assim e transpô-lo para tela sem que nada se perca? "Amo demasiado Gainsbourg para o reduzir à realidade. Não são as verdades de Gainsbourg que me interessam, são as suas mentiras". A citação é de Joan Sfar, que criou um Gainsbourg onde o fantástico irrompe pela realidade para que a realidade se revele devidamente, e surge no final do filme como caução justificadora da liberdade tomada na abordagem à vida do ícone francês. Parece-nos, porém, que Gainsbourg gostaria de ser representado assim: como animação de carne e osso, como personagem de uma grande comédia. Um herói romântico, gloriosamente ambíguo, rodeado das mais belas mulheres do seu tempo.
Todo o fumo do genérico de "Gainsbourg-vida heróica" é animação. O corpo torna-se real depois, quando vemos o pequeno Lucien Ginsburg (nome de baptismo de Serge) atravessando a Paris ocupada pela Alemanha nazi - nesta biografia cinematográfica que só segue as regras na organização cronológica, essa dimensão primeira não mais abandonará este Gainsbourg de Sfar. É esse que reconhecemos no corpo e na face inacreditavelmente credíveis do actor Eric Elmosnino - e na Brigitte Bardot de Laetitia Casta, e na Jane Birkin de Lucy Gordon, actriz que, tragicamente, se suicidaria pouco após a rodagem do filme. A efabulação e a mitologia são as verdades do realizador. É esse o seu Gainsbourg.
A "vida heróica" começa quando Serge era ainda Lucien Ginsburg, filho de dois judeus russos emigrados em França após a Revolução de Outubro. Lucien: o miúdo que não queria tocar o piano que o pai pianista o obrigava a tocar - "não quero o piano, quero um revólver", pede à mãe; mas também não era verdadeiramente a pistola que queria, porque Lucien pintava e é pintura que estudará em Montmartre. Lucien: o filho de judeus que não sabe verdadeiramente o que é o judaísmo (a família não era praticante) quando as leis anti-semitas chegam a França e lhe espetam uma cruz de David amarela no peito - "a estrela não é minha senhor, é sua", responde no filme ao homem que lha entrega. Essa descoberta, a de que podia ser estranho e estrangeiro no seu próprio país acabará por ser uma marca que carregará daí para a frente.
O pequeno Lucien (interpretado por Kacey Mottet Klein) atravessará todo o filme, tomando ocasionalmente o lugar do Serge adulto ou surgindo pelo rosto dos órfãos do Holocausto a quem Gainsbourg dá aulas de música e que serão, curiosamente, o seu primeiro público.
A sensação de ser alguém que não encaixa, e a forma como reage a isso, tão sardónico e questionador publicamente quanto inseguro na intimidade, é aquilo que o define. Porque tal não emana apenas da terrível estrela amarela.
Por ter nascido atrasado, por ter perdido os dadaístas e os surrealistas, por não ser o pintor genial que desejava, guardou no nome Gainsborough, o pintor barroco inglês, ateou fogo às telas e renasceu, preparado para se dedicar à tal "arte menor". Não seguiu sozinho: acompanhou-o "La Gueule", o seu alter-ego, presença indispensável em "Vida Heróica". Aquela figura, de finas maneiras e pose de aristocrata que assoma como Gainsbourg caricatural - todo ele parece ser um nariz e umas orelhas - é o duplo que o empurra vida fora, o Mr. Hyde que o tenta com delícias e patifarias, com o prazer e a amoralidade ("Dr. Jekyll et Mr. Hyde", curiosamente, é uma das canções mais famosas de Gainsbourg).
É a "La Gueule" que Serge, que iniciara o percurso musical tocando nos cabarets da boémia parisiense dos anos 1950, vende os sonhos de grande arte. Vende a seriedade e a banalidade burguesinhas pelo prazer de gastar o corpo e viver muito, viver tudo, seguindo as suas regras e os seus impulsos. "Django Reinhart [mítico guitarrista cigano, um dos heróis de Gainsbourg] tocava com dois dedos. Sacrificou o resto, aquilo de que não precisava", diz "La Gueule" a Serge numa das cenas centrais do filme: "La Gueule" a imolar-se numa dança diabólica no atelier de Gainsbourg para que Gainsbourg, o Serge Gainsbourg que marcaria indelevelmente as décadas de 1960 e 1970, nascesse definitivamente.
Não tardaria até que se atravessassem no seu caminho Boris Vian (Phillipe Katerine), de quem reteve o surrealismo, o humor e o amor pelas mulheres, e Juliette Gréco (Anna Mouglalis), mulher misteriosa que intimida pela beleza vestida de negro, pela classe, pela autoridade da sedução.
Vida heróica, surreal
Boris Vian e Serge Gainsbourg a sair de uma festa num cabaret. Estão bêbados, eufóricos. Vian deita-se no meio da estrada. "Fico aqui à espera do táxi". Gainsbourg junta-se a ele. Riem enquanto os carros se desviam, riem quando é um carro da polícia a parar. Acabarão numa casa onde dormem quatro figuras burlescas, personagens de bigode bem desenhado e camisas coloridas que teriam perfeitamente lugar no País das Maravilhas de Carrol. Parecem personagens de cartoon, mais uma erupção de fantasia, mas são na verdade Les Fréres Jacques, trupe musical que marcou quarenta anos da música francesa, e portam-se como "chapeleiros loucos" enquanto pedem a Gainsbourg que lhes toque uma das suas canções, "Les poinçonneur des Lilas". É um momento deliciosamente cómico e surreal. E é precisamente nesse tom que se ganha "Vida Heróica".
O filme terá pontos de contacto com o ambiente onírico de Spike Jonze, mas funciona como a escrita de Boris Vian: é menos surreal pelo sonho que pela forma como introduz na narrativa elementos impossíveis, distorcendo a realidade para dar dimensão física a sentimentos e sensações. Daí "La Gueule", o alter-ego de Gainsbourg que representa um ideal que acabará por abraçar, o da vida excessiva, vivida por um provocador literato tão distinto quanto perverso. Daí, pequeno pormenor, o gato preto que aparece em casa de Juliette Gréco, falando dengosa mas assertivamente como um mordomo que recebe os convidados.
Quando surgem em cena Les Fréres Jacques, Gainsbourg está a um pequeno passo da mudança. Estamos no final da década de 1950 e ele é um cantor admirado por artistas e boémios, cantado por Gréco. Casado com Elizabeth Levitsky, normalmente ignorada na história da sua recheada vida amorosa (tal como Béatrice Pancrazzi, a segunda mulher, com quem teve dois filhos, Natacha e Paul), é ainda um homem do passado, cultor da "chanson" e ligado esteticamente às vanguardas das décadas anteriores. O futuro não tardaria a apresentar-se: os anos 1960 da pop e do rock, dos néons e do cimento, da geração libertária que dança o yé-yé, da feminilidade feminista de Bardot e de Birkin.
No final da década de 1970, quando começou a aprimorar o escândalo e a controvérsia a uma arte etílica e decadente, Gainsbourg criou Gainsbarre, o seu reverso perverso. No filme Gainsbarre é presença constante. É, como se depreende, "La Gueule". São as duas faces da moeda Gainsbourg. Com elas atravessamos a década de 1960, o período em que começa a nascer a sua lenda. Nunca está sozinho. O que é Gainsbourg em determinado momento, é-o por influência das mulheres com quem partilha a vida - é apenas através delas que reparamos nas suas inseguranças, na preocupação com a sua fealdade, e é também através delas que melhor exprime a sua música, a porção dela mais provocadora e brilhante. Esse é o outro eixo central de "Vida Heróica", cujo título francês original, "Vie Heroïque", é, não por acaso, variação livre sobre uma das suas mais famosas canções com Jane Birkin, "69 anée érotique".
De Bardot a Birkin
Tudo começa quando pedem a Gainsbourg que componha para a ninfeta Frances Gall, estrela do yé yé francês. "Graças à minha filha, vamos fazer fortuna", diz o pai dela. E sim, é verdade. Gainsbourg dá-lhe a vitória na Eurovisão, em 1965, com "Poupée de cire, poupée de son". Gainsbourg flirta com o escândalo e oferece em seguida à adolescente "Les Sucettes". A canção sobre chupa-chupas de anis, metáfora para sexo oral, transforma-se em sucesso cuja duplo sentido do refrão Gall, de 18 anos, apenas compreenderá depois de todos os outros. O seu compositor considerou-a mais tarde "a canção mais ousada do século". À cantora, a ousadia nada disse. Terminou a colaboração com Gainsbourg e raramente regressou ao repertório gravado com ele.
A manipulação de France Gall e os 35 milhões de francos ganhos com a vitória na Eurovisão, abriram-lhe as portas do estrelato. Faz-se ouvir a batida e a guitarra estridente de "Qui est in, qui est out" e eis Gainsbourg na nova era: champanhe servido interminavelmente e o seu corpo rodeado de corpos de mulher. Parece não haver sinais do homem inseguro no seu aspecto físico e que, por isso, era sedutor tão deslumbrado quanto acossado - vendo-o em entrevistas à época, deparamos com alguém que parece esconder-se nos cigarros que fuma infatigavelmente, esquivando-se do olhar curioso das entrevistadoras.
Mas, de facto, como podia haver ainda vestígios dessa insegurança quando tinha Brigitte Bardot, estrela maior que ele, diva inalcançável, a chamar-lhe "meu príncipe" e a pedir-lhe que lhe escrevesse "a mais bonita canção de amor"? Na "Vida Heróica" de Gainsbourg, a Bardot de Laetitia Casta, desde o momento em que irrompe em cena como heroína cool de Tarantino, é a representação perfeita de poder e sedução feminina, o auge do glamour e da conquista. A relação, imortalizada em "Initials B.B.", a canção, e no disco homónimo, surge no filme como um idílio. Serge e Brigitte como heróis românticos e controversos ("Bonnie & Clyde", naturalmente), e a modernidade dela, a sua sofisticação, a sua dança a contraluz ao som de "Comic strip" (a pop art transformada em canção) a inspirar um Serge Gainsbourg no topo do mundo.
Com Brigitte tudo é perfeito demais para ser possível - e, num ápice, tudo se desmorona. Ela, casada, volta para o marido. Serge, só, prostra-se perante um retrato em tamanho real da ex-amante. Para ela tinha composto "a mais bonita canção de amor". O canção ícone, a sua canção mais famosa: "Je t'aime, moi non plus".
Um último grande gesto
Numa sala, um gravador que toca música e um velho produtor (interpretado pelo recentemente falecido Claude Chabrol) abre os olhos de espanto a cada novo verso, a cada novo gemido. "Arrisco ser preso", comenta. "Vai ser um escândalo", sentencia, gargalhando, felicíssimo. Serge compô-la para Bardot, mas editou-a com a voz de Jane Birkin, a actriz inglesa que surgira brevemente em "Blow Up", de Michelangelo Antonioni, que fora casada com o compositor inglês John Barry, e que com ele formaria um par perfeito. Gainsbourg e Birkin juntos na provocação: em "Je t'aime (moi non plus)", censurada em vários países, mas também na vida boémia parisiense, no humor negro de "Rock Around The Bunker", onde encontrávamos "Nazi rock" (a estrela de David pregada no peito, novamente), ou de novo em "Je t'aime (moi non plus)", filme realizado por Gainsbourg em 1976, protagonizado por Jane Birkin e Joe Dallesandro e muito controverso pela sua crua exposição sexual.
Birkin foi o equilíbrio possível de Gainsbourg. O glamour de uma vida, digamos, normal: "La Gueule" expulso de casa e o casal a chegar directamente da noite parisiense, champanhe na mão, para dar o pequeno almoço a Charlotte, filha de ambos, e Kate, filha de Birkin e John Barry. Não duraria muito. Não poderia. Não o permitiriam a vida desregrada e os fantasmas de Serge Gainsbourg. Abandonado por Birkin, deixa de ter alter-ego. Ele e "La Gueule" tornam-se um só. É Gainsbarre que aparece, casado com a actriz e cantora Bambou, com quem terá um filho, Lucien. Gainsbarre nos anos 1980, bêbado, envelhecido e decadente, polemizador nato em horário nobre televisivo: ateando fogo a notas de 500 francos, gravando o ambíguo "Lemon incest" com a filha de 13 anos ou lançando um boçal "quero foder-te" a Whitney Houston. Antes disso, porém, um último grande gesto.
Gainsbourg na Jamaica com Sly & Robbie, duo histórico da música dub, a gravar "Aux arms et cetera", versão reggae d'"A Marselhesa". "É uma história francesa de guerra", explica aos músicos. Estamos em 1979 e, no regresso a França, Serge Gainsbourg veste uma camisa militar.
O rumor é insuportável. Perseguem-no veteranos da guerra da Argélia e militanntes de extrema-direita que o querem agredir, apoiam-no outros tantos. Todos gritam. Frase assassina num jornal: "Gainsbourg instiga sobre si o anti-semitismo". Gainsbourg subindo a palco. "Sempre fui um insubmisso em todos os momentos da minha vida", vocifera antes de cantar "A Marselhesa" de punho erguido - de novo, a França de hoje.
A última provocação é de Serge Gainsbourg e de Lucien Ginsbourg. Reúnem-se. O que ele foi, já o era antes. "La Gueule" está orgulhoso dos seus feitos. Exausto de vida, Gainsbourg podia despedir-se.